quarta-feira, 26 de agosto de 2015

Mancha muda de vidro


₢ Ygor Raduy | sem título | técnica mista
Tela de Ygor Raduy (sem título) 

Por Eduardo Henrique Valmobida

Os olhos apertados, sobrancelhas quase unas, a face riscando-se e tremendo suavemente. A respiração é lenta e compassada. Os lábios se escondem contraindo-se um contra o outro. Uma veia saltada e pulsando fortemente marca o pescoço. Pelos espalham-se pela parte inferior do rosto, e iniciam sua extensão até o pescoço, raros. Uma súbita coceira na nuca. Os ouvidos param de captar. Não há mundo fora.
 Da força empregada nas pálpebras resultaram duas lágrimas nos cantos. Os músculos distendem-se lentamente. Stop-motion, sem motivo, semicor. A veia que pulsa azulada. No compasso da respiração passa a dor, passa o tempo, passa-fora, passado. Os olhos estão se abrindo, se preparando pra ver, desnudando-se, desnublando-se. Verão?
 Veem. Mas veem bem pouco, e se viram no espelho, retos, curvilíneos, coloridos, opacos, corretos. Mente nova e irrelevante de pessoa insegura. É o que pensa o cérebro por trás dos olhos, mascarado pelo rosto mal delineado. Engano de vista? Não estava preparado? O cérebro ou o olhar? Colam-se as pálpebras num milésimo vagaroso, súbito-negror, alívio quase imperceptível. Tão leve como o ar que entra-e-sai no compasso.
Ainda não há som. Não, há sim. Não havia porque não havia prestado atenção, mas, ao pensar, instantaneamente houve, ou ainda, sempre houvera. Mas que tipo de sempre? Sempre-eterno, ou o sempre que ninguém quer o suficiente para que seja e, não o querendo, não o é? Irrelevante, o cérebro se repreende, tão raso que não se permite saber além.
Além do espelho, no espelho, pouco há. Placa de metal manchada, escondendo, ou melhor, não refletindo, inútil, não cumprindo seu papel. E por não obter sucesso é que se torna dispensável? Não, muito pelo contrário, já serviu para brotar um pensamento, semeou uma palavra, uma sensação que o cérebro finalmente se atém a desenvolver, no mínimo a considerar a questão. A mancha, o borrão, a área nula no espelho que não reflete uma parte do rosto que se encara, que, na verdade, encara o espelho.
Se os olhos veem o espelho e não a si próprios então o espelho deixou de cumprir o seu papel, não? Não reflete, mas é corpo, é objeto-concreto, adaptável inadaptado. Alguém percebeu o espelho para além do seu instinto. O espelho não mais o é. O que se torna então?
O espelho é a janela de vidro trabalhada em si para mostrar o que não é, e se não for absurdamente puro está sujeito às peripécias de uma visão atenta, levemente infantil, que percebe que o espelho não é vazio nem eco, mas passagem e boca engolidora. O cérebro parece funcionar bem, e identifica cores e padrões. Mesmo com os constantes negrores súbitos não houve interrupção de pensamento. Então são automáticos… Deixa ser.
 Desatentos do corpo do espelho ele não mais o é, mas a imagem dos lábios que, relaxados, rosados e rachados, recusam-se a abrir. Não há intenções para a boca. A boca não tem utilidade alguma além da expressão. Não se olha a boca sozinha, mas como parte do conjunto da face que, então, transmite a mensagem que for para o olhar atento de outrem ou de um reflexo. Mas os olhos se focaram na boca, nos lábios lacrados, e houve um rompimento na ideia inicial da coisa. A coisa era a ordem. Não há mais ordem?
Os lábios se romperam sob essa luz. Espanto ou concordância, mas nada a ser pronunciado. O único som foi o do lacre rasgando-se. Houve um momento em que tudo era pleno e completo e devidamente fechado. Os lábios se abriram na imagem refletida e quebraram o silêncio secreto brutalmente, eternamente. Nunca houve silêncio, e esse nunca é final.
E pela inexistência do silêncio e pelo rompimento dos lábios, abriu-se a boca. E a boca era um grito inaudível de sentimento incubado. E vazou um rio de ar que interrompeu o compasso eterno da respiração nasal. O cérebro interrompeu-se. A visão embaçou-se. O interno da boca, que no início era úmido e fértil, tornou-se árido. O som da respiração inundando: se-co, se-co, se-co… Os olhos apertam-se, querendo doer. O rosto fecha-se, querendo sumir. E não há mais espelho.
----------------------------
Fonte: http://canalsubversa.com/?p=2706


Nenhum comentário:

Postar um comentário