terça-feira, 18 de agosto de 2015

O Imortal

Borges em realce: finitude e os "eus". A insignificância de um "pós-tudo" - o "estado do nada". Ou da necessidade de vivência da mortalidade. 


Por Jorge Luis Borges
Em Londres, no início do mês de junho de 1929, o antiquário Joseph Cartaphilus, de Esmirna, ofereceu à princesa de Lucinge os seis volumes in quarto menor (1715-20) da Ilíada de Pope. A princesa adquiriu-os; ao recebê-los, trocou algumas palavras com ele. Era, nos diz, um homem acabado e terroso, de olhos cinza e barba cinza, de traços singularmente vagos. Manejava com fluidez e ignorância várias línguas; em pouquíssimos minutos passou do francês ao inglês e do inglês a uma conjunção enigmática de espanhol de Salonica com português de Macau. Em outubro, a princesa ouviu de um passageiro do Zeus que Cartaphilus tinha morrido no mar, ao regressar de Esmirna, e que o haviam enterrado na ilha de Ios. No último tomo da Iliada, ela encontrou este manuscrito.
O original está redigido em inglês e é pródigo em latinismo. A versão que oferecemos é literal.
I
Que eu me lembre, minhas provações começaram num jardim de Tebas Hecatômpilos, quando Diocleciano era imperador. Eu tinha militado (sem glória) nas recentes guerras egípcias, como tribuno de uma legião que esteve aquartelada em Berenice, defronte do mar Vermelho: a febre e a magia consumiram muitos homens que, magnânimos, cobiçavam o aço. Os mauritanos foram vencidos; a terra que antes as cidades rebeldes ocupavam foi eternamente dedicada aos deuses plutônicos; Alexandria, debelada, implorou em vão a misericórdia do César; antes de um ano, as legiões relataram o triunfo; eu, porém, mal consegui divisar o rosto de Marte. Essa privação me magoou e foi talvez a causa que me impeliu a descobrir, através de temerosos e difusos desertos, a secreta Cidade Dos Imortais.
Minhas provações começaram, como mencionei, num jardim de Tebas. A noite toda não dormi, pois algo estava lutando em meu coração. Levantei-me pouco antes do amanhecer; meus escravos dormiam, a lua tinha a mesma cor da infinita areia. Um cavaleiro exausto e ensanguentado vinha do oriente. A alguns passos de mim, rolou do cavalo. Com uma tênue voz insaciável perguntou-me em latim o nome do rio que banhava os muros da cidade. Respondi-lhe que era o Egito, alimentado pelas chuvas. “É outro rio que procuro”, replicou tristemente, “o rio secreto que purifica os homens da morte”. Um sangue escuro manava de seu peito. Disse-me que sua pátria era uma montanha que está do outro lado do Ganges e que nela diziam que, se alguém caminhasse para o ocidente, onde o mundo acaba, chegaria ao rio cujas águas dão a imortalidade. Acrescentou que na margem posterior se ergue a Cidade dos Imortais, rica em baluartes e anfiteatros e templos. Antes da aurora morreu, mas tomei a decisão de descobrir a cidade e o rio. Interrogados pelo algoz, alguns prisioneiros mauritanos confirmaram o relato do viajante; alguém recordou a planície elísia, no término da Terra, onde a vida dos homens é perdurável; outros, os cimos onde nasce o Pactolo, cujos moradores vivem um século. Em Roma, conversei com filósofos que sentiram que aumentar a vida dos homens era aumentar sua agonia e multiplicar o número de suas mortes. Ignoro se algum dia acreditei na Cidade dos Imortais: penso que então me bastou o trabalho de procurá-la. Flávio, procônsul da Getúlia, entregou-me duzentos soldados para o empreendimento. Também recrutei mercenários, que se diziam conhecedores dos caminhos e foram os primeiros a desertar.
Fatos ulteriores deformaram até o inextricável a lembrança de nossas primeiras jornadas. Partimos de Arsínoa e entramos no deserto em brasa. Atravessamos o país dos trogloditas, que devoram serpentes e carecem do comércio da palavra; o dos garamantes, que têm mulheres em comum e se alimentam de leões; o dos augilas, que só veneram o Tártaro. Exaurimos outros desertos, onde a areia é negra, onde o viajante deve usurpar as horas da noite, pois o fervor do dia é intolerável. Divisei de longe a montanha que deu nome ao Oceano: em suas ladeiras cresce o eufórbio, que anula os venenos; no cume, habitam os sátiros, nação de homens bestiais e rústicos, inclinados a luxúria. Que aquelas regiões bárbaras, onde a mãe de monstros, pudessem abrigar em seu seio uma cidade famosa pareceu a todos nós inconcebível. Prosseguimos a marcha, pois teria sido uma afronta retroceder. Alguns temerários dormiram com o rosto exposto a lua; a febre os fez arder; na água deteriorada das cisternas outros beberam a loucura e a morte. Começaram então as deserções; imediatamente depois, os motins. Para reprimi-los, não vacilei diante do exército da severidade. Procedi retamente, mas um centurião me advertiu de que os sediciosos (ávidos de vingar a crucificação de um deles) maquinavam minha morte. Fugi do acampamento com os poucos soldados que me eram fiéis. No deserto os perdi, em meio aos redemoinhos de areia e à vasta noite. Uma flecha cretense me feriu. Vários dias errei sem encontrar água, ou um único dia enorme, multiplicado pelo sol, pela sede e pelo temor da sede. Deixei o meu caminho no arbítrio do meu cavalo. No alvorecer, o horizonte ficou eriçado de pirâmides e torres. Sonhei, insuportavelmente, com um labirinto exíguo e nítido: no centro havia um cântaro; minhas mãos quase o tocavam, meus olhos o viam, mas tão intrincadas e perplexas eram as curvas, que eu sabia que ia morrer antes de alcançá-lo.
II

Ao me desenredar afinal desse pesadelo, vi-me deitado e manietado num nicho de pedra oblongo, não maior que uma sepultura comum, superficialmente escavado do íngreme declive de uma montanha. Os lados eram úmidos, polidos antes pelo tempo que pela indústria. Senti no peito um doloroso latejar, senti que a sede me abrasava. Ergui-me e gritei fracamente. Ao pé da montanha se estendia sem rumor um riacho impuro, atravancado por escombros e areia; na margem oposta resplandecia (sob o último sol ou sob o primeiro) a evidente Cidade Dos Imortais. Vi muros, arcos, frontispícios e foros: o fundamento era uma meseta de pedra. Uma centena de nichos irregulares, análogos ao meu, sulcava a montanha e o vale. Na areia havia poços de pouca fundura; desses buracos mesquinhos (e dos nichos) emergiam homens de pele cinza, de barba negligente, despidos. Julguei reconhecê-los: pertencia à estirpe bestial dos trogloditas, que infestam as margens do golfo Arábico e as grutas etíopes; não me espantei que não falasse e que devorassem serpentes.

A urgência da sede me tornou temerário. Considerei que estava a uns trinta pés de areia; atirei-me, os olhos fechados, as mãos atadas nas costas, montanha abaixo. Enfiei o rosto ensanguentado na água escura. Bebi como bebem os animais. Antes de me perder de novo no sono e nos delírios, repeti, inexplicavelmente, algumas palavras gregas: “Os ricos teucros de Zeléia que bebem a água negra do Esepo…”.
Não sei quantos dias e noites rolaram sobre mim. Dolorido, incapaz de recuperar o abrigo das cavernas, nu na ignorada areia, deixei que a lua e o sol brincassem com meu destino aziago. Os trogloditas, infantis na barbárie, não me ajudaram a sobreviver nem a morrer. Roguei-lhes, em vão, que me matassem. Um dia, como o gume de um pedernal cortei minhas ligaduras. Outra vez, levantei e consegui mendigar ou roubar – eu, Marco Flamínio Rufo, tribuno militar de uma das legiões de Roma – minha primeira detestada nação de carne de serpente.
A ânsia de ver os Imortais, de tocar a Cidade sobre-humana, quase não me deixava dormir. Como se penetrassem em meu propósito, tampouco os trogloditas dormiam: no início deduzi que me vigiavam; depois, que tinham se contagiado com minha inquietação, assim com os cães se contagiam. Para me afastar da bárbara aldeia, escolhi a mais pública das horas, o declínio da tarde, quando quase todos os homens emergem das gretas e dos poços e olham o poente, sem vê-lo. Rezei em voz alta, menos para suplicar o favor divino que para intimidar a tribo com palavras articuladas. Atravessei o riacho obstruído pelos bancos de areia e me dirigi à Cidade. De maneira confusa, dois ou três homens me seguiram. Eram (como os demais daquela linhagem) de pequena estatura; não inspiravam medo, mas repulsa. Devo ter contornado algumas depressões irregulares que me pareceram pedreiras; ofuscado pela grandeza da Cidade, eu julgara próxima. Por volta da meia-noite, pisei, eriçada de formas idolátricas na areia amarela, a sombra negra de seus muros. Uma espécie de horror sagrado me deteve. Tão abominados pelo homem são a novidade e o deserto, que me alegrei de ter sido acompanhado até o fim por um dos trogloditas. Fechei os olhos e aguardei (sem dormir) que raiasse o dia.
Afirmei que a Cidade estava construída sobre uma meseta de pedra. Essa meseta comparável a uma escarpa não era menos árdua que os muros. Gastei, em vão, meus passos: o negro embasamento não deixava ver a menor irregularidade, os muros invariáveis não pareciam consentir uma única porta. A força do dia fez com que eu me refugiasse numa caverna; no fundo havia um poço, no poço uma escada que se abismava rumo à treva inferior. Desci; cheguei, por um caos de sórdidas galerias, a uma vasta câmara circular que mal se via. Naquele porão havia nove portas; oito davam para um labirinto que falazmente desembocava na mesma câmara; a nona (através de outro labirinto) dava numa segunda câmara circular, idêntica à primeira. Ignoro o número total de câmaras; minha desventura e minha ansiedade multiplicaram-nas. O silêncio era hostil e quase perfeito; não havia outro ruído naquelas profundas redes de pedra a não ser o vento subterrâneo, cuja causa não descobri; sem som, fios de água enferrujada se perdiam em meio às gretas. Habituei-me, com horror, àquele mundo duvidoso; julguei incrível que pudesse existir outra coisa além de porões providos de nove portas e de porões compridos que se bifurcam. Ignoro o tempo que tive de caminhar sob a terra; sei que cheguei a confundir, na mesma saudade, a atroz aldeia dos bárbaros e minha cidade natal, entre cachos de uva.
No fundo de um corredor, um muro não previsto me barrou a passagem, uma luz remota caiu sobre mim. Ergui os olhos ofuscados; no centro da vertigem, lá no alto, vi um círculo de céu tão azul que chegou a me parecer de púrpura. Degraus de metal escalavam o muro. O cansaço me relaxava, mas subi, parando às vezes para soluçar tolamente de felicidade. Fui divisando capitéis e astrágalos, frontões triangulares e abóbodas, confusas pompas de granito e do mármore. Assim consegui ascender da cega região de negros labirintos entretecidos até a Cidade resplandecente.
Emergi numa espécie de pracinha; ou melhor, de pátio. Era rodeado por um único edifício de forma irregular e altura variável; a esse edifício heterogêneo pertenciam as diversas cúpulas e colunas. Mais que qualquer outro traço daquele monumento incrível, surpreendeu-me a antiguidade da construção. Senti que era anterior aos homens, anterior à Terra. Aquela notória antiguidade (embora de certo modo terrível para os olhos) pareceu-me adequada ao trabalhado de operários imortais. De inicio cautelosamente, depois com indiferença, enfim com desespero, errei por escadas e pavimentos do inextricável palácio. (Depois averiguei que eram inconstantes a extensão e altura dos degraus, fato que me fez compreender o singular cansaço que me deram.) “Este palácio é obra dos deuses”, pensei primeiro. Explorei os recintos desabitados e corrigi: “Os deuses que o construíram morreram”. Notei suas peculiaridades e disse: “Os deuses que o construíram estavam loucos”. Disse, bem sei, com uma incompreensível reprovação que era quase um remorso, com mais horror intelectual que medo sensível. À impressão de enorme antiguidade vieram juntar-se a outras: a do interminável, do atroz, do complexamente insensato. Eu tinha atravessado um labirinto, mas a nítida Cidade dos Imortais me causou medo e repugnância. Um labirinto é uma casa construída para confundir os homens; sua arquitetura, pródiga em simetrias, está subordinada a essa finalidade. No palácio, que explorei imperfeitamente, a arquitetura carecia de finalidade. Eram numerosos os corredores sem saída, as altas janelas inalcançáveis, as portas colossais que davam para uma cela ou para um poço, as incríveis escadas inversas, com os degraus e a balaustrada para baixo. Outras, aderidas aereamente ao flanco de um muro monumental, morriam sem chegar a lugar algum, depois de duas ou três voltas, na treva superior das cúpulas. Ignoro se todos os exemplos que enumerei são literais; Sei que durante muitos anos infestaram meus pesadelos; já não consigo saber se este ou aquele traço é uma transcriação da realidade ou das formas que desatinaram minhas noites. “Esta Cidade” (pensei) “é tão horrível que sua mera existência e perduração, ainda que no centro de um deserto secreto, contamina o passado e o futuro e de certo modo compromete os astros. Enquanto perdurar, ninguém no mundo poderá ser corajoso ou feliz.” Não quero descrevê-la; um caos de palavras heterogêneas, um corpo de tigre ou de touro, em que pululassem monstruosamente, conjugados e odiando-se, dentes, órgãos e cabeças, podem (talvez) ser imagens aproximativas.
Não recordo as etapas de minha volta, em meio aos poeirentos e úmidos hipogeus. Sei tão-só que não me abandonava o tremor de que, ao sair do último labirinto, me rodeasse outra vez a nefanda Cidade dos Imortais. Nada mais posso recordar. Aquele esquecimento, agora insuperável, foi quem sabe voluntário; quem sabe as circunstâncias de minha evasão tenham sido tão ingratas que, em algum dia não menos esquecido também, jurei esquecê-las.
III
Aqueles que tiverem lido com atenção o relato de minhas provações lembrarão que um homem da tribo me seguiu como um cão poderia me seguir, até a sombra irregular dos muros. Quando saí do último porão, encontrei-o na boca da caverna. Estava deitado na areia, onde traçava desajeitadamente e apagava uma fileira de signos, que eram como as letras dos sonhos, que alguém está a ponto de entender e depois se confundem. No início, acreditei que se tratava de uma escrita bárbara; depois vi que é absurdo imaginar que homens que não chegaram à palavra cheguem à escrita. Além do mais, nenhuma das formas era igual a outra, o que excluía ou afastava a possibilidade de que fossem simbólicas. O homem as traçava, olhava e corrigia. De repente, com se aquele jogo o cansasse, apagou-as com a palma e o antebraço. Olhou-me, não me pareceu me reconhecer. Contudo, tão grande era o alívio que me inundava (ou tão grande e medrosa minha solidão), que comecei a pensar que aquele troglodita rudimentar, que me olhava do chão da caverna, ficara me esperando. O sol escaldava à planície; quando empreendemos a volta à aldeia, sob as primeiras estrelas, a areia estava ardente sob os pés. O troglodita me precedeu; naquela noite concebi o projeto de ensina-lo a reconhecer, e talvez a repetir, algumas palavras. O cão e o cavalo (refleti) são capazes de reconhecer; muitas aves, como o rouxinol dos Césares, de repetir. Por mais tosco que fosse o entendimento de um homem, sempre seria superior a dos irracionais.
A humildade e a miséria do troglodita me trouxeram à memória a imagem de Argos, o velho cão moribundo da Odisséia, e assim o chamei de Argos e tratei de ensinar-lhe o nome. Fracassei e tornei a fracassar. Os ardis, o rigor a obstinação foram inteiramente vãos. Imóvel, com os olhos inertes, não parecia perceber os sons que eu lhe procurava inculcar. A alguns passos de mim, era como se estivesse muito longe. Deitado na areia, como uma pequena e ruinosa esfinge de lava, deixava que sobre ele girassem os céus, do crepúsculo do dia ao da noite. Julguei impossível que não percebesse meu propósito. Lembrei que entre os etíopes consta que os macacos deliberadamente não falam para que não os obriguem a trabalhar e atribuí a suspicácia ou temor o silêncio de Argos. Dessa fantasia passei a outras, ainda mais extravagantes. Pensei que Argos e eu participávamos de universos diferentes; pensei que nossas percepções eram iguais, mas que Argos as combinava de outra maneira e com elas construía outros projetos; pensei que talvez não houvesse objetos para ele, mas um vertiginoso e contínuo jogo de impressões brevíssimas. Pensei num mundo sem memória, sem tempo; considerei a possibilidade de uma linguagem que ignorasse os substantivos, uma linguagem de verbos impessoais ou de epítetos indeclináveis. Assim foram morrendo os dias e com os dias os anos, mas alguma coisa parecida à felicidade ocorreu uma manhã. Choveu, com poderosa lentidão.
As noites do deserto podem ser frias, mas aquela havia sido um fogo. Sonhei que um rio da Tessália (a cujas águas eu restituíra um peixe de ouro) vinha me resgatar; sobre a rubra areia e a negra pedra eu o ouvia aproximar-se; o frescor do ar e o burburinho agitado da chuva me acordaram. Corri nu para recebê-la. Declinava a noite; sob nuvens amarelas a tribo, não menos feliz que eu, oferecia-se ao vívido aguaceiro numa espécie de êxtase. Pareciam coribantes possuídos pela divindade. Argos, com os olhos postos na esfera, gemia; caudais lhe rolavam pelo rosto; não só de água, mas (soube depois) de lágrimas. “Argos”, gritei, “Argos”.
Então, com mansa surpresa, como se descobrisse uma coisa perdida e esquecida há muito tempo, Argos balbuciou estas palavras: “Argos, cão de Ulisses”. E depois, também sem olhar para mim: “Este cão deitado no esterco”.
Facilmente aceitamos a realidade, talvez por intuir que nada é real. Perguntei-lhe o que sabia da Odisséia. A prática do grego lhe era penosa; tive de repetir a pergunta.
“Muito pouco”, disse. “Menos que o mais pobre dos rapsodos. Já terão passado mil e cem anos desde que a inventei.”
IV
Tudo ficou elucidado naquele dia. Os trogloditas eram os Imortais; o riacho de águas arenosas, o rio que o cavaleiro procurava. Quanto à cidade cujo renome se propalara até o Ganges, nove séculos faria que os Imortais a tinham arrasado. Com as relíquias de sua ruína ergueram, no mesmo lugar, a cidade desatinada que eu percorri: espécie de paródia ou reverso e também templo dos deuses irracionais que manejam o mundo e de quem nada sabemos, exceto que não se parecem com o homem. Aquela fundação foi o último símbolo a que codescenderam os Imortais; marca uma etapa em que, julgando que todo empreendimento é inútil, decidiram viver no pensamento, na pura especulação. Ergueram a obra, esqueceram-na e foram morar nas covas. Absortos, quase não percebiam o mundo físico.
Essas coisas foram relatadas por Homero, como quem fala com um menino. Ele também me relatou sua velhice e a derradeira viagem que empreendeu, movido, como Ulisses, pelo propósito de chegar aos homens que não sabem o que é o mar nem comem carne temporada com sal nem suspeitam o que seja um remo. Viveu um século na Cidade dos Imortais. Quando a derrubaram, aconselhou a fundação de outra. Isso não deve nos surpreender; consta que, depois de cantar a guerra de Ìlion, cantou a guerra das rãs e dos ratos. Foi como um deus que criasse o cosmo e depois o caos.
Ser imortal é ser insignificante; exceto o homem, todas as criaturas o são, pois ignoram a morte; o divino, o terrível, o incompreensível, é se saber imortal. Notei que, apesar das religiões, essa convicção é raríssima. Israelitas, cristãos e mulçumanos professam a imortalidade, mas a veneram que tributam ao primeiro século prova que somente creem nele, uma vez que destinam todos os demais, em número infinito, a premiá-lo ou castigá-lo. Mais razoável me parece a roda de certas religiões do Hindustão; nessa roda, que não tem princípio nem fim, cada vida é efeito da anterior e engendra a seguinte, mas nenhuma determina o conjunto… Doutrinada por um exercício de séculos, a república de homens imortais atingira a perfeição da tolerância e quase do desdém. Sabia que num prazo infinito a todo homem acontecem todas as coisas. Por suas virtudes passadas ou futuras, todo homem é credor de toda bondade, mas também de toda traição, por suas infâmias do passado ou do futuro. Assim como nos jogos de azar as cifras pares e as cifras impares tendem ao equilíbrio, do mesmo modo também se anulam e se corrigem o engenho e a estupidez, e talvez o rústico Poema do Cid seja o contrapeso exigido por um único epíteto de Églogas ou por uma sentença de Heráclito. O pensamento mais fugaz obedece a um desenho invisível e pode coroar, ou inaugurar, uma forma secreta. Sei de quem praticasse o mal para que nos séculos futuros resultasse o bem, ou tivesse resultado nos já pretéritos… Encarados assim, todos os nossos atos são justos, mas também são indiferentes. Não há méritos morais ou intelectuais. Homero compôs a Odisséia; postulado um prazo infinito, com infinitas circunstâncias e mudanças, o impossível é não compor, nem uma única vez, a Odisséia. Ninguém é alguém, um único homem imortal é todos os homens. Como Cornélio Agrippa, sou deus, sou herói, sou filósofo, sou demônio e sou mundo, o que é uma cansativa maneira de dizer que não sou.
O conceito do mundo como sistema de precisas compensações influiu vastamente nos Imortais. Em primeiro lugar, tornou-os invulneráveis à piedade. Mencionei as antigas pedreiras que irrompiam nos campos da outra margem; um homem despencou na mais funda; não podia se ferir nem morrer, mas a sede o abrasava; até que lhe atirassem uma corda passaram setenta anos. O próprio destino também não tinha interesse. O corpo era um submisso animal doméstico e lhe bastava, todo mês, a esmola de algumas horas de sono, de um pouco de água e de um naco de carne. Que ninguém queira nos rebaixar a ascetas. Não há prazer mais complexo que o pensamento e a ele nos entregávamos. Às vezes, um estímulo extraordinário nos restituía ao mundo físico. Por exemplo, naquela manhã, o velho prazer elementar da chuva. Esses lapsos eram raríssimos; todos os Imortais eram capazes da perfeita quietude; lembro-me de um que jamais vi de pé: um pássaro fizera ninho em seu peito.
Entre os corolários da doutrina de que não há coisa que não seja compensada por outra, existe um de pouquíssima importância teórica mas que nos induziu, no fim ou no início do século X, a nos dispersarmos pela face da Terra. Cabe nestas palavras: “Existe um rio cujas águas dão a imortalidade; em alguma região haverá outro cujas águas a apaguem”. O número de rios não é infinito; um viajante imortal que percorrer o mundo acabará, algum dia, por ter bebido de todos. Propusemo-nos a descobrir aquele rio.
A morte (ou sua alusão) torna preciosos e patéticos os homens. Estes comovem por sua condição de fantasmas; cada ato que executam pode ser o último; não há rosto que não esteja por se dissipar como o rosto de um sonho. Tudo, entre os mortais, tem valor do irrecuperável e do casual. Entre os Imortais, por sua vez, cada ato (e cada pensamento) é o eco de outros que no passado o antecederam, sem princípio visível, ou o fiel presságio de outros que no futuro o repetirão até a vertigem. Não há coisa que não esteja como que perdida entre incansáveis espelhos. Nada pode acontecer uma única vez, nada é preciosamente precário. O elegíaco, o grave, o cerimonioso não contam para os Imortais. Homero e eu nos separamos nas portas do Tânger; creio que não nos dissemos adeus.
V
Percorri novos reinos, novos impérios. No outono de 1066 militei na ponte de Stamford, já não me lembro se nas fileiras de Harold, que não tardou a encontrar seu destino, ou nas daquele infausto Harald Hardrata, que conquistou seis pés de terra inglesa, ou um pouco mais. No século VII da Hégira, no arrabalde de Bulaq, transcrevi com pausada caligrafia, num idioma que esqueci, num alfabeto que ignoro, as sete viagens de Simbad e a história da Cidade de Bronze. Num pátio da prisão de Samarcanda joguei muitíssimo xadrez. Em Bikanir professei a astrologia e também na Boêmia. Em 1638 estive em Kolozsvár e depois em Leipzig. Em Aberdeen, em 1714, subscrevi para os seis volumes da Ilíada de Pope; sei que os frequentei com deleite. Por volta de 1729 discuti a origem desse poema com um professor de retórica, chamado, creio, Giambattista; suas razões me pareceram irrefutáveis. No dia 4 de outubro de 1921, o Patna, que me conduzia a Bombaim, teve de ancorar num porto da costa Eritréia. (1) Desci; lembrei-me de outras manhãs muito antigas, também defronte do mar Vermelho; quando eu era tribuno de Roma e a febre e a magia e a inação consumiam os soldados. Nos arredores vi um riacho de água clara; provei-a, levado pelo costume. Ao galgar para a margem, uma árvore espinhosa me feriu o dorso da mão. A dor inusitada me pareceu muito viva. Incrédulo, silencioso e feliz, contemplei a preciosa formação de uma lenta gota de sangue. De novo sou mortal, repeti para mim mesmo, de novo pareço com todos os homens. Naquela noite, dormi até o amanhecer.
… Revisei, depois de um ano, estas páginas. Estou seguro de que correspondem à verdade, mas nos primeiros capítulos, e mesmo com certos parágrafos dos demais, creio perceber algo falso. É o resultado, talvez, do abuso de traços circunstanciais, procedimento que aprendi com os poetas e que contamina tudo de falsidade, uma vez que esses traços podem ser abundantes nos fatos, mas não em sua lembrança… Creio, todavia, ter descoberto uma razão mais íntima. Vou escrevê-la; não importa que me julguem fantástico.
“A história que contei parece irreal porque nela se misturam os acontecimentos de dois homens diferentes.” No primeiro capítulo, o cavaleiro quer saber o nome do rio que banha as muralhas de Tebas; Flamínio Rufo, que anteriormente deu à cidade o epíteto de Hecatômpilos, diz que o rio é o Egito; nenhuma dessas locuções é adequada a ele, mas, sim, a Homero, que faz menção expressa, na Ilíada, de Tebas Hecatômpilos, e na Odisséia, pela boca de Proteu e de Ulisses, diz invariavelmente Egito em vez de Nilo. No segundo capítulo, o romano, ao beber a água imortal, pronuncia algumas palavras em grego; essas palavras são de Homero e podem ser encontradas no fim do famoso catálogo das naves. Depois, no vertiginoso palácio, fala de “uma reprovação que era quase um remorso”; essas palavras correspondem a Homero, que projetara esse horror. Tais anomalias me inquietaram; outras, de ordem estética, permitiram-me descobrir a verdade. O último capítulo as inclui; ali está escrito que militei na ponte de Stamford, que transcrevi, em Bulaq, as viagens de Simbad, o Marujo, e que subscrevi, em Aberdeen, para a Ilíada inglesa de Pope. Lê-se, inter alia: “Em Bikanir professei a astrologia e também na Boêmia”. Nenhum desses testemunhos é falso; o significativo é o fato de tê-los destacado. O primeiro de todos parece convir a um homem de guerra, mas depois se nota que o narrador não repara no bélico, e sim na sorte dos homens. Os seguintes são mais curiosos. Uma obscura razão elementar me obrigou a registrá-los; eu o fiz porque sabia que eram patéticos. Não o são, ditos pelo romano Flamínio Rufo. São, ditos por Homero; é estranho que este copie, no século XIII, as aventuras de Simbad, de outro Ulisses, e descubra, depois de muitos séculos, num reino boreal e num idioma bárbaro, as formas de sua Ilíada. Quanto à oração que recolhe o nome de Bikanir, vê-se que foi fabricada por um homem de letras, desejoso (como o autor do catálogo das naves) de exibir vocábulos esplêndidos. (2)
Quando o fim se aproxima, já não restam imagens da recordação; só restam palavras. Não é estranho que o tempo tenha confundido as que certa vez me representaram com as que foram símbolos do destino de quem me acompanhou por tantos séculos. Eu fui Homero; em breve, serei Ninguém, como Ulisses; em breve serei todos: estarei morto.
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(1) Há uma rasura no manuscrito; talvez o nome do porto tenha sido apagado.

(2) Ernesto Sabato sugere que o “Giambattista” que discutiu a formação da Ilíada com o antiquário Cartaphilus seja Giambattista Vico; esse italiano afirmava que Homero é um personagem simbólico, à maneira de Plutão ou de Aquiles.


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