Anaïs Nin é, por certo, o que se pode chamar de uma escritora "sem limites na exploração dos labirintos da vida". Por estas paragens, contudo, a sua literatura não é muito presente, não obstante, do seu percurso, já tenha surgido até mesmo um filme - Henry & June, com a atriz portuguesa Maria de Medeiros interpretado-a. Com uma narrativa que não recusa as 'curvas da existência' e, por vezes, é adornada pela psicanálise, Anaïs Nin foi uma mulher-escritora da infinita vivência dos finitos momentos da vida - concorde-se com isso ou não - e com um horizonte de espírito para além do que o mundo aparentemente é. Aí abaixo, reproduzo uma incursão no seu Uma Espiã na Casa do Amor (na versão lusitana, a palavra espiã não leva acento - grafa-se 'espia').
Por Aline Veingartner
Confesso que, a
julgar pelas primeiras páginas, o livro me pareceu só mais uma entre tantas
versões de Madame Bovary. Mas, conforme fui avançando na leitura, meus olhos
começaram a brilhar... Fui tomada por aquela sensação - um pouco juvenil, não
nego - de identificação e reconhecimento. De não sou a única no mundo.
Agora faz sentido. Eu poderia ter dito isso. Agora entendo o processo pelo qual
tenho passado. Uma impressão que Madame Bovary, nem de longe, pôde me
causar, apesar de sua inegável importância na literatura universal.
Não apenas me sentia profundamente conectada à Sabina como ainda me encantava
com o trabalho sutil e sensibilíssimo com a linguagem. Nenhuma cena de tirar o
fôlego, nenhum ponto alto nas ações, mas uma narração tão lírica de coisas que
eu podia entender tão bem.
Sem sombra de dúvida, não foi mero acaso...
" - É
verdade. No entanto, você não teria me chamado se fosse inocente. A culpa é o
único fardo que os seres humanos não conseguem suportar sozinhos. Assim que um
crime é cometido, há uma chamada telefônica ou uma confissão a estranhos.
- Não houve
crime nenhum.
- Só existe um
alívio: confessar, ser apanhado, investigado, punido. Esse é o ideal de todo
criminoso. Mas não é tão simples assim. Apenas a metade do Eu quer expiar a
culpa, para se libertar de ser tormentos. A outra metade da pessoa quer
continuar a ser livre. Assim, apenas a metade do Eu se rende, clamando
'agarre-me', enquanto a outra metade cria obstáculos, dificuldades; procura
escapar. É um flerte com a justiça. Se a justiça for ágil, seguirá o indício
com a ajuda do criminoso. Caso contrário, o criminoso se encarregará da própria
expiação.
- Isso é pior?
- Acho que sim.
Penso que somos juízes mais severos dos nossos próprios atos do que os juízes
profissionais. Julgamos nossos pensamentos, nossas intenções, nossas
imprecações secretas, nossos ódios secretos, não apenas nossos atos."
"Lentamente,
o que ela compôs com o novo dia foi seu próprio foco, a fim de reconciliar
corpo e alma. Isso foi feito com esforço, como se todas as dissoluções e
dispersões do seu eu na noite anterior fossem difíceis de reagrupar. Ela era
como uma atriz que deve compor um rosto, uma atitude para enfrentar o
dia."
"Um caos
interior, semelhante àqueles vulcões secretos que, de repente, erguem os sulcos
nítidos de um campo pacificamente arado, aguardava, por trás de todas as
desordens do rosto, cabelo e roupa, uma fissura por onde explodir."
"A
imobilidade sempre lhe trouxera essa imagem, a imagem da morte, e era isso que
a impelia a se levantar e buscar atividade. O repouso, para ela, assemelhava-se
à morte."
"Até esse
momento, ela experimentara apenas uma simples rebelião contra as vidas que a
cercavam, mas então começou a ver as formas e cores de outras vidas, reinos
muito mais profundos, estranhos e remotos a serem descobertos, e percebeu que
sua recusa à vida comum tinha um propósito: despachá-la qual foguete em direção
a outras formas de existência. A rebelião era apenas a fricção elétrica
acumulando uma carga de energia que a lançaria ao espaço.
Compreendeu por
que se irritava quando as pessoas falavam da vida como sendo uma. Tinha certeza
de miríades de vida dentro de si. Seu sentido de tempo alterou-se. Sentiu
vividamente e com aflição a brevidade do período físico da vida. A morte
encontrava-se terrivelmente próxima, e as jornadas em direção a ela eram vertiginosas,
mas somente quando levava em consideração as vidas à sua volta, aceitando-lhe
os horários, relógios, medições. Tudo que faziam contraía o tempo. As pessoas
falavam de um nascimento, uma infância, uma adolescência, um romance, um
casamento, uma maturidade, um envelhecimento, uma morte e, então, transmitiam o
ciclo monótono a seus filhos. Mas Sabina, ativada pelos raios lunares, sentia
germinar dentro de si o poder de entender o tempo nas ramificações de uma
miríade de vidas e amantes, para expandir a jornada ao infinito, fazendo
imensas e voluptuosas voltas como cortesã depositária de múltiplos desejos. As
sementes de muitas vidas, lugares, de muitas mulheres dentro de si foram
fecundadas pelos raios lunares, porque vinham dessa vida noturna ilimitada, que
geralmente percebemos apenas em nossos sonhos, os quais contêm raízes que se
estendem a todas as magnificências do passado, transmitindo os ricos sedimentos
ao presente, projetando-os ao futuro.
Observando a
lua, ela adquiriu a certeza da expansão do tempo pela profundeza da emoção,
extensão e infinita multiplicidade da experiência."
"E sua zona
neutra, o momento em que não pertencia a ninguém, quando recompunha de novo seu
eu dispersado. O momento do não amando, não desejando. O momento em que alçava
vôo, se o homem tivesse admirado uma outra mulher que passasse, ou falasse
durante muito tempo sobre um antigo amor, as pequenas ofensas, as pequenas
feridas, um estado de espírito de indiferença, uma pequena deslealdade, uma
pequena infidelidade, tudo isso eram advertências sobre possíveis erros
maiores, a serem neutralizados por uma deslealdade igual, maior ou total, de
sua parte, o mais esplêndido dos antídotos, preparado com antecipação para
emergências últimas. Ela estava acumulando um suprimento de traições, de modo a
que, quando o choque viesse, ela estivesse preparada: 'Não fui apanhada sem
saber, a armadilha não se fechou sobre a minha ingenuidade, sobre a minha tola
credulidade. Eu já havia traído. Para estar sempre à frente, um pouco à frente
das esperadas traições da vida. Para estar ali em primeiro lugar e, assim,
preparada...'"
"Certas
estradas trilhadas emocionalmente apareciam também no mapa do coração como que
se afastando do centro e, no final, levavam ao exílio."
"Nenhum
lugar, nenhum ser humano poderia suportar ser olhado pelo olho crítico do
absoluto, como se fosse um obstáculo à chegada a um lugar ou pessoa de maior
valor criado pela imaginação. Era essa influência maligna que ela exercia em
cada quarto, quando se perguntava: 'Fui feita para viver aqui para sempre?'.
Essa era a influência maligna, a aplicação do irrevogável, a fixação infinita
em um lugar ou relacionamento. Isso o envelhecia prematuramente, acelerava o
processo de decadência pelo envelhecimento. Um raio químico da morte, esse
concentrado de tempo, infligindo o medo do entorpecimento como um raio
consumidor, deteriorando à alta velocidade de cem anos por minuto."
"Os
fingimentos, as fugas e os artifícios pareciam-lhe, em seus estados de espírito
bem-humorados, esforços alegres e galantes para proteger a todos das crueldades
da existência, pelas quais ela não era responsável. O juízo e a boa ação eram
empregados para tais fins justificáveis: proteger os seres humanos das verdades
insuportáveis.
Mas nenhum dos
que ouviam jamais compartilhou seu divertimento súbito: em seus olhares ela lia
condenações. Sua gargalhada parecia um sacrilégio, um escárnio de algo que
deveria ser considerado trágico. Sabina podia ver em seus olhos o desejo de que
ela caísse desse trapézio incandescente no qual passeava com o auxílio de
delicadas sombrinhas japonesas de papel, pois nenhum partícipe de culpa tinha o
direito a tal habilidade e viver apenas de seu poder de equilíbrio sobre os
rigores da vida que ditavam uma escolha, de acordo com seus tabus em relação às
múltiplas escolhas. Ninguém dividiria com ela essa ironia e jocosidade contra a
rigidez da própria vida; ninguém iria aplaudir quando ela fosse bem-sucedida
por causa de sua engenhosidade em derrotar as limitações da vida."
"Os
sentidos criavam leitos de rio de respostas, formados em parte pelos
sedimentos, pelo desperdício, o alagamento da experiência original. Uma
semelhança parcial poderia excitar o que restara do amor extirpado de maneira
imperfeita, que não morreu de morte natural."
"Mas quando
queria terminar um papel, tornar-se ela própria de novo, a outra se sentia
imensamente traída, e não apenas lutava contra a alteração, como também ficava
furiosa com ela. Quando um papel se estabelecia em um relacionamento, era quase
impossível alterá-lo. E mesmo que fosse bem-sucedida, quando chegava o momento
de retornar à verdadeira Sabina, onde estava ela? Caso se rebelasse contra o
papel com relação a Donald, se colocasse de novo o disco do Pássaro de
fogo, o tambor dos sentidos, as línguas de fogo, e negasse a mãe dentro de
si, estaria então retornando à verdadeira Sabina?"
"A selvagem
bússola a cujas oscilações ela sempre obedecera, propiciando o tumulto e o
movimento em lugar da direção, quebrou-se de repente, de tal como que ela já
não experimentava o alívio das vazantes, enchentes e dispersões.
Sentia-se
perdida. A dispersão tornara-se vasta demais, extensa demais. Um dardo de dor
cortou a forma nebulosa, Sabina movera-se sempre com tanta rapidez que toda dor
passara prontamente como que através de uma peneira, deixando uma mágoa
parecida à de uma criança, logo esquecida, logo substituída por outro
interesse. Ela nunca conhecera uma pausa. (...)
Perdera-se a si
mesma em algum lugar ao longo da fronteira entre suas invenções, histórias e
fantasias e seu verdadeiro eu. Os limites tornaram-se turvos, as trilhas se
apagaram; ela caminhara em direção ao caos puro, e não um caos que a levava
como o galope de cavaleiros românticos nas óperas e lendas, mas que de repente
revelava os adereços teatrais: um cavalo de papier-mâché."
"Aquele que
tem como objetivo a vitória ainda não amou!"
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Fonte: http://alineveingartner.blogspot.com.br/
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