Acompanho já há uns bons
anos a produção de Alain Badiou, mas, a cada trabalho seu, é sempre de se
destacar o tour de force empreendido. Filósofo, dramaturgo e escritor, o francês tem articulado com imponência,
por exemplo, o pensamento formal e o texto
literário. Em língua portuguesa, a
revista lusitana O Comuneiro publico um texto seu paradigmático: ‘A Coragem do
Presente’ (edição nº 20, março/2015). Pois bem, a
novidade de agora é o seu livro Métaphysique du Bonheur Reel (Metafísica da Felicidade Real), onde coloca sobre a mesa da análise social a questão
da felicidade na contemporaneidade. A propósito da obra, ele concedeu uma entrevista ao periódico Regards, que muito diz da sua perspectiva. Seguem aí abaixo alguns extratos da mesma, vertidos para a língua portuguesa. A versão
original, em francês, está aqui: http://www.regards.fr/web/article/alain-badiou-la-philosophie-doit. De resto, a assinalar que algumas partes que
estão a circular na rede padecem de graves problemas de tradução, em torno, dentre outras, de
expressões como fidelidade e interesse (neste último caso, decorrente do duplo
significado da palavra francesa intérêt).
Regards: Porque é preciso
interrogar novamente a categoria da felicidade? E falar de felicidade “real”?
Alain Badiou: A
categoria da felicidade, para dizer a verdade tal como nós a usamos hoje, é uma
categoria largamente banalizada como aquilo que eu chamaria de satisfação. Isso
quer dizer uma figura de felicidade que, no fundo, consiste em se perguntar
como preservar um lugar designado, um lugar no mundo tal como ele é. É por
causa disso que eu acentuo a palavra “real” (a felicidade real), por relação a
uma felicidade que me parece imaginária; uma felicidade que não comporta, tanto
quanto for possível, nenhuma aventura, e sobretudo nenhum risco. Eu acredito
que a concepção moderna de felicidade é, no fundo, de não tomar riscos, uma
felicidade acompanhada de uma segurança. A palavra de ordem desse novo
marketing da felicidade é “harmonia”: uma relação harmoniosa com o mundo, seus
amigos, seu casal, etc. O ideal da felicidade, aqui, é um pouco o que eu
chamei, outra vez, a “paz das famílias”. Quando no entanto cada um sabe bem que
o casal é, ao contrário, uma aventura difícil e perigosa. No fundo, a
felicidade se reduz a ocupar um lugar instituído: um trabalho que lhe agrada,
um cônjuge agradável, crianças. Nós não saberíamos, certamente, desejar a quem
quer que seja conhecer a experiência do desemprego. Isso seria perfeitamente
idiota. Somente, e esse é o ponto estratégico, se a filosofia deve entrar em
cena, nós podemos reduzir a felicidade à satisfação?
Regards: É um gesto clássico
na filosofia. Em que ele traz qualquer coisa de novo?
Alain Badiou: Eu refaço lá um gesto, é verdade,
clássico, que afirma a existência de uma ligação entre filosofia e felicidade.
É uma tese evidentemente presente desde as sabedorias antigas, como Platão e os
estóicos. Mas aquilo que nos devemos reter, aquilo que resta intempestivo nesse
gesto, é a ideia de que a filosofia vem perturbar, deslocar a concepção
espontânea, isso quer dizer na verdade a socialmente dominante, de felicidade,
uma vez dito que a espontaneidade é largamente codificada, e aquilo que é
espontâneo, é aquilo que a sociedade nos faz ter por evidente. É mesmo porque a
filosofia, desde que ela faça da felicidade um problema, entra em conflito com
a felicidade dominante. Tal como ela era estruturada pelos sofistas na época de
Platão. Tal como ela é, hoje, pelas revistas e manuais de psicologia. Isso que
faz com que ela seja discutida, disputada pela filosofia, é que ela é um
problema compartilhado, diferentemente de muitos outros problemas filosóficos.
De fato, se você coloca questões como “O que é do ser enquanto ser?” “Existe
uma verdade matemática?”, você não discutirá, no geral, a não ser com seus
colegas. Não que eu despreze sua história, sua necessidade teórica, ao
contrário: elas constituem mesmo um arsenal e uma armadura teórica
indispensável para abordar as questões de ordem mais geral. Mas a filosofia não
saberia ficar ali; é-lhe preciso afrontar os problemas comumente compartilhados
que são o amor, a felicidade, etc. A filosofia deve, no fim dos fins,
preocupar-se com questões que revelam as aspirações gerais, sem o que ela
permanece uma disciplina acadêmica, que discute, entre colegas, os problemas
inscritos dentro do espaço da filosofia. É que a filosofia se constitui como uma
linha de fronte. Em conflito com as ideias dominantes.
Regards: Porque recorrer,
para definir a felicidade, à categoria de exceção?
Alain Badiou: Desde que você entre em um exame
firme da concepção de felicidade, você vai certamente entrar também na questão
de seu estatuto de exceção. Como é que a felicidade real, aquela que não se
reduz às satisfações ordinárias, não seja a lei geral da existência, mas seja
constituída pelas escolhas, pelos momentos, que a inscrevem em estatuto de
exceção? No fundo, a consciência comum, mesmo se ela se mascare ou se oculte,
compartilha essa concepção, bastante difundida, da raridade da felicidade. De
onde, me parece, de extrema importância, que eu não hesitaria de chamar de
lírica, do amor nessa questão. O amor, a paixão, o encontro, são concebidos
como os momentos excepcionais da existência, e cada um sabe bem que são esses
momentos que fazem sinal daquilo que nós chamamos, verdadeiramente, de
felicidade. É evidentemente desejável não ser infeliz. Mas é preciso muito para
que fosse possível declarar que não ser infeliz é a felicidade real. A
felicidade não saberia ser uma simples negação da infelicidade, é um presente,
um dom da vida que excede a ordem da satisfação. É uma escolha existencial
importante: ou bem uma vida aberta somente à satisfação, ou bem uma vida
aceitando o risco da felicidade, aqui compreendida como exceção. É também uma
questão política: ou bem as pessoas que não concordam a não ser em recusar a
infelicidade (é a tese conservadora daqueles que nós chamaríamos de “novos
filósofos”), ou bem as pessoas que se arriscam a querer a felicidade. Segundo
essa tese conservadora, a concordância das pessoas não saberia ser feita senão
contra a infelicidade, e não em vista da felicidade. Saint-Just declarou, ao contrário,
de maneira realmente revolucionária, que a felicidade era uma ideia nova na
Europa.
Regards: É por isso que
você liga, a maneira de Benjamin, a ideia de felicidade a de um outro tempo?
Alain Badiou: Benjamim propõe
uma concepção fibrosa do tempo, segundo a qual existem vários tempos: não há
tempo único, comum, existem temporalidades emaranhadas, às vezes mesmo
contraditórias. E é evidente que o tempo da felicidade, aqui incluída a
política, é um tempo que excede, e em um sentido destrói a temporalidade
ordinária. O século XX (com Bergson, a teoria da relatividade), foi,
filosoficamente, um momento de exploração da multiplicidade temporal. É neste
quadro que tem lugar a questão da felicidade. O tempo próprio das verdades,
quer elas sejam matemáticas, artísticas, políticas ou amorosas, o tempo da
subjetivação feliz, é o tempo das consequências do evento, daquilo que não é
situável no curso do tempo ordinário; e é necessariamente um tempo de corte, de
ruptura, de tempo de exceção. Aceitar as consequências desta exceção temporal
significa tecer um tempo diferente. Isso é o que o senso comum quer dizer no
fundo, quando ele declara que os apaixonados estão sozinhos no mundo. Sozinhos
no mundo, isso quer dizer sozinhos no tempo que constitui esse casal, o qual
não compartilha, ou não compartilha mais, o tempo ordinário. É uma característica
geral da felicidade real; isso seria verdade, igualmente, de um matemático que
resolve um problema em sua solidão. Como se constitui, nessas condições, uma
felicidade coletiva? Se o entusiasmo é o afeto que corresponde à felicidade
política, é que ele designa o compartilhamento de um novo tempo. O entusiasmo
nomeia o momento onde os indivíduos subjetivam que eles podem fazer história,
que a história lhes pertence e, que, como o declara Françoise Proust, ela não esta acabada. É o compartilhamento de uma
intensidade, de uma manifestação – como nós o vimos sobre as praças públicas
árabes – mas também a manutenção de um estado de exceção, no labor que
constitui isso que nós chamamos propriamente de ativismo político (as reuniões
intermináveis, os folhetos redigidos na madrugada). A felicidade política, é
preciso dizer, eu posso testemunha-lo, se esgota também. É por isso ela tende
igualmente, infelizmente, a produzir os revolucionários em tempo completo, às
vezes mesmo quadros profissionais…
Regards: No entanto você
mesmo escreve que esse trabalho, essa prática organizacional requer uma
disciplina….
Alain Baidou: É preciso nós colocarmos de acordo.
Eu evidentemente utilizo essa palavra por provocação. Da mesma forma que eu
utilizo a palavra “comunismo” porque ela é a palavra mais detestada do léxico
político contemporâneo. Eu entendo que nós procuremos resguardar a força
evental da política. Mas me parece que a construção de uma política rígida
requer uma disciplina de exceção, uma continuidade temporal para a qual a
energia dada pela ruptura política não pode bastar. Por consequência é preciso
substitui-la pelas invenções que supõe uma criação, criação que obedece a uma
disciplina. Se você quiser, é preciso entender a palavra disciplina no sentido
em que o pintor, na experimentação, na criação, impõe a si mesmo uma disciplina
mesmo em sua solidão. Tal como um matemático se impõe uma disciplina implacável
na resolução de um problema. Desde que você se situe na exceção, você será
necessariamente levado a criar suas próprias regras, suas próprias disciplina,
e é nesse sentido que a disciplina é indiscernível da liberdade. Esta disciplina
é a inventar cada vez.
--------------------
[1] Alain Badiou volta mais precisamente sobre
esta questão em À la recherche du réel perdu (Fayard),
onde se interroga sobre o emprego reacionário da palavra real, e dá igualmente
uma bela leitura do poema de Pasolini, As cinzas de Gramsci.
Nenhum comentário:
Postar um comentário