domingo, 2 de agosto de 2015

'Um mestre para dez mil gerações' - sobre o sábio e o parvo

Há em determinadas ramificações do pensamento oriental uma base que supera, e muito, algumas das limitações do pensamento ocidental, quer este seja oriundo diretamente da tradição grega ou de outra realidade. Isto apanha tanto as dicotomias como algumas convicções ocidentais em torno da vida, que, ao fim ao campo, sob determinadas perspectivas orientais, representam um nonsense. Pode ser colocado aí a relação sujeito & objeto, corpo & espírito, a questão do prazer, etc. Neste último caso, aliás, em materialidade de sexualidade, é bastante sugestivo que o Kamasutram seja um texto indiano (kama - gozo dos sentidos). Pois bem, este preâmbulo é para realçar uma nota sobre o oriental Confúcio (551-479 a. C.), pensador considerado pelos chineses como um 'mestre para dez mil gerações', sendo a sua obra conhecida na China (sem que o seu foco seja religião) tal qual a Bíblia no Ocidente. Os Analectos, compilação realizada pelos discípulos confucianos dos ensinamentos do mestre, mais do que uma filosofia representam uma concepção de vida.  Está lá dito, por exemplo: 'o cavalheiro concorda com os outros sem ser um eco - o homem vulgar [o parvo] ecoa sem estar de acordo'; 'a fala ardilosa arruína a virtude de uma pessoa - a falta de autocontrole em pequenas questões arruína grandes planos'. Empenhado na relação de ensino-aprendizagem, ele é direto: 'não ensino a quem não se empenha sinceramente em aprender'. No Brasil, disparadamente, o melhor trabalho sobre Confúcio está publicado/traduzido pela Editora Contraponto, intitulado Introdução a Confúcio (sem menosprezo, claro, pelo texto da L & PM, mas este é bem condensado), tendo como autores Ku Hung Ming, Sima Qian e Richard Wilhelm. Aí abaixo, a apresentação da obra feita por César Benjamin. 

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  Por  César Benjamin
Confúcio (551-479 a.C.) pertence ao seleto grupo  de personagens históricos de primeira linha, fundadores de projetos civilizatórios, que nunca exerceram poder político nem deixaram textos que tenham sido transmitidos às gerações seguintes. A gigantesca influência que exerceu  sobre  a posteridade, e que perdura até hoje, tem origem em ensinamentos transmitidos por  um  grupo   de  discípulos   em  textos   breves,   descontínuos,   ricos   em possibilidades de interpretação. Os historiadores divergem até mesmo sobre importantes aspectos factuais de sua vida. Mesmo assim, os chineses o consideram o sábio nacional mais relevante e reconhecem nele “um  mestre para dez mil gerações”.
 Sabe-se que nasceu em uma época de grande turbulência, em que o império chinês estava fragmentado em numerosos estados que lutavam entre si. Crítico da ordem social vigente, estudou na capital e peregrinou durante doze anos, como mais um filósofo ambulante em busca de uma oportunidade para associar sua doutrina à ação política. Com 68 anos, retornou fracassado ao estado natal, sem conseguir disseminar sua mensagem. Refletiu sobre isso: “Não me aflijo porque os homens não me conhecem. Aflijo-me por não conhecer os homens.”
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Confúcio não propôs instituições econômicas, legislações ou um regime político específico. Não anunciou uma revelação nem experimentou qualquer outra forma de vivência religiosa. Não falou de mistérios de outro mundo. Não foi um místico. Pregou um conhecimento que gira em torno da beleza, da ordem e da autenticidade, defendendo um ideal de perfeição moral que se obtém pela prática de virtudes humanas.
Para ele, o que está oculto e precisa ser desvelado é justamente o que perpassa tudo, o que não cessa de se expor, o que se desdobra da maneira mais ampla. É onipresente e invisível, pois não se esgota em nenhuma das suas manifestações.
Ao contrário da ciência ocidental, seu pensamento não pretende conhecer  objetos  e  estabelecer  uma  incontroversa  verdade  sobre  cada   um deles. Ao destacar o fundo de imanência que torna tudo possível, busca encontrar os caminhos da harmonia.
Reconhece que a realidade se nos apresenta na  forma  de opostos, pois, quando nasce algo, o seu oposto simultaneamente se cria. Mas diz que o contraste é relativo. Nenhum dos lados pode vencer completamente, pois o momento da vitória é também o momento da mudança.
As condições antagônicas se reconciliam pela sucessão, cada qual se transformando na outra. Não devemos nos prender a um dos polos e atribuir ao outro uma posição completamente negativa. Uma atitude inflexível induz a atitude oposta, perpetuando o confronto e dificultando o fluxo das mutações. Precisamos encontrar a posição correta, aquela que nos permite vivenciar os contrastes no tempo, o grande produtor de regulação.
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Confúcio deu grande importância à recuperação dos saberes antigos, pois considerava petulante e fútil tentar criar o absolutamente novo, ignorando o processo histórico que nos moldou. Mas não foi um mero repetidor  do passado: sabia que nada pode ser restaurado em sua forma anterior. Ao ser entendido e atualizado, o antigo se transforma dinamicamente, fazendo surgir uma filosofia que renova a tradição e, por isso, tem maior possibilidade de ser difundida.
Ao tentar recuperar os fundamentos da civilização chinesa, Confúcio trabalhou para revigorá-la. Seu tema central foi o homem em comunidade. Enquanto os animais são regulados pelos instintos, que lhes impõem comportamentos restritos e repetitivos, cada um de nós precisa tornar-se humano,      escolhendo      entre      muitas      possibilidades.      Isso      ocorre progressivamente, no interior de uma comunidade. Daí a necessidade de uma ordem, que, no entanto, não deve ser imposta por meio de violência, ameaças e castigos, que disseminam medo e hipocrisia. A ação eficaz exige mediações que inibam ou promovam aquilo que cada um traz dentro de si, em germe.
É de educação que se trata. De volta a Lu, seu estado natal, Confúcio fundou uma escola, que funcionou em sua própria casa, tendo em  vista preparar jovens para carreiras de Estado, transmitindo-lhes os ritos, a escrita, o cálculo, o trato com cavalos, o manejo do arco e a música. O uso do arco mimetizava a vida: “Na prática do arco e flecha há algo semelhante  ao princípio que existe na vida de um homem moral: quando o arqueiro não atinge o alvo, ele se vira e busca a causa do fracasso em si mesmo.” E a música era um componente essencial do processo educacional: “O espírito da comunidade se determina pela música que escuta, e o espírito do indivíduo encontra nela os motivos que ordenam sua vida.”
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Dedicou bastante esforço ao problema fundamental de como ensinar e aprender. Na base de tudo estava, a seu ver, uma vida ética, pois quem segue má conduta nunca terá acesso ao que é essencial. Critica um aluno:  “Tem muita pressa.” Elogia outro: “Não comete duas vezes o mesmo erro.” Renega atalhos: “Não ensino quem não se empenha sinceramente em aprender.” E refere-se a um esforço sem fim: “Quem aprende, nem por isso penetra na verdade; quem penetra na verdade, nem por isso é capaz de perseverar nela; quem persevera, nem por isso está em condições de interpretá-la em cada circunstância particular.”
Valorizou os ritos e as convenções sociais, que não distinguia da moral, da política e do direito. O povo, dizia, não é guiado por ideias abstratas, mas por costumes, que formam uma espécie de “segunda natureza”. O homem precisa ser educado em um ambiente que estimule as virtudes coletivas. Quando um governo usa seguidamente as leis, algo vai mal, pois  se  o ambiente é bom, com um poder sem soberba, com respeito a todos no trato, o modelo virtuoso se multiplica naturalmente, tornando desnecessário o apelo à lei.
Observou, compilou e ordenou as regras da vida cotidiana, as cerimônias, as celebrações e as normas administrativas. Mas nunca foi dogmático: a forma só tem valor se estiver impregnada de  autenticidade: “Uma posição eminente sem nobreza de caráter, culto sem veneração, práticas funerárias sem sincera dor são situações que não suporto.”
Nunca propôs ideias fixas e preconcebidas: “O homem nobre não adota uma atitude fechada, a favor ou contra, diante de nada no mundo. Mantém-se aberto. Suspende o juízo ao deparar com o que não compreende. Permanece dúctil.
***

O livro que o leitor tem em mãos não existe, nesta forma, em nenhuma outra edição, no Brasil ou no exterior. Está dividido, basicamente, em três partes. A primeira é um apanhado geral do confucionismo, escrito por Richard Wilhelm, o maior sinólogo alemão, tradutor do I Ching [Livro das mutações]  para línguas ocidentais. Seguem-se a biografia clássica de Confúcio, escrita por Sima Qian (ca. 145-85 a.C.), astrônomo, matemático e historiador chinês, e os comentários de Wilhelm a esse texto, “o primeiro a ordenar cronologicamente os dados disponíveis” e que “constituirá sempre a base de todas as biografias de Confúcio”. Essas duas primeiras partes foram traduzidas por Victoria Davies.
Por fim, em tradução de Verrah Chamma, apresentamos um  dos quatro livros canônicos do confucionismo, A conduta da vida [Chung Yung], cuja autoria é atribuída a K’ung Chi, neto de Confúcio. Esse texto sempre foi valorizado pelos intelectuais chineses. Nas palavras de Ch’êng, mestre de Chu Hsi, o maior dos comentadores, “o Chung Yung descreve primeiro um princípio; em seguida, alarga esse princípio até abarcar tudo; finalmente, retorna e reúne tudo sob o princípio, com o qual preenche o Universo. Se o leitor habilidoso perceber isso, saberá que o texto não pode ser exaurido. O prazer é inexcedível.” O missionário James Legge (1815-1897), pioneiro nas traduções dos clássicos chineses para o inglês, disse que o Chung Yung “dá a melhor descrição que temos da filosofia e da moral de Confúcio, e merece um estudo cuidadoso”.
A herança confuciana marcou profundamente a civilização chinesa. Nela, a obrigação moral é a base da ordem social e deve orientar as ações de cada um. A escola, a família, o governo e as demais instituições têm como objetivo educar os homens para que sintam por si mesmos essa obrigação: a força moral de cada um é a base da organização social. A tradução de Ku Hung Ming, da qual partimos, destaca essa ideia.
 Num momento em que a China adquire crescente presença internacional, torna-se   cada  vez mais importante conhecermos os fundamentos intelectuais de sua civilização.




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