Por Fábio Pestana Ramos
(Historiador – Doutor em História
Social/USP)
A rigor, as Ciências Humanas envolvem uma ampla
gama de conhecimentos, aparentemente distanciados, tal como economia,
administração de empresas, contabilidade, direito, geografia, psicologia,
pedagogia, linguística, política, arqueologia, etc.
No entanto, a matriz básica que originou todas as
outras subdivisões é constituída pela filosofia, história, sociologia e
antropologia.
Ao passo que a primeira é mãe de todas as ciências
não só humanas, mas também exatas e inerentes às biológicas ou saúde.
A história é quase tão antiga quanto à
filosofia, embora seu referencial teórico vigente seja relativamente recente,
remontando ao século XVIII e, principalmente, XIX e XX.
Já a sociologia e a antropologia são mais jovens,
nasceram no século XIX e se desenvolveram no XX, estando ainda em fase de
estruturação e, de certa forma, de afirmação de sua cientificidade.
Pensando nesta matriz básica das Ciências Humanas,
contemporaneamente, a formação dos profissionais das mais diferentes áreas, na
maior parte dos casos, carece justamente deste referencial.
Abandonado em nome do aprimoramento técnico
especializado, conduzindo a problemas de ordem ética e humanista que, por sua
vez, terminam interferindo no desempenho eficiente da profissão qualquer que
seja.
Um profissional da saúde que comete um erro de
diagnóstico, ou troca a medicação involuntariamente por falta de atenção,
demonstra formação falha de natureza humanística.
Igualmente, um engenheiro que involuntariamente
prejudica seres humanos, defendendo-se afirmando que se ateve apenas aos
aspectos técnicos, também carece dos pressupostos básicos das Ciências Humanas.
Devemos lembrar que os nazistas, no final da
primeira metade do século XX, torturaram, mataram e cometeram atrocidades
bárbaras em nome da eficiência técnico-industrial.
Usando seres humanos inocentes em experiências
médicas e chegando ao requinte macabro de cortar os cabelos de suas vitimas
dentro de um padrão industrial, que servia para fabricar chinelos para as
tripulações dos submarinos alemães, antes de enviá-las para as câmaras de gás.
Vitimando, sem distinção, homens, mulheres, jovens,
velhos e crianças.
A grande questão envolta da ausência da reflexão
humanista mais apurada está atrelada à invisibilidade do outro.
O profissional que nunca refletiu sobre temas
filosóficos, históricos, sociológicos e antropológicos possui enorme
dificuldade em reconhecer-se no outro, tratando o semelhante com descaso e
ausência de ética.
Além disto, possui dificuldade para entender o
mundo em que vive e a importância de suas ações para o progresso da humanidade.
Razão pela qual o processo civilizatório se
encontra decadente, com o aumento dos índices de violência em todo planeta e a
banalização do desrespeito para com a vida, fazendo imperar a mais pura anomia.
Um processo que inaugurou um estado em que paramos
para refletir sobre estes efeitos, somente quando atingidos diretamente em
nossa natureza psicológica e física.
Neste sentido, antes de aprofundar a discussão
sobre a importância das Ciências Humanas na formação profissional, devemos
percorrer os labirintos construídos pelo sistema capitalista.
Definindo inicialmente uma composição mais
detalhada para as humanidades.
A natureza das Ciências Humanas.
Para entender a importância de uma formação
humanística, é necessário entender o âmago primordial das Ciências Humanas.
Por definição, as humanidades abordam diversos aspectos
do ser humano como indivíduo, pessoa e sujeito, tanto no que tange à
introspecção como a externalidade relacionada consigo mesmo, o outro e o mundo.
Em resumo, as Ciências Humanas deveriam buscar
desvendar a complexidade que define a própria humanidade e a distingue do
aspecto puramente animal.
Curiosamente, os reajustes do sistema capitalista
foram afastando as diversas áreas do conhecimento deste ideal, somente a sua
matriz original conservou a inquietação com maior intensidade.
Isto porque as Ciências Humanas, agregando as
exatas e biológicas, pertenciam à filosofia nos primórdios da sistematização do
conhecimento, quando os mitos começaram a ser abandonados em favor de sua
gradual substituição pela racionalização.
Entender o próprio homem e tudo que o rodeia, sem
recorrer aos deuses, era o objetivo inicial, quando por volta do século VIII
a.C, na Grécia e em outras partes do Velho Mundo, intensos debates originaram a
filosofia.
A primeira grande subdivisão deste conhecimento
totalizante aconteceu quando, ainda na antiguidade, Heródoto cunhou a palavra
história, abrindo espaço para uma separação que se processou lentamente.
Na realidade, um dos grandes marcos de ruptura
entre filosofia e história ocorreu somente no século XVIII e, principalmente,
XIX, a despeito de avanços significativos em sua construção teórica no século
XX.
Destarte, a Revolução Francesa, mais precisamente o
iluminismo, inaugurou a divisão clássica entre Humanas, Exatas e Biológicas.
Um processo que contou com a influência da
Revolução Industrial, período em que passou a existir uma valorização do
domínio técnico como sinônimo de ciência e progresso científico.
Foi quando a racionalização totalizante, tendo a
humanização como centro, foi relegada ao plano inferior em nome do lucro.
As Ciências Humanas passaram, a partir de então, a
ser visualizadas como distintas do universo do mundo dos negócios.
Embora a sociologia tenha fornecido instrumentos
para controle das massas de proletários, manipulando comportamentos para
beneficiar a evolução da industrialização e urbanização crescente.
Entretanto, o homem continuou constituindo um ser
dotado de múltiplas esferas, um animal sociopolítico que, diante de sua
fragilidade física perante a natureza, necessita interagir e viver na
coletividade para sobreviver.
As próprias relações de trocas que caracterizam a
essência do sistema capitalista carecem da interação humana e da reflexão
centrada nas humanidades.
Razão pela qual a filosofia dividiu-se em outras
áreas do conhecimento humano no século XIX, no caso, sociologia e antropologia;
que mantiveram sua preocupação com as humanidades, seu objeto central de
estudo.
Assim composta e comportando múltiplas esferas, as
Ciências Humanas podem ser definidas como conhecimento sistematizado que tem o
homem e a sociedade como centro.
O que envolve o estudo das interações entre as
pessoas em diversos níveis, inclusive no aspecto econômico, pedagógico,
organizacional e normativo.
Portanto, tenta desvendar a complexidade humana,
transitando entre a construção do pensamento e a evolução biológica, aspectos
interdependentes.
Centralizando a observação dos fenômenos no homem,
os valores éticos e morais terminam aprofundando a análise de seus diferentes
componentes, atribuindo significado racional às necessidades sociais e
culturais.
O cuidado consigo, o outro e o mundo é uma questão
de sobrevivência, onde tudo espelha o “eu”, e, por esta razão, exige uma
atitude altruísta, já que a natureza humana é egoísta, instintivamente
construída e reforçada pelo capitalismo.
Vertentes humanistas
A matriz básica das Ciências Humanas possui
inúmeras vertentes, com concepções especificas de homem que interferem no olhar
sobre as problemáticas abordadas.
Igualmente interferindo na postura profissional; na
forma de aplicar a técnica; de conceber instrumentais de trabalho; de lidar com
o outro, a coletividade, o mundo, a construção do conhecimento.
Influenciando toda amplitude das Ciências Humanas,
penetrando também nas Exatas e Biológicas.
Uma das primeiras configurações humanistas foi
inaugurada pela tradição socrática na antiguidade, quando a figura simbólica de
Sócrates propôs a atitude expressa pela maiêutica e a máxima “só sei que nada
sei”.
Um posicionamento de abertura para o mundo e constante
aprendizado, assumindo uma posição de aceitação da ignorância diante da
vastidão do conhecimento por construir.
O que foi complementado pela mencionada maiêutica,
o parto de ideias, a atitude questionadora, formando o senso crítico apurado e
aberto ao dialogo com o outro.
Pensamento em concordância com a visão grega de
homem, entendido como eixo unificador da ordem do universo, onde existe uma
dualidade entre mundo das ideias e mundo sensível pela qual o sujeito transita,
ordenando a existência das coisas.
O que conduz a uma série de perguntas que clamam
pela origem das coisas e do próprio homem, conduzindo a racionalização dos atos
e sistematização do conhecimento do eu, do outro e do mundo para lidar com a
dualidade.
A vertente teocrática cristã medieval, imbuída
intensamente de religiosidade, enxerga o homem como criatura de Deus, que
estabelece um dialogo contínuo com o criador, sendo dotado de livre arbítrio.
O que implica na responsabilidade social humana
sobre as próprias ações, com consequências para tudo que rodeia o homem, sendo
o conhecimento fruto da revelação divina, mas também de escolhas da humanidade.
Isto, a despeito do centro da Ciência estar fixado
em Deus e, por decorrência, em sua principal criação, o homem.
A concepção de homem integral, inteiro, dotado de
múltiplas esferas, tornou-se o parâmetro do humanismo renascentista a partir do
século XIV, integrado ao mundo pela sua relação com o divino, mas igualmente
com o profano, abrindo espaço para abandonar a figura de Deus em nome da razão
pura.
Uma vertente que centralizou a reflexão no homem,
subordinando todo conhecimento para tentar entender a existência e o sentido da
vida, inaugurando o desabrochar da Ciência e o período do antropocentrismo em
oposição ao teocentrismo.
Até então, o homem - e o que poderíamos chamar de Ciências
Humanas - configurou o centro do conhecimento, subordinando as Exatas e
Biológicas.
O que começou a mudar na Idade Moderna, quando o
homem substitui Deus pela sua própria figura, definindo-se como ser pensante
dotado de autonomia, fornecida pela razão cartesiana e a experiência empirista.
Mesmo diante deste panorama, a natureza humana
ainda é holística, dotada de totalidade que integra as partes e serve para
estabelecer inter-relações entre as subdivisões do conhecimento, que, pela
altura, já começava a surgir.
Entretanto, o período contemporâneo agrega a tendência mecanicista, que procura
explicar o mundo através de analogias com o funcionamento de máquinas, momento
em que o homem perde espaço para os objetos e fenômenos que o rodeiam,
tornando-se apenas um elemento que reage as forças que lhe são aplicadas.
É neste sentido que Darwin, com o evolucionismo, ao
abordar a evolução como fruto da seleção natural, transforma o homem em apenas
mais um ser dentre tantos outros disputando recursos naturais e lutando pela
sobrevivência.
Igualmente, Comte, demonstra que o homem é apenas
mais um objeto de estudo dentro do âmbito da mecânica social.
Pouco a pouco, o homem é convertido em máquina de
produzir e consumir por uma lógica tecnicista, que também estabelece
tendências.
Tal como o capitalismo liberal e neoliberal, que
enfatiza o individualismo e a competitividade, abandonando o olhar para o outro
como espelho e para o mundo como consequência dos atos humanos.
A pluralidade perdida permanece sendo discutida pela
matriz das Ciências Humanas, em muitos casos em uma tentativa de resgate das
antigas vertentes humanistas.
Todavia, o abandono da humanização, em beneficio do
tecnicismo profissionalizante, continua a desprestigiar as Ciências Humanas,
reduzidas à literatura ou poesia, puramente imaginada e sem conexão com a
realidade, consideradas afastadas de uma utilidade prática.
Nada mais falso, como tentaram demonstrar diversas
tendências humanistas surgidas ou aprofundadas no século XX.
Tal como o marxismo, que, a partir da dialética e
do materialismo histórico, define o homem como produto do meio, mas também
produtor consciente das condições materiais transformadoras da vida.
A utilidade das Ciências Humanas
A utilidade das Ciências Humanas na vida
profissional, em qualquer área, é muito mais ampla do que se imagina.
Em primeiro lugar, como lembrou Leonardo Boff,
clama pela dignidade humana e remete à construção ética da pessoa, a reboque,
da prática profissional, em prol de uma sociedade mais justa e igualitária.
Inserindo-se no resgate da preocupação consigo
mesmo e o outro, que se perde no processo de formação compartimentado e
tecnicista, imposto pelo capitalismo fordista vigente.
Neste sentido, resgata, ou pelo menos tenta, a
totalidade humana e a concepção de conhecimento interligada e dependente da
multiplicidade.
Por sua vez, camuflada e oculta pelo tecnicismo
profissional, distorcendo a própria visão sobre o mundo e a participação do
“eu” na auto reprodução do sistema capitalista.
Portanto, as Ciências Humanas ampliam a percepção,
estimulando a formação de um senso crítico intensamente questionador e
transformador da realidade.
A competitividade, sob esta ótica, não deixa de
existir, mas torna-se ética, estabelecendo a preocupação com o outro e uma
vivencia profissional humanizada.
O autoconhecimento de si mesmo, reconhecido como
espelho no outro, aproxima as pessoas e demonstra que existe uma intensa
interdependência que interfere no desempenho profissional.
A ausência do paciente, não existe o médico. Na
falta do aluno, não existe razão no trabalho do pesquisador ou do professor.
As próprias relações de trocas, a produção
industrializada, perdem seu sentido sem o homem como centro do processo.
Assim, em um mundo dominado pela competitividade,
com um mercado de trabalho que exige excelência no desempenho profissional, a
preocupação com o outro demonstra também o cuidado consigo mesmo, pois o “eu”
se transforma constantemente no “ele”, gritando pelo “nós” através da formação
humanista.
Este resgate da totalidade transforma o desempenho
profissional e a consciência do mundo.
Sujeitos alienados são facilmente manipulados,
configurando um problema do ponto de vista da eficiência profissional, pois
exigem supervisão constante, diante da incapacidade de perceber as questões que
se apresentam e tomar decisões acertadas.
É neste sentido que a consciência do mundo, ao
ampliar o senso crítico, cria autonomia, capacidade de resolução de problemas
de forma integrada e integradora, pensando no âmbito humanista que vê o
conhecimento e as pessoas como parte de um todo sistêmico.
Refletindo por este prisma, as humanidades
estreitam relações sociais e melhoram a convivência política, tendo o bem comum
de determinada categoria profissional como foco ou da organização a qual os
indivíduos pertencem.
A reboque, dentro da construção de uma postura
ética, constrói o caminho da busca da felicidade coletiva da sociedade em
sentido amplo.
Portanto, em qualquer profissão, a formação em
Ciências Humanas conduz a humanização do conhecimento técnico, otimizando o
desempenho profissional em vários sentidos, autossustentando a relação do
sujeito com tudo que o rodeia e consigo mesmo.
Concluindo
A amplitude do conhecimento humano não pode ser
razão de limitação do conhecer, antes, deveria permitir compor uma constante
ampliação de competências aos profissionais de todas as áreas.
As facilidades tecnológicas e de comunicação, em
si, compõem grandes oportunidades de interações e diálogos, nem sempre
aproveitadas adequadamente, em meio à estrutura do sistema capitalista
fordista.
As Ciências Humanas apresentam-se, frente a este
problema, como fator integrador, agregando as Exatas e Biológicas em suas
discussões.
Exemplo que deveria ser seguido por estas, onde o
espaço das humanidades precisa ser revisto com urgência nos meios acadêmicos.
A ausência de uma formação humanizada tem
demonstrado consequências desagradáveis nos diversos campos profissionais,
inclusive nas Ciências Humanas, com prejuízos que se acumulam avolumam na
sociedade.
Isto não significa que o teor técnico profissional
deva ser abandonado, mas sim que as humanidades precisam enriquecer este
conhecimento, devendo ser valorizadas, estudadas e aprofundadas.
Antes de ser um profissional, qualquer sujeito é um
ser humano, ocorre que, nas mais diversas áreas, a humanização está colocada de
lado em nome da automação funcionalista.
Não somos máquinas, mas humanos e, portanto,
carecemos de uma formação humanística que conduza à reflexão.
O que pode ser embasado pela filosofia, história,
sociologia e antropologia.
Referências
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Paulo: Vozes, 2003.
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fundamentos. Petrópolis: Vozes, 1989.
HEIDEGGER, M. Ser e tempo. São
Paulo: Vozes, 1989.
MONDIN, B. Definição filosófica da pessoa
humana. Bauru: Edusc, 1998.
RAMOS, F. P. “A formação dos professores de
filosofia e sua atuação profissional em sala de aula” In: Desafios e
perspectivas das Ciências Humanas na formação e atuação docente. Jundiaí:
Paco Editorial, 2012, p.151-170.
RAMOS, F. P. Filosofia e Ética
Profissional. Santo André: FPR/PEAH, 2012.
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Fonte: Para Entender a História, Série
01/07, Julho/2012.
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