Segue aí um sugestivo artigo do historiador Jaime Pinsky, originalmente intitulado 'Um mundo sem utopias'. Trata-se de uma reflexão de significativa relevância para os dias atuais.
Por Jaime Pinsky
O
processo civilizatório se desenvolve desde que existe o ser humano. A
descoberta do fogo, a invenção da roda, a domesticação de animais, a elaboração
de deuses, a estruturação das cidades foram marcos na história da humanidade.
Mas, depois da fala, dificilmente
encontraremos fatores civilizatórios mais importantes do que a criação, a
racionalização e a universalização da palavra escrita. Por meio dela, o homem
se tornou capaz não apenas de produzir cultura como de guardá-la de modo
eficiente e de, mais ainda, transmiti-la aos contemporâneos e às gerações
seguintes.
Com a escrita tornava-se mais fácil
apresentar descobertas, descrever invenções, divulgar técnicas, expor ideias,
confessar fraquezas, compartilhar sentimentos.
Praticada, inicialmente, apenas por elites a
escrita espalhava com muita parcimônia o saber acumulado, uma vez que o
conservadorismo dos detentores do poder bloqueava a democratização dos avanços
na cultura material e imaterial.
Com os papiros e pergaminhos, inicialmente, e
mais tarde com o papel e, mais ainda, com a imprensa de tipos móveis, a
cultura, no sentido de patrimônio acumulado, passou a alcançar um número cada
vez maior de pessoas, democratizando o saber e dando oportunidades a uma
parcela importante da população. Sem a palavra escrita, em geral, e sem o
livro, em particular, a história não teria sido a mesma.
Ao longo do século 19, nos países mais
desenvolvidos, as pessoas foram aprendendo a ler e a escrever. A desvalorização
do trabalho braçal, substituído por máquinas, o crescimento do setor de
serviços, o aumento da produtividade no campo, o crescimento das cidades: o
mundo parecia caminhar para uma realidade sonhada pelos utopistas.
Ao ler livros, ao escrever cartas, ao redigir
o resultado de reflexões complexas, os cidadãos compartilhavam ideias e
sentimentos, tão mais densos quanto mais habilitados estivessem nas técnicas da
escrita e da leitura. Era permitido sonhar com uma sociedade universal de gente
alfabetizada com oportunidades de ascensão social determinadas apenas pelos
seus méritos. Não por acaso é o momento das grandes utopias igualitárias.
Já no século 21 as utopias parecem coisas de
um passado remoto. Mesmo não gostando do mundo como está, parece que desistimos
de mudá-lo. Vivemos ou em sociedades consumistas, ou burocráticas, ou
fundamentalistas. Fingimos que a felicidade pode ser encontrada comprando
mercadorias, obedecendo regras, ou acreditando em um improvável mundo
pós-morte.
Jogamos no lixo milhares de anos de avanço
civilizatório e nos transformamos em meros consumidores de softwares. Estamos
perdendo a habilidade de ler textos complexos, nos conformamos com a pobreza da
linguagem das redes sociais.
Em nome da interatividade sentimo-nos
qualificados a ser banais. Sem leituras sérias abdicamos do patrimônio cultural
da humanidade, arduamente construído ao longo de milênios.
Não precisamos sequer de um Grande Irmão para
ordenar a queima de livros: queimamos nossas estantes, por inúteis. E nem as
substituímos por livros digitais, já que vamos deixar o saber apenas para os
criadores de software.
-------------------------------------------
Fonte: Folha de São Paulo, versão para assinantes, edição do dia 24/08/2015.
Nenhum comentário:
Postar um comentário