Há em determinadas ramificações do pensamento oriental uma base que supera, e muito, algumas das limitações do pensamento ocidental, quer este seja oriundo diretamente da tradição grega ou de outra realidade. Isto apanha tanto as dicotomias como algumas convicções ocidentais em torno da vida, que, ao fim ao campo, sob determinadas perspectivas orientais, representam um nonsense. Pode ser colocado aí a relação sujeito & objeto, corpo & espírito, a questão do prazer, etc. Neste último caso, aliás, em materialidade de sexualidade, é bastante sugestivo que o Kamasutram seja um texto indiano (kama - gozo dos sentidos). Pois bem, este preâmbulo é para realçar uma nota sobre o oriental Confúcio (551-479 a. C.), pensador considerado pelos chineses como um 'mestre para dez mil gerações', sendo a sua obra conhecida na China (sem que o seu foco seja religião) tal qual a Bíblia no Ocidente. Os Analectos, compilação realizada pelos discípulos confucianos dos ensinamentos do mestre, mais do que uma filosofia representam uma concepção de vida. Está lá dito, por exemplo: 'o cavalheiro concorda com os outros sem ser um eco - o homem vulgar [o parvo] ecoa sem estar de acordo'; 'a fala ardilosa arruína a virtude de uma pessoa - a falta de autocontrole em pequenas questões arruína grandes planos'. Empenhado na relação de ensino-aprendizagem, ele é direto: 'não ensino a quem não se empenha sinceramente em aprender'. No Brasil, disparadamente, o melhor trabalho sobre Confúcio está publicado/traduzido pela Editora Contraponto, intitulado Introdução a Confúcio (sem menosprezo, claro, pelo texto da L & PM, mas este é bem condensado), tendo como autores Ku Hung Ming, Sima Qian e Richard Wilhelm. Aí abaixo, a apresentação da obra feita por César Benjamin.
Por César Benjamin
Confúcio (551-479 a.C.) pertence ao seleto grupo de personagens históricos
de primeira linha, fundadores de projetos civilizatórios, que nunca exerceram poder político nem deixaram textos
que tenham sido transmitidos às gerações seguintes. A gigantesca
influência que exerceu sobre a posteridade, e que perdura
até hoje, tem origem em ensinamentos transmitidos por um grupo
de discípulos em
textos breves, descontínuos, ricos
em possibilidades de interpretação. Os historiadores divergem
até mesmo sobre importantes aspectos factuais de sua
vida. Mesmo assim, os chineses o consideram o sábio nacional mais relevante
e reconhecem nele “um mestre
para dez mil gerações”.
Sabe-se que nasceu em
uma época de grande turbulência, em que o império
chinês estava fragmentado em numerosos estados
que lutavam entre
si. Crítico da ordem social vigente, estudou
na capital e peregrinou durante doze anos, como mais um filósofo ambulante em busca de uma oportunidade para associar sua doutrina à ação política.
Com 68 anos, retornou fracassado ao estado natal,
sem conseguir disseminar sua mensagem. Refletiu
sobre isso: “Não me aflijo porque os homens não me
conhecem. Aflijo-me por não conhecer os homens.”
* * *
Confúcio não propôs
instituições econômicas, legislações ou um regime político
específico. Não anunciou
uma revelação nem experimentou qualquer
outra forma de vivência religiosa.
Não falou de mistérios de outro mundo. Não foi um místico. Pregou um conhecimento
que gira em torno da beleza, da ordem e da autenticidade, defendendo um
ideal de perfeição moral que se obtém pela prática de virtudes humanas.
Para ele, o que está
oculto e precisa ser desvelado é justamente o
que perpassa tudo, o que não
cessa de se expor, o que se desdobra da maneira mais ampla. É onipresente e invisível, pois não se esgota em nenhuma das suas manifestações.
Ao contrário da
ciência ocidental, seu pensamento não pretende
conhecer objetos e
estabelecer uma incontroversa
verdade sobre cada um deles.
Ao destacar o fundo de imanência que torna tudo possível, busca encontrar
os caminhos da harmonia.
Reconhece que a
realidade se nos apresenta na forma de opostos, pois, quando nasce algo, o seu oposto simultaneamente se cria. Mas diz que o contraste é relativo. Nenhum dos lados pode
vencer completamente, pois o momento da vitória é também o momento da mudança.
As condições
antagônicas se reconciliam pela sucessão, cada qual se transformando na outra. Não devemos nos prender a um dos polos e atribuir ao outro uma posição completamente negativa. Uma atitude inflexível
induz a atitude oposta, perpetuando o confronto e dificultando o fluxo das mutações. Precisamos
encontrar a posição
correta, aquela que nos permite
vivenciar os contrastes no tempo, o grande produtor de regulação.
* * *
Confúcio deu grande
importância à recuperação dos saberes antigos,
pois considerava petulante e
fútil tentar criar o absolutamente novo, ignorando o processo histórico
que nos moldou. Mas não foi um mero repetidor do passado: sabia que nada pode ser restaurado em sua forma
anterior. Ao ser entendido e atualizado, o antigo se transforma dinamicamente, fazendo surgir uma filosofia que renova a tradição e,
por isso, tem maior possibilidade de ser difundida.
Ao tentar recuperar
os fundamentos da civilização chinesa, Confúcio trabalhou para revigorá-la. Seu tema
central foi o homem em comunidade. Enquanto os animais são regulados pelos
instintos, que lhes impõem comportamentos restritos e repetitivos,
cada um de nós precisa tornar-se humano, escolhendo entre
muitas possibilidades. Isso
ocorre progressivamente, no interior de uma comunidade. Daí a necessidade de uma ordem,
que, no entanto, não deve ser imposta por meio de violência, ameaças
e castigos, que disseminam medo e hipocrisia. A ação eficaz exige mediações que inibam ou promovam aquilo que cada um traz dentro de si, em germe.
É de educação que se
trata. De volta a Lu, seu estado natal, Confúcio fundou uma escola, que funcionou em sua
própria casa, tendo em vista
preparar jovens para carreiras de Estado, transmitindo-lhes os ritos, a escrita, o cálculo,
o trato com cavalos, o manejo do arco e a música. O uso do arco mimetizava
a vida: “Na prática do arco e flecha há algo semelhante ao princípio que existe
na vida de um homem moral: quando
o arqueiro não atinge o alvo, ele se vira e busca
a causa do fracasso em si mesmo.”
E a música era um componente essencial
do processo educacional: “O espírito da comunidade se determina pela música que escuta, e o espírito
do indivíduo encontra nela os motivos que ordenam sua vida.”
* * *
Dedicou bastante
esforço ao problema fundamental de como ensinar e aprender. Na base de tudo estava,
a seu ver, uma vida ética, pois quem segue má
conduta nunca terá acesso ao que é essencial. Critica um aluno: “Tem muita pressa.” Elogia outro: “Não comete duas vezes o mesmo erro.” Renega atalhos: “Não ensino quem não se empenha
sinceramente em aprender.” E refere-se a um esforço sem fim: “Quem aprende,
nem por isso penetra na verdade;
quem penetra na verdade, nem por isso é capaz de perseverar nela; quem persevera,
nem por isso está em condições de interpretá-la em cada circunstância particular.”
Valorizou os ritos e
as convenções sociais, que não distinguia da moral, da política e do direito. O povo,
dizia, não é guiado por ideias abstratas, mas por costumes,
que formam uma espécie de “segunda natureza”. O homem precisa ser educado em um ambiente que
estimule as virtudes coletivas. Quando um governo usa seguidamente as leis,
algo vai mal, pois se o ambiente é bom, com um poder sem soberba, com respeito a todos no trato, o modelo
virtuoso se multiplica naturalmente, tornando desnecessário o apelo à lei.
Observou, compilou e
ordenou as regras da vida cotidiana, as cerimônias, as celebrações e as normas
administrativas. Mas nunca foi dogmático: a forma só tem valor se estiver
impregnada de autenticidade: “Uma posição eminente sem nobreza de caráter, culto sem veneração, práticas
funerárias sem sincera dor são situações
que não suporto.”
Nunca propôs ideias
fixas e preconcebidas: “O homem nobre não adota uma atitude fechada, a favor ou
contra, diante de nada no mundo. Mantém-se
aberto. Suspende o juízo ao deparar com o que não compreende. Permanece dúctil.
***
O livro que o leitor tem em mãos não existe,
nesta forma, em nenhuma outra edição, no Brasil ou no exterior.
Está dividido, basicamente, em três partes. A primeira
é um apanhado geral do confucionismo, escrito por Richard
Wilhelm, o maior sinólogo
alemão, tradutor do I Ching [Livro
das mutações] para línguas ocidentais. Seguem-se a biografia clássica de Confúcio, escrita por Sima Qian (ca. 145-85 a.C.), astrônomo, matemático e historiador chinês, e os comentários de Wilhelm a esse texto, “o primeiro a ordenar cronologicamente os dados disponíveis” e que “constituirá sempre a base de todas as biografias de Confúcio”. Essas duas primeiras partes foram traduzidas por Victoria
Davies.
Por fim, em tradução
de Verrah Chamma, apresentamos um dos quatro livros
canônicos do confucionismo, A conduta da vida [Chung Yung], cuja autoria é atribuída a K’ung Chi, neto de Confúcio. Esse texto sempre foi valorizado
pelos intelectuais chineses.
Nas palavras de Ch’êng, mestre de Chu Hsi,
o maior dos comentadores, “o Chung Yung descreve
primeiro um princípio; em seguida, alarga esse princípio até abarcar tudo; finalmente, retorna e reúne tudo sob o princípio, com o qual preenche o
Universo. Se o leitor habilidoso perceber
isso, saberá que o texto não pode ser exaurido. O prazer é
inexcedível.” O missionário James Legge (1815-1897), pioneiro nas traduções dos clássicos chineses
para o inglês, disse que o Chung Yung “dá a melhor
descrição que temos da filosofia e da moral de Confúcio, e merece um estudo cuidadoso”.
A herança
confuciana marcou profundamente a civilização chinesa.
Nela, a obrigação moral é a base da ordem social e deve orientar as
ações de cada um. A escola, a família, o governo e as demais instituições têm
como objetivo educar os homens para que sintam por si mesmos essa obrigação: a força moral de cada um é a base da organização social. A tradução
de Ku Hung Ming, da qual
partimos, destaca essa ideia.
Num momento em que a
China adquire crescente presença internacional, torna-se cada vez mais importante conhecermos os fundamentos intelectuais de sua civilização.
Nenhum comentário:
Postar um comentário