Segue aí um sugestivo texto do Prof. Marco Aurélio Nogueira (UNESP) sobre as Ciências Humanas, numa perspectiva que subscrevo ipsis litteris. Realça a concepção contemporânea sobre elas, que procura dissolver as suas fronteiras, de modo que (para desgosto do corporativismo disciplinar) não faz sentido delimitar territórios estanques do que seja, por exemplo, da história e da sociologia, pois o estudo dos fenômenos humanos requer dispositivos epistemológicos de todas as Ciências Humanas. Neste sentido, uma boa notícia para a formação das futuras gerações, na área, é que já começam a ser esboçados Bacharelados Interdisciplinares em Humanidades. Trata-se de uma perspectiva para melhor fazer as Ciências Humanas cumprirem o seu papel: o da aventura da viagem ao desconhecido para, como diz Nogueira, compreender o mundo.
Homem Virtuviano, de Leonardo da Vinci - integração mente e corpo (em criação adaptava com relógio biológico) |
Por Marco Aurélio Nogueira*
Muitos jovens universitários e pré-universitários - assim como muitos não tão jovens profissionais já inseridos no mercado de trabalho - talvez se surpreendam com o presente texto. Ele se dedica a fazer o elogio das Ciências Humanas, esse amplo e controvertido conjunto de conhecimentos com os quais as sociedades têm procurado se conhecer ao longo do tempo.
A surpresa poderá existir,
antes de tudo, porque o conceito mesmo de Ciências Humanas é relativamente
impreciso, dado não existir consenso estabelecido a respeito de quais ciências
devam ser incluídas no conjunto. Tome-se a Economia, por exemplo. Numa visão
abertamente econometrista, ela poderia ser vista como sintonizada com as
matemáticas. Se o foco for o universo financeiro, ela se associaria
unilateralmente aos negócios. Mas a grande economia - a Economia Política - é
bem diferente disso. Tem lugar cativo entre as Humanas e somente se realiza
como ciência se interagir com os conhecimentos que se interrogam a respeito do
homem em sociedade.
Dar-se-ia o mesmo com a
Administração, a Psicologia e as Letras, que muitas vezes terminam por ser
postas a meia distância daquele conjunto a que pertencem, no mínimo, por
exclusão.
O segundo motivo tem que ver
com o primeiro. É que vivemos de modo tão pragmático, veloz e utilitarista,
numa estrutura em que a luta pela vida é incerta e competitiva ao extremo, que
as pessoas passaram a desconfiar das Ciências Humanas. Tendem a achar que elas
- a Filosofia, a Ciência Política, a Sociologia, a Antropologia e a História,
que formam o esteio de sustentação do bloco - estão incapacitadas para garantir
um nicho consistente em termos de emprego ou pavimentar o caminho para o que se
considera "sucesso profissional". Teriam pouca utilidade, já que
seriam ciências mais "negativas" e reflexivas que
"positivas" e aplicadas. O Mercado - esse semideus da modernidade globalizada
- tomou o lugar do Homem, da Sociedade e do Estado, a ponto de fazer com que as
pessoas percam a vontade de se conhecer a si próprias.
Sabe-se que a modernidade
não é somente empenho cego em maximizar a racionalidade e a produtividade. É
também disseminação de espírito crítico, incremento comunicativo e esforço para
que se viva de maneira mais justa e sábia. Hoje, porém, o lado mais
instrumental e perverso do moderno prevalece. Vivemos sobrecarregados por ele e
acabamos por deixá-lo modelar muitos de nossos cálculos, expectativas e
projetos.
Tal prevalência está na base
da má vontade que se tem com as Humanas. Pensa-se que elas atrapalhariam porque
convidariam as pessoas a um exercício intelectual supérfluo, meio romântico e
"subversivo". Acredita-se, além do mais, que todos seriam
naturalmente capazes de entender a sociedade e a época em que vivem, mas nem
todos conseguiriam atingir as esferas mais elevadas do pensamento
técnico-científico. Acha-se que para dominar os fundamentos das Exatas ou das Biológicas
é necessário muito estudo e inteligência, ao passo que a assimilação das
Humanas seria tarefa fácil, quase uma extensão da alfabetização.
A partir daí se cria uma muralha separando as Humanas das demais ciências. Os estratégicos conhecimentos produzidos pelas primeiras ficam assim fechados em si, em vez de serem incorporados pelas outras, que se especializam cada vez mais. As próprias universidades ignoram a relevância e as vantagens da integração disciplinar. São poucas, se é que existem, as faculdades de Exatas ou Biológicas que incluem matérias de Humanas em seus currículos. A recíproca, claro, é igualmente verdadeira.
A partir daí se cria uma muralha separando as Humanas das demais ciências. Os estratégicos conhecimentos produzidos pelas primeiras ficam assim fechados em si, em vez de serem incorporados pelas outras, que se especializam cada vez mais. As próprias universidades ignoram a relevância e as vantagens da integração disciplinar. São poucas, se é que existem, as faculdades de Exatas ou Biológicas que incluem matérias de Humanas em seus currículos. A recíproca, claro, é igualmente verdadeira.
Mas a questão vai além do
universo acadêmico. Tanto que se tornou usual, entre pais e alunos, distinguir
as escolas do ensino médio em "fortes" - que reforçam os conteúdos,
dão destaque às Exatas e se dedicam a fazer os alunos chegarem à universidade -
e "fracas", quase sempre identificadas com orientações de tipo
humanista e voltadas para a formação de um aluno mais crítico e criativo. Dada
a competição entre elas, aos poucos todas se vão convencendo de que precisam
ser "fortes". Vão assim se deixando seduzir pela preocupação de
funcionarem como preparatórios para o vestibular [ENEN], em vez de se dedicarem
à formação integral dos estudantes.
Acontece que o mundo é
complicado demais para ser vivido e especialmente para ser compreendido. Ele
não se revela de imediato, desafia-nos e nos confunde, chega mesmo a
atemorizar. Precisa ser pensado, analisado em seus ritmos e determinações para
poder ser concebido como um todo, e não apenas como um amontoado de fragmentos
desconexos.
Isso não é possível sem as
Humanas. Sempre foi assim, aliás. Não é por outro motivo que a ideia moderna de
universidade tem no seu coração uma Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras,
entendida como espaço onde os saberes e as especialidades encontram condições
para superar suas estreitezas. Sem esse coração a universidade não se completa.
Precisamente porque vivemos
em ambientes complexos, dinâmicos e fragmentados, as Ciências Humanas
tornaram-se estratégicas. A razão crítica por elas cultivada deveria ser
amplamente disseminada, de modo a ajudar que cidadãos e profissionais sejam
mais do que meros receptores ou aplicadores de conhecimentos e adquiram recursos
intelectuais abrangentes.
Fazer a defesa das Humanas
não é somente defender os cursos e faculdades de Humanas, que certamente
necessitam de maior valorização. É também defender a perspectiva de que bons
profissionais - sejam eles quais forem - se caracterizam pela posse de uma
visão coerente do mundo e por saberem articular saberes. São intelectuais,
pessoas capazes de compreender o mundo em que vivem, traduzi-lo em termos
compreensíveis para todos e organizá-lo tendo em vista uma ideia de comunidade
política democrática.
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* Marco Aurélio Nogueira, Professor Titular de Teoria Política da Unesp, é autor dos livros Em Defesa da Política (Senac, 2001) e Um Estado para a Sociedade Civil (Cortez, 2004).
* Marco Aurélio Nogueira, Professor Titular de Teoria Política da Unesp, é autor dos livros Em Defesa da Política (Senac, 2001) e Um Estado para a Sociedade Civil (Cortez, 2004).
Fonte: http://www.acessa.com/gramsci/?page=busca&palavra_busca=marco.
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