domingo, 16 de agosto de 2015

Ciências Humanas e formação profissional

Por Fábio Pestana Ramos
(Historiador – Doutor em História Social/USP)

A rigor, as Ciências Humanas envolvem uma ampla gama de conhecimentos, aparentemente distanciados, tal como economia, administração de empresas, contabilidade, direito, geografia, psicologia, pedagogia, linguística, política, arqueologia, etc.
No entanto, a matriz básica que originou todas as outras subdivisões é constituída pela filosofia, história, sociologia e antropologia.
Ao passo que a primeira é mãe de todas as ciências não só humanas, mas também exatas e inerentes às biológicas ou saúde.
 A história é quase tão antiga quanto à filosofia, embora seu referencial teórico vigente seja relativamente recente, remontando ao século XVIII e, principalmente, XIX e XX.
Já a sociologia e a antropologia são mais jovens, nasceram no século XIX e se desenvolveram no XX, estando ainda em fase de estruturação e, de certa forma, de afirmação de sua cientificidade.
Pensando nesta matriz básica das Ciências Humanas, contemporaneamente, a formação dos profissionais das mais diferentes áreas, na maior parte dos casos, carece justamente deste referencial.
Abandonado em nome do aprimoramento técnico especializado, conduzindo a problemas de ordem ética e humanista que, por sua vez, terminam interferindo no desempenho eficiente da profissão qualquer que seja.
Um profissional da saúde que comete um erro de diagnóstico, ou troca a medicação involuntariamente por falta de atenção, demonstra formação falha de natureza humanística.
Igualmente, um engenheiro que involuntariamente prejudica seres humanos, defendendo-se afirmando que se ateve apenas aos aspectos técnicos, também carece dos pressupostos básicos das Ciências Humanas.
Devemos lembrar que os nazistas, no final da primeira metade do século XX, torturaram, mataram e cometeram atrocidades bárbaras em nome da eficiência técnico-industrial.
Usando seres humanos inocentes em experiências médicas e chegando ao requinte macabro de cortar os cabelos de suas vitimas dentro de um padrão industrial, que servia para fabricar chinelos para as tripulações dos submarinos alemães, antes de enviá-las para as câmaras de gás.
Vitimando, sem distinção, homens, mulheres, jovens, velhos e crianças.
A grande questão envolta da ausência da reflexão humanista mais apurada está atrelada à invisibilidade do outro.
O profissional que nunca refletiu sobre temas filosóficos, históricos, sociológicos e antropológicos possui enorme dificuldade em reconhecer-se no outro, tratando o semelhante com descaso e ausência de ética.
Além disto, possui dificuldade para entender o mundo em que vive e a importância de suas ações para o progresso da humanidade.
Razão pela qual o processo civilizatório se encontra decadente, com o aumento dos índices de violência em todo planeta e a banalização do desrespeito para com a vida, fazendo imperar a mais pura anomia.
Um processo que inaugurou um estado em que paramos para refletir sobre estes efeitos, somente quando atingidos diretamente em nossa natureza psicológica e física.
Neste sentido, antes de aprofundar a discussão sobre a importância das Ciências Humanas na formação profissional, devemos percorrer os labirintos construídos pelo sistema capitalista.
Definindo inicialmente uma composição mais detalhada para as humanidades.

A natureza das Ciências Humanas.
Para entender a importância de uma formação humanística, é necessário entender o âmago primordial das Ciências Humanas.
Por definição, as humanidades abordam diversos aspectos do ser humano como indivíduo, pessoa e sujeito, tanto no que tange à introspecção como a externalidade relacionada consigo mesmo, o outro e o mundo.
Em resumo, as Ciências Humanas deveriam buscar desvendar a complexidade que define a própria humanidade e a distingue do aspecto puramente animal.
Curiosamente, os reajustes do sistema capitalista foram afastando as diversas áreas do conhecimento deste ideal, somente a sua matriz original conservou a inquietação com maior intensidade.
Isto porque as Ciências Humanas, agregando as exatas e biológicas, pertenciam à filosofia nos primórdios da sistematização do conhecimento, quando os mitos começaram a ser abandonados em favor de sua gradual substituição pela racionalização.
Entender o próprio homem e tudo que o rodeia, sem recorrer aos deuses, era o objetivo inicial, quando por volta do século VIII a.C, na Grécia e em outras partes do Velho Mundo, intensos debates originaram a filosofia.
A primeira grande subdivisão deste conhecimento totalizante aconteceu quando, ainda na antiguidade, Heródoto cunhou a palavra história, abrindo espaço para uma separação que se processou lentamente.
Na realidade, um dos grandes marcos de ruptura entre filosofia e história ocorreu somente no século XVIII e, principalmente, XIX, a despeito de avanços significativos em sua construção teórica no século XX.
Destarte, a Revolução Francesa, mais precisamente o iluminismo, inaugurou a divisão clássica entre Humanas, Exatas e Biológicas.
Um processo que contou com a influência da Revolução Industrial, período em que passou a existir uma valorização do domínio técnico como sinônimo de ciência e progresso científico.
Foi quando a racionalização totalizante, tendo a humanização como centro, foi relegada ao plano inferior em nome do lucro.
As Ciências Humanas passaram, a partir de então, a ser visualizadas como distintas do universo do mundo dos negócios.
Embora a sociologia tenha fornecido instrumentos para controle das massas de proletários, manipulando comportamentos para beneficiar a evolução da industrialização e urbanização crescente.
Entretanto, o homem continuou constituindo um ser dotado de múltiplas esferas, um animal sociopolítico que, diante de sua fragilidade física perante a natureza, necessita interagir e viver na coletividade para sobreviver.
As próprias relações de trocas que caracterizam a essência do sistema capitalista carecem da interação humana e da reflexão centrada nas humanidades.
Razão pela qual a filosofia dividiu-se em outras áreas do conhecimento humano no século XIX, no caso, sociologia e antropologia; que mantiveram sua preocupação com as humanidades, seu objeto central de estudo.
Assim composta e comportando múltiplas esferas, as Ciências Humanas podem ser definidas como conhecimento sistematizado que tem o homem e a sociedade como centro.
O que envolve o estudo das interações entre as pessoas em diversos níveis, inclusive no aspecto econômico, pedagógico, organizacional e normativo.
Portanto, tenta desvendar a complexidade humana, transitando entre a construção do pensamento e a evolução biológica, aspectos interdependentes.
Centralizando a observação dos fenômenos no homem, os valores éticos e morais terminam aprofundando a análise de seus diferentes componentes, atribuindo significado racional às necessidades sociais e culturais.
O cuidado consigo, o outro e o mundo é uma questão de sobrevivência, onde tudo espelha o “eu”, e, por esta razão, exige uma atitude altruísta, já que a natureza humana é egoísta, instintivamente construída e reforçada pelo capitalismo.

Vertentes humanistas
A matriz básica das Ciências Humanas possui inúmeras vertentes, com concepções especificas de homem que interferem no olhar sobre as problemáticas abordadas.
Igualmente interferindo na postura profissional; na forma de aplicar a técnica; de conceber instrumentais de trabalho; de lidar com o outro, a coletividade, o mundo, a construção do conhecimento.
Influenciando toda amplitude das Ciências Humanas, penetrando também nas Exatas e Biológicas.
Uma das primeiras configurações humanistas foi inaugurada pela tradição socrática na antiguidade, quando a figura simbólica de Sócrates propôs a atitude expressa pela maiêutica e a máxima “só sei que nada sei”.
Um posicionamento de abertura para o mundo e constante aprendizado, assumindo uma posição de aceitação da ignorância diante da vastidão do conhecimento por construir.
O que foi complementado pela mencionada maiêutica, o parto de ideias, a atitude questionadora, formando o senso crítico apurado e aberto ao dialogo com o outro.
Pensamento em concordância com a visão grega de homem, entendido como eixo unificador da ordem do universo, onde existe uma dualidade entre mundo das ideias e mundo sensível pela qual o sujeito transita, ordenando a existência das coisas.
O que conduz a uma série de perguntas que clamam pela origem das coisas e do próprio homem, conduzindo a racionalização dos atos e sistematização do conhecimento do eu, do outro e do mundo para lidar com a dualidade.
A vertente teocrática cristã medieval, imbuída intensamente de religiosidade, enxerga o homem como criatura de Deus, que estabelece um dialogo contínuo com o criador, sendo dotado de livre arbítrio.
O que implica na responsabilidade social humana sobre as próprias ações, com consequências para tudo que rodeia o homem, sendo o conhecimento fruto da revelação divina, mas também de escolhas da humanidade.
Isto, a despeito do centro da Ciência estar fixado em Deus e, por decorrência, em sua principal criação, o homem.
A concepção de homem integral, inteiro, dotado de múltiplas esferas, tornou-se o parâmetro do humanismo renascentista a partir do século XIV, integrado ao mundo pela sua relação com o divino, mas igualmente com o profano, abrindo espaço para abandonar a figura de Deus em nome da razão pura.
Uma vertente que centralizou a reflexão no homem, subordinando todo conhecimento para tentar entender a existência e o sentido da vida, inaugurando o desabrochar da Ciência e o período do antropocentrismo em oposição ao teocentrismo.
Até então, o homem  - e o que poderíamos chamar de Ciências Humanas - configurou o centro do conhecimento, subordinando as Exatas e Biológicas.
O que começou a mudar na Idade Moderna, quando o homem substitui Deus pela sua própria figura, definindo-se como ser pensante dotado de autonomia, fornecida pela razão cartesiana e a experiência empirista.
Mesmo diante deste panorama, a natureza humana ainda é holística, dotada de totalidade que integra as partes e serve para estabelecer inter-relações entre as subdivisões do conhecimento, que, pela altura, já começava a surgir.
Entretanto, o período contemporâneo  agrega a tendência mecanicista, que procura explicar o mundo através de analogias com o funcionamento de máquinas, momento em que o homem perde espaço para os objetos e fenômenos que o rodeiam, tornando-se apenas um elemento que reage as forças que lhe são aplicadas.
É neste sentido que Darwin, com o evolucionismo, ao abordar a evolução como fruto da seleção natural, transforma o homem em apenas mais um ser dentre tantos outros disputando recursos naturais e lutando pela sobrevivência.
Igualmente, Comte, demonstra que o homem é apenas mais um objeto de estudo dentro do âmbito da mecânica social.
Pouco a pouco, o homem é convertido em máquina de produzir e consumir por uma lógica tecnicista, que também estabelece tendências.
Tal como o capitalismo liberal e neoliberal, que enfatiza o individualismo e a competitividade, abandonando o olhar para o outro como espelho e para o mundo como consequência dos atos humanos.
A pluralidade perdida permanece sendo discutida pela matriz das Ciências Humanas, em muitos casos em uma tentativa de resgate das antigas vertentes humanistas.
Todavia, o abandono da humanização, em beneficio do tecnicismo profissionalizante, continua a desprestigiar as Ciências Humanas, reduzidas à literatura ou poesia, puramente imaginada e sem conexão com a realidade, consideradas afastadas de uma utilidade prática.
Nada mais falso, como tentaram demonstrar diversas tendências humanistas surgidas ou aprofundadas no século XX.
Tal como o marxismo, que, a partir da dialética e do materialismo histórico, define o homem como produto do meio, mas também produtor consciente das condições materiais transformadoras da vida.

A utilidade das Ciências Humanas
A utilidade das Ciências Humanas na vida profissional, em qualquer área, é muito mais ampla do que se imagina.
Em primeiro lugar, como lembrou Leonardo Boff, clama pela dignidade humana e remete à construção ética da pessoa, a reboque, da prática profissional, em prol de uma sociedade mais justa e igualitária.
Inserindo-se no resgate da preocupação consigo mesmo e o outro, que se perde no processo de formação compartimentado e tecnicista, imposto pelo capitalismo fordista vigente.
Neste sentido, resgata, ou pelo menos tenta, a totalidade humana e a concepção de conhecimento interligada e dependente da multiplicidade.
Por sua vez, camuflada e oculta pelo tecnicismo profissional, distorcendo a própria visão sobre o mundo e a participação do “eu” na auto reprodução do sistema capitalista.
Portanto, as Ciências Humanas ampliam a percepção, estimulando a formação de um senso crítico intensamente questionador e transformador da realidade.
A competitividade, sob esta ótica, não deixa de existir, mas torna-se ética, estabelecendo a preocupação com o outro e uma vivencia profissional humanizada.
O autoconhecimento de si mesmo, reconhecido como espelho no outro, aproxima as pessoas e demonstra que existe uma intensa interdependência que interfere no desempenho profissional.
A ausência do paciente, não existe o médico. Na falta do aluno, não existe razão no trabalho do pesquisador ou do professor.
As próprias relações de trocas, a produção industrializada, perdem seu sentido sem o homem como centro do processo.
Assim, em um mundo dominado pela competitividade, com um mercado de trabalho que exige excelência no desempenho profissional, a preocupação com o outro demonstra também o cuidado consigo mesmo, pois o “eu” se transforma constantemente no “ele”, gritando pelo “nós” através da formação humanista.
Este resgate da totalidade transforma o desempenho profissional e a consciência do mundo.
Sujeitos alienados são facilmente manipulados, configurando um problema do ponto de vista da eficiência profissional, pois exigem supervisão constante, diante da incapacidade de perceber as questões que se apresentam e tomar decisões acertadas.
É neste sentido que a consciência do mundo, ao ampliar o senso crítico, cria autonomia, capacidade de resolução de problemas de forma integrada e integradora, pensando no âmbito humanista que vê o conhecimento e as pessoas como parte de um todo sistêmico.
Refletindo por este prisma, as humanidades estreitam relações sociais e melhoram a convivência política, tendo o bem comum de determinada categoria profissional como foco ou da organização a qual os indivíduos pertencem.
A reboque, dentro da construção de uma postura ética, constrói o caminho da busca da felicidade coletiva da sociedade em sentido amplo.
Portanto, em qualquer profissão, a formação em Ciências Humanas conduz a humanização do conhecimento técnico, otimizando o desempenho profissional em vários sentidos, autossustentando a relação do sujeito com tudo que o rodeia e consigo mesmo.

Concluindo
A amplitude do conhecimento humano não pode ser razão de limitação do conhecer, antes, deveria permitir compor uma constante ampliação de competências aos profissionais de todas as áreas.
As facilidades tecnológicas e de comunicação, em si, compõem grandes oportunidades de interações e diálogos, nem sempre aproveitadas adequadamente, em meio à estrutura do sistema capitalista fordista.
As Ciências Humanas apresentam-se, frente a este problema, como fator integrador, agregando as Exatas e Biológicas em suas discussões.
Exemplo que deveria ser seguido por estas, onde o espaço das humanidades precisa ser revisto com urgência nos meios acadêmicos.
A ausência de uma formação humanizada tem demonstrado consequências desagradáveis nos diversos campos profissionais, inclusive nas Ciências Humanas, com prejuízos que se acumulam avolumam na sociedade.
Isto não significa que o teor técnico profissional deva ser abandonado, mas sim que as humanidades precisam enriquecer este conhecimento, devendo ser valorizadas, estudadas e aprofundadas.
Antes de ser um profissional, qualquer sujeito é um ser humano, ocorre que, nas mais diversas áreas, a humanização está colocada de lado em nome da automação funcionalista.
Não somos máquinas, mas humanos e, portanto, carecemos de uma formação humanística que conduza à reflexão.
O que pode ser embasado pela filosofia, história, sociologia e antropologia.

Referências
BOFF, L. O destino do homem e do mundo. São Paulo: Vozes, 2003.
BOFF, L. Tempo de transcendência: o ser humano como um projeto infinito. Rio de Janeiro: Sextante, 2000.
BOFF, L. Ética e Moral: a busca de fundamentos. Petrópolis: Vozes, 1989.
HEIDEGGER, M. Ser e tempo. São Paulo: Vozes, 1989.
MONDIN, B. Definição filosófica da pessoa humana. Bauru: Edusc, 1998.
RAMOS, F. P. “A formação dos professores de filosofia e sua atuação profissional em sala de aula” In: Desafios e perspectivas das Ciências Humanas na formação e atuação docente. Jundiaí: Paco Editorial, 2012, p.151-170.
RAMOS, F. P. Filosofia e Ética Profissional. Santo André: FPR/PEAH, 2012.
 --------------------------------------------------------------------------

Fonte: Para Entender a História, Série 01/07, Julho/2012. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário