Segue aí um texto do punho do cientista político César Benjamin a propósito de Husserl, por ocasião do lançamento da edição brasileira do seu 'A Crise das Ciências Europeias e a Fenomenologia Transcendental'. Considerado 'pai da corrente fenomenológica', tendo enorme relevância intelectual, Husserl (de quem Heidegger era discípulo, a ele dedicando o seu 'Ser e Tempo') foi, contudo, uma pessoa discreta, de personalidade silenciosa e retirada. Também desse ponto de vista, por sua conduta, tem muito a ensinar, sobretudo numa época como a nossa, em que a autopropaganda, a indiscrição na busca de autopromoção, a necessidade de aparecer, a falsa humildade como marketing, a inquietação para transformar a vida num palanque permanente, etc., além do ridículo, expõem uma patologia.
Husserl: 'o experimentado como externo não necessariamente pertence ao interno intencional' |
Por César Benjamin
Múltiplas formas de relativismo somavam-se, no fim do século XIX, para questionar as possibilidades de produzirmos
conhecimento objetivo e verdadeiro. Não só as percepções diretas,
baseadas nas sensações, eram vistas com desconfiança, mas também até mesmo as verdades matemáticas.
Sua certeza aparente, dizia-se, decorria do fato de serem tautologias
vazias, que nada informam sobre
o mundo. Considerava-se que todo
raciocínio dedutivo continha um vício, pois as
conclusões estavam
sempre embutidas nas suas premissas. Impossibilitados de alcançar as fontes últimas
de qualquer certeza,
deveríamos considerar o conhecimento
como um conjunto de instruções práticas, úteis à vida, mas incapazes de
nos dizer como o mundo, de fato, é.
O sensacionismo, de Ernst Mach, afirmava que a busca do conhecimento era apenas um tipo de
conduta da espécie humana, voltado para nos ajustar melhor ao ambiente;
o conceito de verdade era uma relíquia
metafísica que a ciência deveria substituir pelo conceito de “aceitabilidade”. Os adeptos do
psicologismo pretendiam redefinir o estatuto da
lógica, considerando-a apenas uma descrição abstrata – baseada no costume
e em certos hábitos de economia mental – de fatos psicológicos
empíricos; ela deveria ser parte da psicologia, não da filosofia. Positivistas e pragmatistas só viam fatos e
relações entre fatos. Para eles, a validade das ciências naturais
dependia fundamentalmente de sua eficácia, ou
seja, sua capacidade de fazer previsões sobre fenômenos que aparecem no tempo e no espaço. A filosofia era
vista como tributária dos resultados
das ciências positivas.
Todos esses movimentos convergiam para a ideia de que pode existir conhecimento, mas não uma teoria do
conhecimento autorizada a reivindicar, legitimamente, universalidade e objetividade.
* * *
Ao destruir as bases de todo conhecimento seguro, as diferentes formas de ceticismo
ameaçavam destituir a cultura ocidental de sua
posição singular. Edmund Husserl (1859-1938)
compreendeu a gravidade disso: a busca de certezas e o estabelecimento de verdades
eram parte essencial da milenar cultura europeia e fonte de sua
universalidade. Matemático de formação, considerava especialmente perigoso
interpretar a lógica a partir de categorias psicológicas, pois as leis da
lógica são universais e necessárias, enquanto a psicologia é uma ciência
empírica, que deduz suas leis por indução.
Para restaurar a validade absoluta da verdade, Husserl concebeu um programa
radical. Precisava encontrar um fundamento transcendental para a certeza e desenvolver um método voltado
para descobrir as estruturas necessárias do mundo. Buscou um
recomeço da filosofia, ao modo cartesiano, para lançar as bases de um
conhecimento cuja validade não dependesse da psicologia, dos fatos
empíricos, da espécie humana e nem mesmo da existência do mundo, tal como o
vemos. Isso exigia alterar o lugar que a filosofia ocupava.
Estávamos acostumados a outorgar às ciências a tarefa de conhecer a realidade, cabendo à
filosofia refletir sobre esse conhecimento. Assim, a atividade filosófica havia se afastado das coisas, restringindo-se a examinar o conhecimento que tínhamos delas.
Husserl viu que a nova filosofia primeira que tinha em mente – que, por ser primeira, não podia ter pressupostos
– teria de “retornar às coisas”, eliminando os
diversos estratos de sentido que as teorias haviam depositado
sobre elas.
É certo que a quantidade sempre crescente de fatos, teorias, hipóteses e classificações nos
permite prever melhor certos acontecimentos e aumenta nosso poder sobre a natureza, mas isso, ele dizia, não nos ajuda a compreender o
mundo: as ciências medem as coisas sem conhecer
o que medem. “Conhecer formas objetivas de construção de corpos
físicos ou químicos e fazer previsões de acordo com isso – nada disso explica coisa alguma, mas
precisa de explicação.”
* * *
A certeza só pode ser obtida se conseguirmos eliminar
a distância entre a percepção e
as coisas, bem como a necessidade, dela decorrente, de construir uma ponte entre ambas. Conhecimento
certo, seguro de si, deve ser conhecimento imediato, sem que entre o ato de conhecer e o seu conteúdo seja necessária alguma
mediação. Uma certeza que exige mediações não
é mais certeza. E a necessidade de transmiti-la destrói sua imediaticidade, pois tudo o que entra no campo da
comunicação humana é incerto,
questionável e frágil.
As ciências, tal como as conhecemos – conhecimentos indiretos e
comunicáveis por natureza –, são incapazes de nos prover
tal certeza.
Husserl viu que para “alcançar
as coisas” precisamos partir de uma intuição
na qual elas se revelem diretamente à consciência, sem distorções. Tal intuição precisa cumprir duas
condições: (a) ser independente
de um “eu” particular; (b) não se ater a fatos
contingentes, mas buscar verdades universais, revelando suas
conexões necessárias.
Descartes duvidou de tudo para livrar-se de toda dúvida. Conservou apenas
o Ego substancial, o único
lugar que resistia
à dúvida hiperbólica. Husserl seguiu o mesmo caminho,
colocando em suspenso a existência do mundo,
mas deu um passo adiante.
Não se deteve no Ego cartesiano, a
substância pensante. Considerou que o caminho da certeza exigia a eliminação também
desse Ego e a construção ideal de um Ego transcendental,
um recipiente vazio
onde os fenômenos simplesmente
aparecem. O caminho para isso passava pela epoché, a suspensão do juízo, especialmente sobre o que nos dizem
as doutrinas filosóficas e as ciências. “Eu” e
“mundo” ficam em suspenso, colocados entre parênteses. Não recusamos a existência deles, sequer duvidamos
dela, mas a deixamos provisoriamente
de lado para que só reste o puro fenômeno, aquele que não pertence a uma pessoa empírica nem representa
um objeto real.
Nem as doutrinas filosóficas, nem os resultados das ciências, nem
as crenças da “atitude natural”
são pontos de partida indubitáveis, aqueles que
Husserl buscava para reconstruir a filosofia como ciência rigorosa. Só a consciência resiste à epoché. Ela é,
pois, o resíduo fenomenológico
imediatamente evidente. Mas consciência é sempre consciência
de algo. A esse traço, que diferencia o psíquico e o físico, Husserl denomina intencionalidade. Os modos
típicos como as coisas e os fatos aparecem
na consciência são os universais que a consciência intui quando a ela se apresentam os fenômenos. Ao prescindir dos aspectos empíricos e
das preocupações que nos ligam aos fenômenos, purificando o campo da
consciência, podemos buscar a intuição das essências, operação necessária no caminho para a certeza.
* * *
Husserl encontrou o ponto de partida radical, que
buscava, no domínio do absolutamente
dado, do fenômeno puro, daquilo que se oferece diante de nós em qualquer das formas da nossa experiência.
Era preciso deixar que o “olho do espírito” se dirigisse
livremente às coisas para reconquistá-las com confiança
profunda, captando em visão imediata o seu conteúdo ideal. Em vez
de valorizar as duas maneiras bem conhecidas de aproximar- se do mundo
– a intuição sensível, mas vaga e imprecisa, e a construção intelectual rigorosa, mas hipotética –, ele nos mostrou um outro tipo de intuição, a intuição categórica. Ela não é um processo
de abstração que tenha como ponto de partida um dado
fenômeno. É uma experiência direta dos
universais que se revelam a nós com irresistível evidência.
Diferentemente do que nos diz o senso comum, o individual chega à consciência pelas
mãos do universal. Nossa consciência só pode captar um fato (uma cor, um som) se captou sua essência. Não partimos dos fatos e
fazemos uma abstração para conhecer tais essências. Ao contrário: só podemos
compreender fatos se já captamos
uma essência que os torna
compreensíveis e comparáveis. Reconhecemos uma
essência comum – uma “essência de som” – quando ouvimos
qualquer som. Sem esse reconhecimento, não poderíamos identificá-lo.
A fenomenologia pretende ser a ciência das essências,
não dos fatos. Seu objeto são os universais que a consciência intui a partir
dos fenômenos. Husserl chamou “redução fenomenológica” a operação mental que converte a intuição
individual (que nos dá esta rosa, esta cadeira,
objetos que existem no tempo e no espaço, em
constante mutação) em intuição eidética (que nos dá as
essências, imutáveis e eternas, de rosa e cadeira). O objetivo é construir um conhecimento que independa de sujeitos definidos. O
que permanece depois da redução são os conteúdos
dos fenômenos, que aparecem no Ego transcendental, aquele
recipiente desprovido das propriedades dos sujeitos psicológicos, e que é o sujeito do conhecimento puro.
* * *
A fenomenologia foi a corrente
filosófica mais renovadora do século XX. Representou o
início de uma nova época na filosofia, algo parecido com o que foi o sistema
cartesiano a partir
do século XVII e o kantiano, a partir do XVIII. A Descartes segue-se
uma época cartesiana, a Kant, uma época kantiana, em que os debates passam a se dar em
torno dos temas propostos por esses pioneiros. Husserl ocupa
posição semelhante. Sua enorme influência contrasta com uma personalidade
silenciosa e retirada. Viveu obcecado pelos problemas últimos dos quais
depende o desenvolvimento do espírito, fixando-se neles com
tenacidade exemplar.
Morreu solitário na Alemanha em 1938. De ascendência judaica, os nazistas o haviam afastado do
mundo acadêmico e proibido de deixar o país. Depois
de sua morte, o franciscano belga Herman Leo van Breda (1911-1974) conseguiu salvar seus manuscritos
inéditos – bem mais numerosos que a obra publicada –, levando-os para a Universidade de Louvain, onde estão até hoje.
A obra de Husserl vem sendo publicada gradativamente. Em 1954, como volume VI da Husserliana, veio à luz a versão
definitiva de A crise das ciências europeias
e a fenomenologia transcendental, que finalmente
chega ao Brasil em tradução competente de Diogo Falcão Ferrer (Forense Universitária, 2013).
Na verdade, é de uma ampla crise espiritual e existencial, não só das ciências e nem só da Europa,
mas de toda humanidade, que o livro trata, pois a crise nos fundamentos das ciências é também uma crise da filosofia e da
subjetividade. “Não podemos
prosseguir seriamente com o nosso filosofar como até aqui”, diz Husserl. “A exclusividade com que, na segunda metade
do século XIX, a visão de
mundo do homem moderno se deixou determinar pelas ciências positivas e com que se deixou deslumbrar pela
‘prosperidade’ que decorria daí
significou o afastamento dos problemas decisivos para uma autêntica humanidade. Meras ciências de fatos criam meros homens de fato.”
Diante de sua crise e de seus descaminhos, a razão não pode procurar um fundamento fora de si mesma. Se
quiser salvar-se precisa buscar sua justificação em seu próprio
seio. É a tarefa da filosofia, esse esforço
vigoroso de fundamentação radical que teve em Husserl, no século XX, o seu principal impulsionador. O livro
recém-lançado no Brasil é uma grande síntese de seu pensamento.
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Fonte: http://www.contrapontoeditora.com.br/arquivos/artigos/201312160549530.husserleaverdade.pdf
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