Aí abaixo, extratos de uma entrevista com a Profa. Eliane Robert Morares, da Universidade de São Paulo (USP), e uma das pesquisadores brasileiras de referência sobre o tema erotismo e literatura. Diferente de outras perspectivas, ela nivela pornografia e erotismo (por dissociar a primeira de vulgaridade?). A conferir. A entrevista foi concedida à Revista Geni, nº 02 (http://revistageni.org/), sendo realizada por Carolina Menegatti.
Eliane Robert Moraes |
Como começou seu interesse pela área do erotismo?
São motivações muito
misteriosas que levam a gente pros lugares onde a gente está. Eu sempre
pergunto não só por que eu fui estudar um autor como Sade, mas por que alguém
vai estudar Machado de Assis, Proust. Acho que tem várias coisas. Eu sou de uma
geração – e de uma parte dessa geração, porque não era todo mundo – que pegou o
final da ditadura. Então eu me envolvi de uma forma um pouco mais militante com
o feminismo, embora eu nunca tenha tido muita atração pela militância. Tinha o
feminismo no final dos anos 70, que era interessante, porque ele fazia a
crítica da política oficial e olhava um pouco para o afeto, o desejo, o corpo,
outros lugares.
Tive uma participação
pequena num grupo, na época, que se chamava Nós, Mulheres. A gente tinha um
jornal, eu comecei a escrever, e isso também coincidiu com o final do meu curso
de ciências sociais e o desejo de entrar na vida acadêmica. Aí eu ganhei uma
bolsa pra estudos ligados ao feminismo.
Uma bolsa pra estudos feministas?
Pra estudos sobre
mulher. Ela passava pela Fundação Carlos Chagas, daqui, mas a dotação era da
Fundação Ford. Então do nada, conversando com uma amiga, perguntei: “Que tal
estudar pornografia?”. Porque todo o problema da mulher e da sexualidade está
colocado na pornografia. Mas já era pegando pelo imaginário, pela fantasia,
embora eu estudasse ciências sociais.
Nessa época estava
começando a coleçãozinha Primeiros Passos, da editora Brasiliense. E por meio
da viúva do Caio Graco [editor
da Brasiliense], a Susana, uma psicóloga, eu acabei escrevendoO que é
pornografia junto com a minha
amiga [Sandra Lapeiz], com
quem eu fazia a pesquisa. Foram também os meus primeiros passos como estudiosa
do tema. E aí eu descobri quem? O Marquês de Sade! Que é um autor extremamente
impactante, não é um do tipo que você lê e passa.
Tinha edições do Sade no Brasil? Como ele circulava?
Não circulava. Parte
do que eu pesquisei foi com edições clandestinas, mas não tinha nada à
disposição do leitor, naquele momento. Eu li tudo em francês, me exigiu muito.
Foi até bom, aprendi a falar francês com Sade [risos].
Não sabia falar coisas básicas, mas todos os palavrões do século 18, todas as
nomeações dos genitais eu sabia. Às vezes falar um bonjour já era mais difícil [risos]…
Isso foi exatamente
quando terminei as ciências sociais e quis fazer um mestrado. Então eu conheci
o Renato Janine Ribeiro [professor
da USP, orientador de Eliane no mestrado e no doutorado], que é um
estudioso do século 18, e na hora ele comprou a ideia, apesar de a área dele
ser a filosofia política.
Tem um paradoxo aí,
que é começar no feminismo e depois ir pra Sade. Tem um deslizamento meio
estranho, porque o feminismo tinha um lado militante, reivindicatório, e Sade
está totalmente no campo da fantasia. Não dá pra ser militante com Sade. Tem
até gente que o lê politicamente, mas não é algo que eu goste muito, eu acho
que Sade não faz uma proposta política.
O que ele propõe?
Tem uma leitura
imediata, de dizer que ele é um libertário. E tem uma leitura crítica a ele,
que diz “pô, esse sujeito está propondo que a gente se mate, a violência sobre
o outro”. Agora, isso tudo diz respeito a pensar essa literatura dentro da
realidade, e Sade não está pensando no que acontece na realidade, e sim no que não acontece.
O sujeito, na obra de
Sade, não é o que o homem é, mas o que o homem não é. Como a gente pode pensar
um mundo em que todas, todas, todas as proibições estejam suspensas? Esse mundo
não existe. Então é uma passagem pra fantasia num regime absolutamente
integral.
É este o
deslizamento: passar de uma reivindicação de mudar o mundo, aqui e agora, que
eu acho válida, e ir dar num outro mundo. Foi isso que eu descobri, então sou
muito crítica ao feminismo. Mas sou grata ao feminismo por ter me aberto um
lugar como mulher para poder pensar isso, e também por ter aberto essa
possibilidade de pensar o corpo e a sexualidade no plano da fantasia. É esta a
política em Sade, se dá pra dizer assim: a possibilidade de pensar o totalmente
outro, totalmente fora daqui. E é incrível isso hoje, porque a mídia, tudo nos
coloca muito aqui, na realidade. A fantasia da indústria cultural é totalmente
realista, né?
Inclusive a fantasia
da indústria pornográfica? Ou ela é mais parecida com a do Sade?
Eu acho que a fantasia
da pornografia mais comercial, da internet, das revistas de banca, dos filmes
comerciais, ela é superchinfrim perto de Sade, do Bataille, da Hilda Hilst… Tem
uma fantasia hoje que é muito fast-food, ela não alça um voo alto, não dá um
mergulho fundo. Eu gosto mais dessa outra turma porque ela é muito mais
obscena, no sentido que eles fazem tábula rasa do mundo.
Você acha que a pornografia nos ensina sobre o sexo?
Esta conversa, que a
gente está tendo, é presidida por uma questão: o que é pornografia? Ou melhor:
quando falamos de pornografia, estamos entendendo o quê? Porque existe quem
separe pornografia de erotismo “Pornografia é em cima do genital; erotismo é
uma coisa velada, romântica…”, isso eu acho uma tonteria, é um critério moral.
Se a gente tira esse critério, só nos resta dizer que os dois são sinônimos.
Eu vou falar de
literatura, que é a minha área. Tanto Os
120 dias de Sodoma, de Sade, como O
caderno rosa de Lori Lamby, da Hilda Hilst, quanto a História do olho, de Georges
Bataille, são literatura erótica ou pornográfica. Como são o Cinquenta tons de cinza e a Bruna Surfistinha. Qual a
diferença? É que estes últimos são péssima literatura, e os outros são
excelente literatura. É uma diferença estética. Então você me pergunta: a
pornografia ensina? A pornografia comercial é didática, mas não ensina. Porque
ela é uma fôrma na qual você coloca o seu erotismo, e ela dá pouca
possibilidade de você fantasiar. O erotismo é criação também. Por isso a
criação e a erótica estão sempre juntas. Então isso que eu chamo de fast-food
do sexo é uma forminha pra sua fantasia. É didático no pior sentido. Ele te
abre uma porta? Não. Ele captura o teu desejo.
Agora, tem outro tipo
de texto que te transtorna e te coloca num lugar de interrogação, que pode ser
intelectual, mas que é sempre pra si mesmo. Ele talvez nem seja didático, mas
vai te abrir uma porta do conhecimento do teu corpo, do mundo…
Mas esses romances,
que são best-sellers, eles chocam determinado público, abrem também.
Isso é uma questão
importante. Mas o choque, se você pensar, é um choque previsto. Aliás, eu me
pergunto: será que choca? Eu sei que foi proibido, sei lá, num estado
brasileiro, que ainda tem aquela coisa da moral e dos bons costumes. Mas vamos
pensar aqui, São Paulo, um meio mais urbano, 2013. São milhões de pessoas
lendo, não chocou.
Eu fui obrigada a ler
o livro porque um amigo meu, editor do caderno Ilustríssima [da Folha de S.Paulo], me pediu
uma resenha. Achei uma coisa horrorosa do ponto de vista literário. Mas, gente,
é uma história superconvencional, de amor ingênuo, de uma mocinha virgem – em
2013, entende? –, ela está apaixonada por um milionário lindíssimo. Ela está
ambientada num cenário meio S&M [sadomasoquista], mas é a história
mais tradicional que existe. E sabe qual o objetivo da mocinha? É casar com o
milionário! É curar ele – pra usar essa palavra que está em voga no Brasil.
Então, quando a gente
vai olhar, vê que esse é um choque falso, porque ele está reafirmando uma série
de valores que são bem tradicionais.
Igual àqueles livros de banca, como Bianca, Sabrina…?
É. O Cinquenta tons de cinza é a atualização disso. E isso, por sua
vez, é a atualização de uma coisa muito antiga. Quando você vai estudar o
começo do romance moderno, começa a ver essas narrativas muito românticas. Na
França do século 17 elas se chamavam histoires
tragiques, as histórias trágicas, que são o quê? Uma mocinha pobre,
sofredora, de ótimos sentimentos… e aí você já sabe que do outro lado tem: um
homem muito forte, rico, que em algum momento vai salvá-la. É uma trama que
captura a imaginação, e esse é o foco de identificação com a leitora: “Ai, essa
mocinha sou eu, e vai aparecer o príncipe…”.
O Marquês de Sade
pega essa trama e faz Justine.
Só que ele desarma essa bomba romântica.
Como é Justine?
É um romance em que
Sade era tão interessado que ele o escreve três vezes, aumentando a cada vez. É
a história de duas irmãs: Juliette e Justine. Elas são de uma família muito
rica e ficam órfãs muito cedo. Como toda moça rica na França no século 18, elas
são criadas num convento – que, obviamente, é o maior antro de corrupção que
pode existir, pra Sade. Então, assim que as duas meninas ficam pobres, a
diretora do convento faz as piores coisas com elas, expulsando-as, inclusive. E
isso vai dar dois destinos completamente distintos, que são dois livros. Um é o Juliette, ou as prosperidades do
vício, e o outro é Justine,
ou os infortúnios da virtude.
Justine é o
tipo completo da virtuosa. Tudo pra ela é virtude, ela acredita em todo mundo –
obviamente acredita em Deus. E a Juliette é ateia, não acredita em nada, é uma
moça superesperta. A Juliette se torna uma grande libertina. Tem uma carreira
muito bem-sucedida na prostituição, mata vários de seus amantes, acumula uma
enorme fortuna. Ela é, segundo o poeta Apollinaire, “o ser mais livre que já
existiu sobre a face da terra”.
A Justine tem a
carreira oposta, ela é o protótipo daquela moça que tem um destino trágico.
Então ela encontra uma velhinha, que parece muito boazinha, que vai ajudá-la…
mas essa velhinha na verdade é uma cafetina de um grande bordel, e ela vai ser
seviciada lá! Então ela consegue fugir, e está numa floresta, sozinha, quase
desfalecida, e vê no alto de uma montanha um mosteiro, e ela chega lá e diz “eu
vou me refugiar aqui pro resto da minha vida!”. Ela bate… e abre a porta um
monge, que diz pra ela: “Entre, minha filha. Não há casa na França onde se
formem moças como aqui”. E ela entra nesse mosteiro, que era uma capelinha
pequenininha, e ele tem sete andares subterrâneos, onde os monges se entregam
às piores lascívias [risos]!
E assim vai
indo. Até que no final dos dois livros, que são imensos, elas se encontram. E,
depois de Justine ter passado pelas piores coisas que existem na terra, a irmã
a convida para uma orgia. Justine quer fugir, abre uma janela e o corpo dela é
atravessado por um raio! Ela morre dessa forma cósmica. E Juliette ainda se
vale, com os libertinos, do corpo da irmã para uma orgia particular. Mas isso é
uma sinopse, né.
Justine é esse mito,
que está aí até no Cinquenta
tons de cinza, e que Sade desmonta.
Mas isso não é político?
É. Mas quando eu digo
que Sade não é imediatamente político, é que ele não tem um projeto mais
imediato. Por exemplo, o grupo [de
teatro] Os Satyros – que são
meus amigos, com quem aprendo muito –, eles costumam fazer uma leitura muito
política de Sade. Os 120 dias
de Sodoma, que é um livro que vai retratar todas as fantasias sexuais,
terminava na peça como se se passasse em Brasília. A corrupção que está em Sade
não é a mesma de Brasília! Não tem nada a ver. Nesse sentido me grila essa
leitura política.
É que eu pensei na política como o desmonte de um status
quo. Que acho que é a nossa visão na Geni: a política não só
como a coisa institucional, mas uma atitude de não conformidade.
Concordo. Essa
liberdade inconcebível de Sade atinge o sentido mais profundo da política.
E o filme do Pasolini, Salò ou os 120 dias de
Sodoma, o que você acha dele?
Eu tenho uma atitude
ambivalente em relação ao filme. Pegar essa estrutura que está em Sade, essa
fantasia, e transportá-la para a República de Salò [Estado fascista criado por
Mussolini no norte da Itália] é
um reducionismo. A violência que está no fascismo não é a que está em Sade. A
violência de Sade é poética, ele quer rivalizar com as forças da natureza. O
libertino de Sade está olhando o vulcão Etna, que está em pleno trabalho, e
diz: “Eu queria ser esse vulcão”. Por isso eu digo: ele está falando daquilo
que o homem não é. Então pegar essa violência poética e transferi-la para o
fascismo, eu acho uma leitura equivocada, a princípio.
No entanto, esse filme
é tão bem-feito que não para aí. Ele vai entrando nesse imaginário, e, quando
você chega no fim do filme, ele está em outro lugar. E aí o Pasolini se conecta
com Sade. É o lugar do impossível, do insuportável, daquilo que perde a medida.
Ele lança aquilo tudo a um ponto de fuga que você não captura mais, que não
cabe mais ali.
É um filme
interessante, mas ele reduz a violência cósmica de Sade a um evento que foi
vivido. Eu acho que Sade trabalha com o plano do inconcebível, que se mantém
assim. E a violência do fascismo e do nazismo é da ordem do impraticável, mas
que foi praticado.
Em uma entrevista, o Michel Foucault fala que o Sade
estava sendo considerado, nos anos 60, precursor da libertação sexual. Mas que
ele achava que o Sade era precursor dos campos de concentração. O que você acha
disso? Por que a violência do nazismo também é inconcebível, mas foi posta em
prática.
Eu acho que Sade não
é nem precursor do nazismo, nem, de jeito nenhum, da liberdade sexual. Eu leio
a obra dele como uma espécie de teatro do desejo, onde se pode tudo como
teatro. Ela é uma fantasmagoria, nunca um projeto pra prática. No teatro do meu
desejo, eu sou um déspota – que não é Hitler! Eu sou um déspota porque posso
manipular, nesse teatro, com toda a liberdade que eu quiser. Como isso pode se
conectar com a prática, isso é outra coisa.
Eu até acho que a
elaboração desse lugar tão radical permite que a gente, na nossa vidinha comum,
não queira partir para a prática. Mas isso revela um pouco de medo da fantasia,
como a gente quer imediatamente aprisionar a fantasia.
O Cinquenta tons de cinza não dá medo, né?
Dá um medinho [risos]. Mas não dá medo. Em Sade, não existe
sadomasoquismo, não é possível no universo dele. A última coisa que o sádico
quer no mundo é encontrar um masoquista, porque a fantasia soberana dele é
infligir dor em todo mundo! Se aparecer alguém que diz “bate, que eu gosto”,
pra ele já não interessa.
E se você pegar lá o Vênus de peles, do grande
escritor do século 19 que foi o Leopold von Sacher-Masoch, o masoquista é que
quer constituir o sádico, a fantasia dele é que é soberana. Esse casamento
entre o sádico e o masoquista é impossível pela literatura, porque são
fantasias absolutas e soberanas. A ideia S&M não tem a ver nem com Sade nem
com Masoch, ela é o combinado de outra coisa. Ela é pragmática.
Eu acho que um clube
S&M pode até me chocar, mas ele é uma pragmática, não está voltado ao
sentido maior dessa fantasia, não é nem pode ser voltado ao absoluto. Ou não
sobraria ninguém de cada noitada.
Acho que o problema
que está aqui na nossa conversa é qual a ligação entre fantasia e corpo.
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