Desde que os historiadores Eric Hobsbawm e Terence Ranger puseram
a descoberto os mecanismos acionados na 'invenção das tradições', com a
organização da obra com esse mesmo título, ficamos a saber que comportamentos,
regras e modos de convivência (como o casamento), que são apresentados como
"sagrados", na verdade são, antes de mais nada, criações humanas com
propósitos históricos claramente definidos, e com a função muitas vezes de
controle social. De todo modo, é dessa forma que nascem as tradições e as
regras de comportamento, o sancionado como ‘o que pode’ e ‘o que não pode’, o
que é bem visto e o que mal visto. Por aqui, sociologicamente falando, a
reiterada repetição da ação, quer dizer, do comportamento, das regras, etc.,
gera a estrutura social que se introjeta na cabeça das pessoas e elas passam a
viver conforme o estabelecido por esses cânones. Os fatos sociais, a
socialização, assim por diante. E dessa maneira também são criados os mitos,
narrativas que não correspondem à realidade, mas que são assimiladas pelas
pessoas. Identificar o momento específico de maturação de um mito é algo
complexo, mas analiticamente estimulante. Pois bem, é disso que se tem ocupado
o Prof. Michel Zaidan, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
Historiador-cientista político de verve afiada, ele tem produzido um conjunto
de textos procurando mostrar como está sendo operacionalizado o movimento para
transformar o ex-governador pernambucano Eduardo Campos, morto em acidente
aéreo, num mito, para continuar gerando lucros políticos para 'os espertos
vivos'. A diversidade de celebrações e atos políticos por ocasião do primeiro
ano do seu falecimento, neste mês de agosto, mostram bem isso. Cá entre nós,
são poucos os que têm a coragem de assumir a postura analítica que Zaidan está
a levar a cabo, sobretudo considerando que, em Pernambuco, a figura do
ex-governador vem sendo "quase canonizada". A mim, todavia, que
conheço os seus trabalhos desde os albores juvenis, a posição de Zaidan não surpreende. No seu livro 'Honra ao Imperador: Reflexões Críticas sobre a Era
Eduardiana em Pernambuco', com uma só frase, ele nos diz o porquê da sua
posição: trata-se do "duro e antipático exercício da crítica". Em
última instância, trata-se de não renunciar à racionalidade e à análise
científica da realidade. Estamos juntos. Reproduzo aí abaixo um dos seus textos
sobre a questão, sugestivamente partindo de uma incursão pelos vislumbres do
tempo e do vento - à Érico Veríssimo e com boas doses de ironia.
Capa do livro de Zaidan: análise da 'fabricação do mito' Eduardo Campos |
Por Michel Zaidan
Há
um romance épico sobre a saga do povo gaúcho intitulado "O Tempo e o
Vento". Neste romance a personagem chamada "Bibiana" faz uma
imprecação contra os ventos do mês de agosto, dizendo que eles sempre trazem um
mau presságio, uma desgraça, uma catástrofe, ou coisa assim. E existe mesmo uma
frase do autor, o escritor Érico Veríssimo, indagando se no paraíso os ventos
soprariam infinitamente.
Independentemente do
que pensam os gaúchos dos maus augúrios do mês de agosto e seus ventos, este
mês costuma ser lembrado pelos brasileiros como um período de muitas desgraças:
basta lembrar o suicídio de Getúlio Vargas e a morte de Miguel Arraes. Pois foi
exatamente em agosto de 2014, que explodiu em São Paulo o avião
"fantasma" – de titularidade ainda hoje incerta – que transportava o
ex-governador de Pernambuco. O político pernambucano estava em plena campanha
presidencial e era um trunfo muito importante nas eleições estaduais.
A sua morte, em
agosto do ano passado, em circunstâncias trágicas nunca elucidadas, alimentou
uma espécie de messianismo atávico que, em situações como essas, tende a
produzir uma taumaturgia política que beneficia sempre os aliados, os
protegidos e os parentes do falecido. É preciso reconhecer que o nosso povo é
pródigo em construir mitos e mitologias, às vezes de pés de barro, fortemente
reforçados pela grande mídia impressa e eletrônica do país.
Há também entre nós
uma jurisprudência penal curiosa: a morte, mais ainda em circunstâncias
trágicas e pouco conhecidas, redime todos os malfeitos, os ilícitos penais, os
crimes cometidos pelo falecido. Existe no Brasil, como na história do
Cristianismo, os bons e os maus ladrões. No geral, os bons ladrões estão
mortos, embora possam ter se beneficiado (ou os seus) pelos ilícitos
praticados. Os maus ladrões são os vivos, os "bodes expiatórios", as
"genis", os "judas" da vida, expostos à sanha vindicativo
do distinto público.
Seus cadáveres morais
são apresentados todos os dias pelos meios de comunicação de massa, para
exorcizar a raiva, a frustração de uma população mais pobre e
semi-escolarizada. Os que morrem contam sempre com o benefício da dúvida, a
presunção de inocência ou a compaixão dos vivos. Os que ficam cumprem o
sinistro papel de ajudar a purificar os sentimentos de ódio, de vingança e de
inveja dos vivos.
Esse preâmbulo foi
escrito em razão de uma sentença absolutória proferida pelo juiz (vingador
público) Sérgio Moro, sem nenhum alarido da mídia, sobre os implicados daqui
(de Pernambuco) nos escândalos das operações da "lava-a-Jato". Alegou
o sr. Excelentíssimo juiz que, com a morte de dois do grupo de políticos
suspeitos do nosso Estado, apontados na delação premiada do senhor Paulo
Roberto Costa, por ocasião da construção da Refinaria Abreu e Lima, o processo
deveria se extinguir, pois não haveria como indiciar, processar, julgar e
condenar quem já morreu. Pronto, resolvido o assunto.
Era só esperar o dia
do Juízo Final, para ver quem iria direto para o inferno ou quem alcançaria,
pelo menos, o purgatório, porque dificilmente nenhum deles iria para o céu.
Havia, entre estes, políticos ligados ao PSB, ao PSDB e ao PP. Mas os jornais
solicitamente silenciaram sobre o fato. E continuam calados até hoje.
Muito bem. Quem
morreu, morreu. Mas há muita gente viva, vivíssima desejosa de usar o capital
político, o patrimônio moral e material dos falecidos para se eleger a isto,
àquilo, a este cargo, àquele outro etc. Houve até uma procissão com a fina
estampa do falecido, impressa em estandarte, em ato declaradamente eleitoral.
Os apaniguados, os
cupinchas, os protegidos ou mesmo simples aventureiros que farejam onde podem
obter vantagens se aproximando do cortejo, estão utilizando ou vão utilizar a
memória do morto como trunfo político, como se os eleitores fossem destituídos
de qualquer forma de discernimento moral ou político. Crentes ou fiéis desse
neo-messianismo familiar que acham que os mortos não têm defeito algum e que é
de mau tom, deselegante e pouco educado falar criticamente daqueles que já se
foram ou partiram.
Aqui é onde entra a
necessidade de um julgamento póstumo, como em outros romances realistas
fantásticos de Erico Veríssimo. Os mortos ressuscitam – não para continuarem a
fazer o mal - mas para serem julgados e condenados pelo que fizeram ou deixaram
de fazer, sobretudo por terem ajudado a eleger gestores incompetentes e
midiáticos que transformaram o Estado e a cidade do Recife numa imensa cratera
moral, alimentadas pelo pagamento de taxas, impostos e contribuições que não
produzem nenhum retorno social.
È necessário que se
faça esse julgamento – com todo respeito pela tragédia que acometeu o falecido
– porque a memória do político vem sendo disputada a tapas, socos e pontapés
pelos acólitos, os epígonos, os puxa-sacos e carreiristas de todo tipo.
Interessa muito à sociedade pernambucana passar a limpo o que produz e
constitui esse memória, para que o embuste, a fraude política não se perpetue
através de paus-mandados e continue a prejudicar ao povo de Pernambuco.
Pode ser que, assim,
a alma do falecido descanse em paz e desista de aperrear os vivos.
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