Expositores, do surrealista Marcel Caram |
Por Mario Sergio Cortella
Em 1980, o essencial Carlos Drummond de Andrade, já com 78 anos de
idade, publicou o livro A Paixão Medida e nele inseriu uma provocação poética
chamada “A suposta existência”. Nas duas estrofes iniciais está o desafio:
Como é o lugar
Quando ninguém passa por ele?
Existem as coisas
Sem ser vistas?
O interior do apartamento desabitado,
A pinça esquecida na gaveta,
Os eucaliptos à noite no caminho deserto,
A formiga sob a terra do domingo
Os mortos, um minuto depois de sepultados,
Nós, sozinhos
No quarto sem espelho?
Ora, uma das mais antigas indagações humanas diz respeito à concretude e
existência efetiva do real; há séculos que reflexões e escritos procuram, tanto
no Ocidente quanto no Oriente, estabelecer algum parâmetro que permita dizer com
certeza que aquilo que pensamos ou sentimos existe de fato, não sendo apenas
pura imaginação delirante ou ficção passageira. É clássica uma pequena
história, de muitos e diferentes modos recontada, que diz ter um sábio chinês
adormecido e sonhado que era uma borboleta; nesse sonho, a borboleta também
dorme e sonha ser um sábio chinês. Quando acordam, quem acorda? Quem acorda o
quê? Quem era quem ao despertar? Qual era a realidade e qual o sonho?
Pode parecer perda de tempo refletir sobre coisas assim, mas a
construção de referências confiáveis para qualquer ação ou pensamento é
exatamente a base sobre a qual se assentam elaborações da Arte, da Filosofia,
da Religião e da Ciência. Por isso, no século 18 o filósofo irlandês George
Berkeley também procurava uma referência confiável, especialmente para
sustentar sua defesa extremada da supremacia do espírito sobre a matéria.
Encontrou-a em um axioma latino (embora pudesse ser máxima publicitária
atual): Esse est percipere aut perciperi (Ser é perceber e ser
percebido).
O que não é percebido não existe, ou seja, o que não for notado e
distinguido perde efetividade.
Em 1944, Jean-Paul Sartre escreveu Entre Quatro Paredes, uma
de suas mais provocadoras peças de teatro. Encenada com adaptações diversas
pelo mundo afora, tem um enredo básico: três pessoas desconhecidas entre si,
duas mulheres (a insolente Inês e a fútil Estelle) e um homem (o acovardado
Garcin), morrem e, para surpresa completa, vão parar em um cômodo fechado, sem
janelas, espelhos e quase nada de móveis; ali, queiram ou não, terão de
conviver por tempo indefinido e, claro, suportar-se obrigatória e
reciprocamente.
Naquele lugar, o amanhã é sempre a eternidade da presença detestável de
outras pessoas com as quais não se queria estar, mas não há como escapar dessa
condição (como acontece com muita gente em férias forçadas, em famílias impostas,
em empregos enfadonhos, em lazeres alienantes ou em feriados prolongados).
É nessa peça que se encontra o famoso – e nem sempre incorreto –
vaticínio: “O inferno são os outros”. Metáfora da vida contemporânea (desde
aquela época), a peça inquieta profundamente o mundo das plastificadas
convenções sociais, das muitas e tolas vaidades estéticas, das perigosas
elasticidades morais e, como complemento sólido, é um desesperador passeio pelo
reino das hipocrisias, imposturas e dissimulações das quais somos capazes na
breve existência. Há uma cena marcante para demonstrar a parceria entre a
futilidade e o desprezo intencional: como não havia espelhos no cômodo – para
aflição da vaidosa Estelle –, esta precisa que as duas pessoas digam a ela como
está a sua aparência. Nada dizem; calam e a torturam com o silêncio, impedindo
que saiba por outros como está ela mesma.
A ressurreição eventual do pensamento de Berkeley vem sendo feita de
modo hiperbólico, exagerado, exaltado. Não é raro nos depararmos com aqueles
que sucumbem aos apelos sombrios oriundos de algumas mídias que proclamam a
importância de sermos vitimados por celebridades provisórias, famas
instantâneas e personalidades velozmente dissolúveis; parece que a única regra
é ser percebido.
Riquezas aparentes, misérias reais...
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