segunda-feira, 31 de agosto de 2015

Fala do tempo e ficção

É, para dizer o mínimo, delicado o fato de o governo ser levado a apresentar um orçamento com déficit. É bem provável que, de modo geral, não se tenha noção do que isso significa. Por outro lado, essa situação serve para mostrar como era irreal o quadro das contas públicas e do orçamento da União que nos era descrito. O tempo é, ao fim e ao cabo, porto seguro para fazer ver o que nem sempre se percebe no curto prazo, para gerar convencimentos e para laçar lume sobre a tomada de decisões.  O problema é que, às vezes, pode ser tarde demais. Ao render-se ao orçamentário deficitário, talvez o governo devesse emitir sinais também sobre algo que é de extrema gravidade, e que já começa a ser divulgado: a informação segundo a qual o número sobre as reservas do país é fictício, no pressuposto de que o Brasil não teve saldo em conta-corrente que permitisse acumular reservas, sendo elas formadas então inteiramente pela conta de capital do balanço de pagamentos. O que significa dizer, como assinalou César Benjamin, que as reservas correspondem a um passivo externo líquido que é muito maior do que elas. Falando mais didaticamente: é qualquer coisa do tipo como alguém apresentar um elevado saldo em caderneta de poupança, mas esconder um grande rombo no cheque especial.

Ser latinoamericano, começar a pensar como espécie, a 'beleza da vida'

Da nossa América Latina, a palavra de Pepe Mujica. 


Tentativa e erro

Por Ricardo Melo

O recuo da presidente Dilma em relação à CPMF coroou uma série de iniciativas desorientadas que comandam o governo desde as ameaças de impeachment.
Primeiro foi a Agenda Brasil, coleção de postulados conservadores destinada a afagar a elite. Alguém sério ainda lembra dela?
Depois veio o anúncio atabalhoado do corte de ministérios. Quantos? Quais? Quando? Deixa pra lá.
Agora o ensaio de ressurreição da CPMF. Nem se trata de entrar no mérito da proposta. Tampouco perder muito tempo em registrar o cinismo de oposicionistas e outros tantos que criaram o imposto no passado e agora posam de seus maiores adversários.
A raiz do problema continua sendo a mesma. Como compatibilizar um governo que se diz social –  e que, por isso, tem sido reeleito –, mas insiste em procurar socorro naqueles que nunca engoliram a hegemonia de um partido fora do cenário tradicional da política brasileira. O pau que bate em Chico continua preferindo os Chicos, este é o fato.
O resultado constrange. A tal base política esfarela-se dia após dia. As concessões a torto e, principalmente à direita, não surtem efeito. De uma certa forma, o Planalto caiu na armadilha montada pela oposição. O fantasma golpista passou a guiar todos os passos da administração.
Cada lado festeja vitórias fátuas em tribunais que há muito perderam o respeito público. Além do TCU, Dilma vem sendo ameaçada pelo TSE. Ora, na mesma corte o PSDB é suspeito de cometer pelo menos 15 irregularidades na campanha presidencial. Você sabia disso? Provavelmente não. O assunto está confinado ao pé de página de alguns jornais. Uma das acusações, veja só, refere-se a doações de empreiteiras citadas na mesma Lava Jato que sataniza o PT.
Isso sem falar do escândalo do HSBC e da roubalheira assumida na sonegação fiscal na Receita. Talvez a Operação Zelotes não seja tão sexy, como diria o ministro Levy. Nesta nem foi preciso recorrer a vazamentos premiados de criminosos reincidentes. O próprio juiz responsável pelo caso, aprendiz de Gilmar Mendes, tratou de bloquear a investigação.
O Brasil vive sobretudo uma luta política. Mas quem vai decidir o desfecho são aqueles que sentem na pele o emprego minguar, os preços aumentarem, o acesso à educação, à moradia e a benefícios trabalhistas duramente conquistados ficarem mais difíceis. Isso não se resolve com discursos ou batalhas apenas pelo poder, seja de que lado for.

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Fonte: Folha de São Paulo, versão para assinantes, edição do dia 31/08/2015

sábado, 29 de agosto de 2015

O outro lado do tempo


Por Leont Etiel 

Na sombra das estradas
das viagens infindas  
As cinzas pisadas de uma noite em busca de afagos
soar de um vento fugaz
Ausência manifestada na penumbra do dizer
sentida
Dor no próprio cerne do silêncio
lume incinerado
Ce qu'on dit n'est plus
a distância perto
Introspecção cosmopolita em calma imagem  
do olhar e da memória fazendo corpo presente
Essa noite incendiada
madrugada a ser despida
Passo dos segundos, dos minutos, das horas
do porvir
O outro lado do tempo
esperado



Nada a fazer


A vida nas agitadas e amargas águas da História


Aí acima temos o recorte de uma capa do jornal espanhol El País. Na foto, imigrantes flutuando no Mediterrâneo, lutando contra a morte por afogamento, no curso da viagem para chegar à Europa. A foto é "forte" (esse eufemismo para ocultar o que dói na vista e deveria doer na consciência)? A muitos não comove nem um pouco, mas há registros piores, como a dos vários e vários corpos que chegam sem vida às praias europeias ou a do caminhão de transportar carne encontrado abandonado em uma estrada austríaca com 71 imigrantes mortos.  No fundo, em boa parte, a responsabilidade por essa tragédia é da própria Europa. E não falo necessariamente por decorrência do seu passado colonial em África, mas sim em função do seu papel, como parceira dos Estados Unidos, na desestabilização e derrubada de governos africanos/do Médio Oriente. Governos que, a despeito da autocracia, ou talvez por isso mesmo, mantinham a unidade territorial dos países e a sua "coesão" interna, como era o caso da Líbia. Por trás de uma falsa bandeira de democracia,  o Ocidente cristão não mediu forças em atacar países islâmicos, transformando-os em 'casos de caos infernais', fazendo vir ao de cima as tendências mais extremistas do islamismo, cujo produto final temos agora na forma do Estado Islâmico. O resultado está aí: países destroçados e as suas populações - com muitas pessoas fugindo dos conflitos internos - batendo às portas da Europa. A democracia, o Ocidente não promoveu nessas nações, mas apossou-se do seu petróleo. A França, por exemplo, após participar da derrubada de Kadafi, logo firmou contrato com as novas autoridades da Líbia ficando com 40% da produção petrolífera. É uma realidade distante que choque? É. Pois então pense no Brasil, e procure informações sobre como muitos haitianos e bolivianos - dentre outras nacionalidades - têm sido tratados em nosso país ultimamente. Lá, na Europa, como cá, esses são os irresolúveis paradoxos da civilização ocidental cristã, que o ateísmo de José Saramago tanto denunciava - ou mais do que isso, o problema do "Fator deus", como ele sustentava. No caso da ação bélica levada a cabo pelo Ocidente cristão contra os povos do Oriente, trata-se de algo que vem de longe - a ponta da espada das Cruzadas tem muito a dizer a esse respeito. Daí o historiador uruguaio Carlos Di Palma ter escrito que a nossa civilização passará a história como a mais cruel e sanguinária que a humanidade já conheceu. A conferir isso no texto a seguir. 


Por Carlos Di Palma 

Observando la foto de decenas de náufragos libios flotando en el mar a punto de morir ahogados que ha publicado el diario El País de España, yo, Carlos Di Palma, asumo mi condición de profesor de Historia, para decir avergonzado que nuestra “civilización”, “cultura” o como quiera definirse, Occidental y Cristiana, pasará a la historia como la más cruel, sanguinaria y terrorista que jamás haya conocido la Humanidad. Eso será lo que enseñen mis colegas en sus clases dentro de unos cien, o a lo sumo 200 años en sus clases (si antes no nos cargamos el Mundo entero) No conozco culturas ,o imperios que hayan sobrevivido más de 2.000 años. Nosotros estamos en ese límite. Empezamos a molestar y matar a esta pobre gente ya en tiempos de las Cruzadas. No queríamos solo matar a los infieles, sino lo que buscábamos era robarles sus riquezas. Hubo pueblos como los chinos que hicieron murallas para no ser invadidos, pero nosotros teníamos el espíritu de invadir y saltar esas murallas .Los pueblos que construyen muros o murallas para separarse de otros pueblos son siempre necios, o simplemente no han aprendido nada de la Historia. Mandamos a gente como Marco Polo que era nada más que un espía para informar que había de robable en tan lejanas tierras. Lo mismo hicieron los exploradores ingleses en la India y en el África. Luego de sus informes, venían los ejércitos.
A principios del siglo XX se despertó la necesidad del petróleo, y ahí fuimos a robar el oro negro. Casta que se doblegaba, le perdonamos la vida y la llenamos de lujo como Arabia Saudí, y los que se rebelaron fueron exterminados. Últimamente hemos visto como hemos destruido sociedades como la afgana, la iraquí, la libia etc, etc, etc. Nos mostraban los noticieros a la hora de la cena como nuestra maravillosa tecnología bélica podía hacer volar una aldea, un barrio entero colocando una cámara de TV en la punta del misil, destruyendo familias enteras, rebaños, cultivos considerándolos simplemente “daños colaterales” Ahora tenemos los Drones, que matan por control remoto… ¿es esto terrorismo? No sé ustedes, pero a mí me produce mucho terror. No recordemos las bombas atómicas sobre Japón , ni las de napalm sobre Viet-Nam. Ellos no tienen “drones”, pero la desesperación los lleva a un arma aún más terrible y precisa: los “drones humanos”. Hemos destruido Libia que era un país estable y próspero. Era necesario eliminar al dictador Kadafi para “regalarles “ la democracia. Francia formó parte de la coalición y luego firmó contratos petroleros con las nuevas “autoridades” quedándose con el 40% de la producción. Pues que ahora el país de la “libertad, igualdad y fraternidad” se haga cargo del 40% de los refugiados. Una importante funcionaria de la ONU ha propuesto bombardear los puertos de salida de estas embarcaciones precarias, y da igual si los barcos están vacíos o llenos de gente. Los refugiados, los desplazados, los desesperados se están agolpando en nuestras fronteras. Será imposible frenarlos porque le hemos destruido todo y solo les queda lanzarse al mar. Estamos pagando las consecuencias de los estragos que hemos cometido para lograr “espacio vital”. Nuestra civilización es un barco que se hunde… pronto estaremos como estos desgraciados de la fotografía de la vergüenza.


'Piano do toque interior'

Por Jorge Palma, 'Balada de um Estranho'. 

sexta-feira, 28 de agosto de 2015

O infinito tilintar das chaves

Óleo e acrílica sobre tela ₢ Francisco Ben
Óleo e acrílica sobre tela,  Francisco Ben

Por Eric Costa 

Somos reféns perpétuos de nosso próprio microcosmo mental. Já diria eu outras vezes por essas mesmas linhas tortas.
Eternidade é transcendental ao tempo: agrava-se quando se vê a chave de nossos problemas às mãos de um carcerário cruel, que faz do tilintar das chaves a gota torturante que cai sobre a testa indefinidamente. É desumano – ou talvez seja humano demais? – constatar: as soluções estão logo ali, mas o braço é curto demais para alcançá-las – se é que somos capazes de esticá-los.
Um pesadelo. Um medo profundo de não acordar. Uma fiel certeza de aquela agonizante dimensão ser real por alguns minutos. Por horas, quem sabe. Em um cárcere profundo, perdem-se as noções de tempo e espaço. Braçadas, passos largos e quedas a outros planos. Súbito, um universo em desejada e longamente pretendida expansão. A orquestra ao fundo, com o maestro de sempre, mas com uma peça teatral em palco vizinho. Nela a imperfeita simetria com a assimetria tão sempre pensada: os personagens de sempre, mas em áureo rearranjo. Poderia se dizer ideal, se tal condição existisse e não fosse uma utopia palpável apenas às visões distorcidas.
Outrora, do caos a criação – não que a atualidade seja diferente disto. Do profundo e sombrio pesadelo, um par de minutos em harmônico sonho.
Há um quê de admiração, no fim, a anarquia deste microcosmo mental que nos cerca. Sob nosso lúcido controle, somos encarcerados na vigília. Os muros e grades ao nosso redor? Um pouco de mais do mesmo daquilo que é intrínseco.  Ao sono, parecemos ganhar o pincel da criatividade, as tintas e até mesmo as telas já prontas que tanto idealizamos nas tão improdutivas horas que habitam nossos dias. O piloto automático do acordar, ao dar lugar ao voo planador das horas de sono, nos faz refletir que a mesma encarcerada mente diurna é espírito livre à escuridão e capaz de dos pesadelos edificar sonhos em estalar de dedos.
O que afasta cada um de tal propriedade de constante mudança, se só ela é de fato permanente? O braço de cada um poderia, mas não estica o suficiente a alcançar as chaves dos problemas. É a terceira conclusão que tiro da mesma forma. Segunda? De fato, a desordem cerca. Até contar torna-se difícil. Mais pura constatação de se estar perdido meio a um laço infinito.
O braço segue sem esticar. Talvez por incapacidade. Quase certamente por opção. As portas da percepção me trazem: será mesmo girar as chaves e explorar novos horizontes o desejo definitivo? Na imperfeita métrica humana, segue-se caminhando. Ao sabor de quem dedilha as cordas do universo sim, mas talvez ao som da sinfonia do tilintar de chaves do carcerário com a qual, quem sabe, já estejamos  acostumados e rendidos. E que talvez meramente aceitemos.
Um medo agonizante de não acordar, por ora. Um receio sem fim do que nos habita a simples abertura dos olhos. Quase sempre.
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Fonte: http://canalsubversa.com/?p=2422

Lacuna e cegueira política

Há uma lacuna em muitas análises políticas sobre o atual momento brasileiro, lacuna que as debilitam e as remetem à esfera de uma mera “tautologia politicista”. E promovem a cegueira em relação a aspectos fundamentais. Por outras palavras: é irrelevante circunscrever as abordagens sobre a crise apenas à movimentação dos agentes políticos em cena. Desse modo, não chegamos à percepção do que está em causa no presente momento e menos ainda conseguir-se-á vislumbrar os delineamentos futuros. Falta o fator econômico em tais análises, a fusão entre economia e política – ou digamos, como opção de abordagem, é necessário fazer a Economia Política falar (seja na tradição que vai de Adam Smith à crítica de Marx, seja na perspectiva de autores contemporâneos, como o teórico das relações internacionais Robert Gilpin). Sem a aludida fusão não vamos analiticamente a lugar nenhum. Alguns elementos como prova empírica disso:

1) Observe o gráfico aí abaixo. Ele descreve o percurso da taxa básica de juros (Selic), com a marcha da insensatez dos últimos tempos, chegando aos 14,25%, com o aumento de julho - a despeito das críticas de várias vozes com treino no assunto. Ora, o aumento da Selic tem como consequência imediata o aumento das despesas do governo, com o pagamento de juros aos credores detentores de títulos da dívida pública - nesse processo, cada ponto na elevação da Selic custa ao governo, em números arredondados anualmente, conforme dados mais recentes, cerca de R$ 15 bilhões de reais. Depois, ainda tem-se a pachorra de se falar em ajuste fiscal e até em segurar o 13º dos aposentados!

Copom taxa de juros Selic 14,25% (Foto: Editoria de Arte/G1)


2) Abstraiamos o aludido aí acima.  Sobra então a desculpa do aumento dos juros como medida preventiva ao aumento da inflação. Aí, a lorota é grande. Até o tucano José Serra já disse, por escrito, e com razão, que o fundamental da pressão sobre a inflação teve/tem a ver com câmbio e com a correção de tarifas e preços administrados. 

3) Um nítido retrato da sangria decorrente do pagamento dos juros da dívida pública: em 2014, o governo Dilma repassou R$ 251,1 bilhões aos credores da União, um aumento de cerca de 35% em relação ao ano anterior (R$ 185,8 bilhões).  Esse montante, de 2014, seria suficiente para pagar uma década do Programa Bolsa Família. É possível, assim, entender, por exemplo, por qual razão banqueiros estão se sucedendo em declarações de apoio à permanência da Presidente (pelo menos enquanto lhes for conveniente). 


quinta-feira, 27 de agosto de 2015

'Com o que é firme e com o que é vago'


Gosto pela leitura, professores e estudantes

Matéria da jornalista Amanda Polato (Revista Época), que se constitui numa reflexão  imprescindível aos professores, tanto da Escola Básica como da universidade, e se, neste último caso, eles estão vinculados a cursos de formação de professores, devem ter ainda mais responsabilidade com a questão da leitura. Vale a pena ler o texto/entrevista aí abaixo. 


País tem o desafio de fazer com que pessoas adultas descubram o gosto pela leitura, diz a socióloga Zoara Failla (Foto: Sxc.hu)

Por Amanda Polato (Revista Época) 

Os professores são os principais influenciadores nos hábitos de leitura dos brasileiros. Mas há indícios de que, no seu tempo livre, eles raramente abrem um livro, assim como a maioria dos brasileiros. O dado está no livro Retratos da Leitura do Brasil 3, que foi lançado durante a Bienal do Livro de São Paulo, no último mês. A obra analisa a pesquisa de mesmo nome feita pelo Instituto Pró-Livro, sob organização da socióloga Zoara Failla.
Ela diz que a amostra de professores ouvidos em 2011 – apenas 145, entre cerca de 5.000 entrevistados de todo o Brasil – é pequena, mas o resultado surpreendeu. Apenas três docentes disseram que gostam de ler no tempo livre. Ao serem questionados sobre títulos preferidos, eles citaram os de autoajuda e religiosos. 
O Brasil ainda não é um país de leitores. Cerca de 50% da população não lê, quantidade maior do que a verificada em 2007, quando 55% se diziam leitores. Mas é preciso considerar que houve algumas mudanças na forma de conduzir as entrevistas entre uma edição e outra do estudo. O que mais afasta os brasileiros da leitura não é o preço dos livros ou a dificuldade de acesso e, sim, a falta de interesse. Por isso, a atuação de bons “professores-leitores” é estratégica. “Se o professor for um bom ‘marketeiro’ dos livros, ele consegue despertar o interesse dos alunos”, diz Zoara Failla. Em entrevista à ÉPOCA, a pesquisadora fala sobre os hábitos de leitura de quem ensina e de quem aprende. 

ÉPOCA - Qual é o perfil dos professores ouvidos na pesquisa?
Zoara Failla - É muito parecido com o dos demais entrevistados. A gente imaginava que, sendo educador, fosse haver um indicador melhor de leitura, de indicação de literatura, de clássicos, diferente da população como um todo. É uma amostra pequena, a gente não pode generalizar, mas é um indício. No seu tempo livre, eles preferem a televisão e as redes sociais. 


ÉPOCA - O que afasta o professor da leitura?
Zoara - Temos problemas na formação desse professor. São as universidades. Quem está formando esse professor não está desenvolvendo esse interesse e apresentando a leitura não só como forma de atualização, mas como forma de lazer. Temos problemas também com tempo de trabalho. Muitos [professores] têm uma carga excessiva. Além disso, a maioria tem familiares de escolaridade não muito privilegiada. Há problemas de acesso. Boa parte das escolas tem bibliotecas, mas elas estão com acervos desatualizados, têm poucos livros. E, pelos salários baixos, os professores têm dificuldades para comprar obras. 


ÉPOCA - O professor aparece na pesquisa como um dos maiores influenciadores do hábito da leitura dos brasileiros. Se ele não gosta de ler, como pode cativar os alunos?
Zoara - Isso é um dos principais problemas. A escola é um espaço privilegiado para formar leitores. Tanto que a gente percebe, pela pesquisa, que eles [os jovens] leem mais quando estão na escola. Depois que saem, deixam de ler porque não foram despertados para isso. Se o professor não é um leitor, não consegue transmitir esse prazer pela leitura e conquistar os alunos. Não tem repertório para indicar. Quando você tem uma conexão com os livros, consegue despertar emoções no outro. O bom leitor interpreta, fala sobre os personagens, cita frases e faz quase um marketing dos livros. Se o professor for um bom “marketeiro” dos livros, ele consegue atrair o interesse dos alunos. 


ÉPOCA - É comum que a leitura nas escolas vire apenas uma atividade obrigatória. O professor tem que indicar obras clássicas que nem sempre são do gosto dos jovens. Como, então, despertá-los para a leitura por prazer?
Zoara - Sim, a leitura pode virar uma tarefa feita apenas para responder um questionário frio, que pergunta a escola literária, a época em que o autor viveu. Você massacra a obra de arte. Às vezes, o professor obriga uma leitura que não é adequada para uma faixa etária. Machado de Assis é maravilhoso, mas uma criança não vai ter condições de apreender aquele universo. Se você apresenta à garotada uma narrativa que tenha a ver com o momento dela, vai despertar interesse. É preciso dar opções de escolhas. Mesmo entre os clássicos, há várias possibilidades. Infelizmente, o ensino médio está preso também aos vestibulares. Mas você pode deixar o momento mais interessante, com contação de história daquele romance ou rodas de leitura. Você pode fazer integração com outras disciplinas, facilitando a leitura, na medida em que a contextualiza.


ÉPOCA - O que fazer para melhorar as taxas de leitura entre os professores?
Zoara - É preciso rever o currículo da formação dos professores nas universidades. Para os que saíram da escola, a alternativa é a formação continuada, cursos de especialização. É um grande desafio para os educadores pensar em como fazer com que pessoas adultas descubram os livros e o prazer de ler. 


ÉPOCA - Muitos brasileiros dizem não gostar de ler. Isso pode estar relacionado a dificuldades de leitura?
Zoara - Avaliações internacionais, como o Pisa, mostram que cerca 30% dos brasileiros não têm compreensão leitora. Se não têm a possibilidade de compreender um pequeno texto, não vão gostar de livros. Primeiro, temos que resolver essa questão, que é essencial: o letramento. Segundo a pesquisa [do Instituto Pró-Livro], 50% dos brasileiros não são leitores, ou seja, não leram nenhum livro nos últimos três meses. Desses, 30% não são leitores porque a escola não os capacitou para a leitura. Portanto, temos 20% de brasileiros que dominam a leitura, mas não gostam de ler. 


ÉPOCA - Por que mesmo crianças pequenas têm dito que não gostam de ler?
Zoara - A criança fica fascinada com contação de história, quer que repita a mesma história muitas vezes. Mas nós temos que desenvolver esse interesse. É preciso ler para criança, ler na frente dela, dar livros de presente. São formas de conquistá-la, de mostrar que a leitura tem valor. Será que alguém nasce gostando de futebol no Brasil? Gostam porque isso é valorizado.




Universo do desconhecido, história e secretismo: Apolônio e Jesus

Ao longo dos séculos (já contando dois mil anos), a história tem se mantido envolta em um grande mistério e secretismo. Propositadamente, em determinado sentido. Só mesmo os afeitos aos estudos da Antiguidade por essa história incursionam. Refiro-me ao 'caso Apolônio de Tiana', cuja vida guarda tantas semelhanças com a de Jesus Cristo, que há até mesmo quem levante a hipótese de que seriam a mesma pessoa (hipótese, reitero), tendo sido ele (Apolônio) - com  a oficialização do cristianismo pelo Império Romano em decadência - 'apagado da história'. Também há, ainda, a tese de que parte dos feitos atribuídos a Jesus são de Apolônio. Realmente, os registros a seu respeito são escassos. Em língua portuguesa, é uma boa notícia, portanto, a publicação do livro Apolônio de Tiana: o Taumaturgo Contemporâneo de Jesus (Editora Zéfiro), de Eduardo Amarante, Dulce Leal Abalada e George Robert Stowe Mead. Reproduzo a seguir uma pequena parte do livro. 



Muitos dos prodígios de Apolónio são atribuídos a Jesus. Tantos são os pontos semelhantes entre Apolónio e Jesus que se torna difícil distinguir o que pertence à esfera da vida e da doutrina de um e de outro. Em ambos, a vinda à Terra foi anunciada pelo Espírito Santo. Há Documentos que referenciam que Apolónio não tinha ascendentes, porém existem outros relatos que contam que ele era filho de uma virgem. Tiana foi a cidade (na Capadócia) onde iniciou o seu magistério. Era um bom orador, falava com todos,  convincente e com profundo magnetismo. Defendia os injustiçados, não recuava face aos perigos e incutia nos demais o espírito de bravura e coragem. ”Fora Deus em forma de Homem.”
De facto, muitos são os milagres atribuídos a Apolónio. À semelhança de Jesus, tinha o poder da ressurreição dos mortos; da transfiguração; da manipulação dos elementos e das leis da natureza; em suma, a sua vida está repleta de mitos como o da denominação Divino Mestre. De qualquer forma, mito ou não, Apolónio viajou desde o Egipto até às fronteiras da China, onde participou em várias cerimónias iniciáticas.  Atendendo ao que alguns exegetas afirmam, é verosímil que tenha feito o mesmo trajecto que Jesus em direcção ao Oriente. Em Nínive, na Babilónia, encontrou o seu companheiro Damis que ser-lhe-ia inseparável. Daí seguiram para a Índia, para o Tibete, até às colinas dos Himalaias. Aí separou-se de Damis e seguiu para um mosteiro, onde adquiriu o mais alto grau daquela época. Quando se juntou a Damis, seguiu viagem para a Grécia, onde passou a predicar os seus ensinamentos, à semelhança do que Jesus fizera na Palestina, curando doentes do corpo e da alma, paralíticos, cegos. Tal como Jesus, Apolónio pregava às multidões (muitas delas vinham de locais distantes) que, entusiasmadas, se juntavam em seu redor para ouvi-Lo.
Depois do seu desaparecimento (?), foi escrito um livro com a história da sua vida e uma grande parte dos seus ensinamentos reunidos em forma de evangelho com oito capítulos. Este livro continha ensinamentos que lhe atribuíam grande poder, maior do que os quatro evangelistas da época de Jesus. O seu conteúdo era temível por aqueles elementos que estavam infiltrados no Cristianismo.
A influência de Apolónio foi de tal ordem que o Cristianismo primitivo viu-se na contingência de incorporar grande parte dos seus ensinamentos na prática. A maior parte do ritual e simbolismo da Igreja tem ab origine Apolónio, pois Jesus, como se sabe, não usou nenhum deles publicamente. É credível que quem tenha feito esta colagem a Apolónio desconhecesse o real poder mágico dos ritos e símbolos de Apolónio, mas, ao mesmo tempo, era fundamental que a estrutura da Igreja nascente fosse coesa, uma vez que já começava a dominar o poder temporal. Porém, esses símbolos e rituais abusivamente utilizados, para não dizer usurpados, foram deturpados em relação aos ensinamentos originais de Apolónio, retirando-se alguns, substituindo-os por outros que lhes eram opostos, como no caso da utilização do vinho, por exemplo, no ritual da Eucaristia.
Fazendo um parênteses, é de referir que muitos dos ensinamentos, rituais e símbolos transmitidos por Apolónio de Tiana foram utilizados na magia, hermetismo, ocultismo e gnose.
Não há dúvida de que a vida e os ensinamentos de Apolónio de Tiana tiveram uma fortíssima influência nos primórdios da Igreja cristã e, inclusive, nos Evangelhos. Hoje, pouco se sabe deste taumaturgo que operava prodígios, curava pessoas e ressuscitava mortos. Na sua biografia não consta a existência de um homem semelhante a ele ou qualquer encontro que tenha tido com algum discípulo de Jesus, mas, inexplicavelmente, os seus seguidores eram cristãos. Não podemos, no entanto, deixar de sublinhar a existência de um seu discípulo de nome Lucius de Cirena, ou apenas Lucius, sendo conhecido comoLucas ou Luke devido às diferentes línguas em que o seu nome era escrito. Ora, o evangelho de Lucas é tido como o evangelho mais detalhado sobre Jesus, o que dá que pensar.


quarta-feira, 26 de agosto de 2015

Dream is destiny


Por No Clear Mind 


Como tragédia e como farsa

Aí abaixo temos a primeira página do jornal francês Le Monde (26/08/2015). Ela é a paradigmática do que se passa na Europa nos dias atuais. Por duas razões. Primeira, a fotografia mostrando imigrantes rastejando, como animais, sob arames, para ingressarem no continente; sendo que, em sua maioria, os europeus lá não os querem - disse o primeiro-ministro britânico, por exemplo, que os estrangeiros, forçando a entrada, 'são uma praga' (algo similar ao que, na França, Sarkozy falou, há algum tempo, em relação aos africanos e descendes: 'escória que quer tomar conta da França'). A segunda razão é relativa à manchete do jornal: informa que uma parte da Igreja Católica escolheu (decidiu, em forma de tradução oblíqua, fica melhor) dialogar com a Frente Nacional - isto é, com a organização xenófoba e fascista francesa, inicialmente liderada por Jean-Marie Le Pen, e agora por sua filha Marine Le Pen. Realmente, há pessoas/segmentos que não aprendem mesmo com as lições da História. O Papa Pio XII também começou assim, e terminou consagrado como o 'Papa de Hitler'. Talvez Marx tenha exagerado ao assinalar o reconhecimento apenas em torno de uma ciência, a Ciência da Historia. Mas, por certo, cabe-lhe razão no seu 'axioma' segundo o qual a História se repete, como tragédia e como farsa. 


Une partie de l'Eglise catholique choisit de dialoguer avec le FN. C'est la Une du Monde aujourd'hui #banalisation

Mancha muda de vidro


₢ Ygor Raduy | sem título | técnica mista
Tela de Ygor Raduy (sem título) 

Por Eduardo Henrique Valmobida

Os olhos apertados, sobrancelhas quase unas, a face riscando-se e tremendo suavemente. A respiração é lenta e compassada. Os lábios se escondem contraindo-se um contra o outro. Uma veia saltada e pulsando fortemente marca o pescoço. Pelos espalham-se pela parte inferior do rosto, e iniciam sua extensão até o pescoço, raros. Uma súbita coceira na nuca. Os ouvidos param de captar. Não há mundo fora.
 Da força empregada nas pálpebras resultaram duas lágrimas nos cantos. Os músculos distendem-se lentamente. Stop-motion, sem motivo, semicor. A veia que pulsa azulada. No compasso da respiração passa a dor, passa o tempo, passa-fora, passado. Os olhos estão se abrindo, se preparando pra ver, desnudando-se, desnublando-se. Verão?
 Veem. Mas veem bem pouco, e se viram no espelho, retos, curvilíneos, coloridos, opacos, corretos. Mente nova e irrelevante de pessoa insegura. É o que pensa o cérebro por trás dos olhos, mascarado pelo rosto mal delineado. Engano de vista? Não estava preparado? O cérebro ou o olhar? Colam-se as pálpebras num milésimo vagaroso, súbito-negror, alívio quase imperceptível. Tão leve como o ar que entra-e-sai no compasso.
Ainda não há som. Não, há sim. Não havia porque não havia prestado atenção, mas, ao pensar, instantaneamente houve, ou ainda, sempre houvera. Mas que tipo de sempre? Sempre-eterno, ou o sempre que ninguém quer o suficiente para que seja e, não o querendo, não o é? Irrelevante, o cérebro se repreende, tão raso que não se permite saber além.
Além do espelho, no espelho, pouco há. Placa de metal manchada, escondendo, ou melhor, não refletindo, inútil, não cumprindo seu papel. E por não obter sucesso é que se torna dispensável? Não, muito pelo contrário, já serviu para brotar um pensamento, semeou uma palavra, uma sensação que o cérebro finalmente se atém a desenvolver, no mínimo a considerar a questão. A mancha, o borrão, a área nula no espelho que não reflete uma parte do rosto que se encara, que, na verdade, encara o espelho.
Se os olhos veem o espelho e não a si próprios então o espelho deixou de cumprir o seu papel, não? Não reflete, mas é corpo, é objeto-concreto, adaptável inadaptado. Alguém percebeu o espelho para além do seu instinto. O espelho não mais o é. O que se torna então?
O espelho é a janela de vidro trabalhada em si para mostrar o que não é, e se não for absurdamente puro está sujeito às peripécias de uma visão atenta, levemente infantil, que percebe que o espelho não é vazio nem eco, mas passagem e boca engolidora. O cérebro parece funcionar bem, e identifica cores e padrões. Mesmo com os constantes negrores súbitos não houve interrupção de pensamento. Então são automáticos… Deixa ser.
 Desatentos do corpo do espelho ele não mais o é, mas a imagem dos lábios que, relaxados, rosados e rachados, recusam-se a abrir. Não há intenções para a boca. A boca não tem utilidade alguma além da expressão. Não se olha a boca sozinha, mas como parte do conjunto da face que, então, transmite a mensagem que for para o olhar atento de outrem ou de um reflexo. Mas os olhos se focaram na boca, nos lábios lacrados, e houve um rompimento na ideia inicial da coisa. A coisa era a ordem. Não há mais ordem?
Os lábios se romperam sob essa luz. Espanto ou concordância, mas nada a ser pronunciado. O único som foi o do lacre rasgando-se. Houve um momento em que tudo era pleno e completo e devidamente fechado. Os lábios se abriram na imagem refletida e quebraram o silêncio secreto brutalmente, eternamente. Nunca houve silêncio, e esse nunca é final.
E pela inexistência do silêncio e pelo rompimento dos lábios, abriu-se a boca. E a boca era um grito inaudível de sentimento incubado. E vazou um rio de ar que interrompeu o compasso eterno da respiração nasal. O cérebro interrompeu-se. A visão embaçou-se. O interno da boca, que no início era úmido e fértil, tornou-se árido. O som da respiração inundando: se-co, se-co, se-co… Os olhos apertam-se, querendo doer. O rosto fecha-se, querendo sumir. E não há mais espelho.
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Fonte: http://canalsubversa.com/?p=2706


A crise das ciências europeias e a fenomenologia transcendental: a questão da verdade

Segue aí um texto do punho do cientista político César Benjamin a propósito de Husserl, por ocasião do lançamento da edição brasileira do seu 'A Crise das Ciências Europeias e a Fenomenologia Transcendental'. Considerado 'pai da corrente fenomenológica', tendo enorme relevância intelectual, Husserl (de quem Heidegger era discípulo, a ele dedicando o seu 'Ser e Tempo') foi, contudo, uma pessoa discreta, de personalidade silenciosa e retirada. Também desse ponto de vista, por sua conduta, tem muito a ensinar, sobretudo numa época como a nossa, em que a autopropaganda, a indiscrição na busca de autopromoção, a necessidade de aparecer, a falsa humildade como marketing, a inquietação para transformar a vida num palanque permanente, etc., além do ridículo, expõem uma patologia. 

Husserl: 'o experimentado como externo não  necessariamente
pertence ao interno intencional' 

 Por César Benjamin                                                                                                                                 
Múltiplas formas de relativismo somavam-se, no fim do século XIX, para questionar as possibilidades de produzirmos conhecimento objetivo e verdadeiro. Não só as percepções diretas, baseadas nas sensações, eram vistas com desconfiança, mas também até mesmo as verdades matemáticas. Sua certeza aparente, dizia-se, decorria do fato de serem tautologias vazias, que nada informam sobre o  mundo. Considerava-se que todo raciocínio dedutivo continha um vício, pois as conclusões estavam sempre embutidas nas suas premissas. Impossibilitados de alcançar as fontes últimas de qualquer certeza, deveríamos considerar o conhecimento como um conjunto de instruções práticas, úteis à vida, mas incapazes de nos dizer como o mundo, de fato, é.
O sensacionismo, de Ernst Mach, afirmava que a busca do conhecimento era apenas um tipo de conduta da espécie humana, voltado para nos ajustar melhor ao ambiente; o conceito de verdade era uma relíquia metafísica que a ciência deveria substituir pelo conceito de “aceitabilidade”. Os adeptos do psicologismo pretendiam redefinir o estatuto da lógica, considerando-a apenas uma descrição abstrata baseada no costume e em certos hábitos de economia mental de fatos psicológicos empíricos; ela deveria ser parte da psicologia, não da filosofia. Positivistas e pragmatistas só viam fatos e relações entre fatos. Para  eles, a validade das ciências naturais dependia fundamentalmente de sua eficácia, ou seja, sua capacidade de fazer previsões sobre fenômenos que aparecem no tempo e no espaço. A filosofia era vista como tributária dos resultados das ciências positivas.
Todos esses movimentos convergiam para a ideia de que pode existir conhecimento, mas não uma teoria do conhecimento autorizada a reivindicar, legitimamente, universalidade e objetividade.

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Ao destruir as bases de todo conhecimento seguro, as diferentes formas de ceticismo ameaçavam destituir a cultura ocidental de sua posição singular. Edmund Husserl (1859-1938) compreendeu a gravidade disso: a busca de certezas e o estabelecimento de verdades eram parte essencial da milenar cultura europeia e fonte de sua universalidade. Matemático de formação, considerava especialmente perigoso interpretar a lógica a partir de categorias psicológicas, pois as leis da lógica são universais e necessárias, enquanto a psicologia é uma ciência empírica, que deduz suas leis por indução.
Para restaurar a validade absoluta da verdade, Husserl concebeu um programa radical. Precisava encontrar um fundamento transcendental para a certeza e desenvolver um método voltado para descobrir as estruturas necessárias do mundo. Buscou um recomeço da filosofia, ao modo cartesiano, para lançar as bases de um conhecimento cuja validade não dependesse da psicologia, dos fatos empíricos, da espécie humana e nem mesmo da existência do mundo, tal como o vemos. Isso exigia alterar o lugar que a filosofia ocupava.
Estávamos acostumados a outorgar às ciências a tarefa de conhecer a realidade, cabendo à filosofia refletir sobre esse conhecimento. Assim, a atividade filosófica havia se afastado das coisas, restringindo-se a examinar o conhecimento que tínhamos delas. Husserl viu que a nova filosofia primeira que tinha em mente – que, por ser primeira, não podia ter pressupostos – teria de “retornar às coisas”, eliminando os diversos estratos de sentido que as teorias haviam depositado sobre elas.
É certo que a quantidade sempre crescente de fatos, teorias, hipóteses e classificações nos permite prever melhor certos acontecimentos e aumenta nosso poder sobre a natureza, mas isso, ele dizia, não nos ajuda a compreender o mundo: as ciências medem as coisas sem conhecer o que medem. “Conhecer formas objetivas de  construção de corpos físicos ou químicos e fazer previsões de acordo com isso – nada disso explica coisa alguma, mas precisa de explicação.”

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A certeza só pode ser obtida se conseguirmos eliminar a distância entre a percepção e as coisas, bem como a necessidade, dela decorrente, de construir uma ponte entre ambas. Conhecimento certo, seguro de si, deve ser conhecimento imediato, sem que entre o ato de conhecer e o seu conteúdo seja necessária alguma mediação. Uma certeza que exige mediações não é mais certeza. E a necessidade de transmiti-la destrói sua imediaticidade, pois tudo o que entra no campo da comunicação humana é incerto, questionável e frágil. As ciências, tal como as conhecemos conhecimentos indiretos e comunicáveis por natureza –, são incapazes de nos prover tal certeza.
Husserl viu que para “alcançar as coisas” precisamos partir de uma intuição na qual elas se revelem diretamente à consciência, sem distorções. Tal intuição precisa cumprir duas condições: (a) ser independente de um “eu” particular; (b) não se ater a fatos contingentes, mas buscar verdades universais, revelando suas conexões necessárias.
Descartes duvidou de tudo para livrar-se de toda dúvida. Conservou apenas o Ego substancial, o único lugar que resistia à dúvida hiperbólica. Husserl seguiu o mesmo caminho, colocando em suspenso a existência do mundo, mas deu um passo adiante. Não se deteve no Ego cartesiano, a substância pensante. Considerou que o caminho da certeza exigia a eliminação também desse Ego e a construção ideal de um Ego transcendental,  um  recipiente  vazio  onde  os  fenômenos simplesmente aparecem. O caminho para isso passava pela epoché, a suspensão do juízo, especialmente sobre o que nos dizem as doutrinas filosóficas e as ciências. “Eu” e “mundo” ficam em suspenso, colocados entre parênteses. Não recusamos a existência deles, sequer duvidamos dela, mas a deixamos provisoriamente de lado para que só reste o puro fenômeno, aquele que não pertence a uma pessoa empírica nem representa um objeto real.
Nem as doutrinas filosóficas, nem os resultados das ciências, nem as crenças da “atitude natural” são pontos de partida indubitáveis, aqueles que Husserl buscava para reconstruir a filosofia como ciência rigorosa. Só a consciência resiste à epoché. Ela é, pois, o resíduo fenomenológico imediatamente evidente. Mas consciência é sempre consciência de algo. A esse traço, que diferencia o psíquico e o físico, Husserl denomina intencionalidade. Os modos típicos como as coisas e os fatos aparecem na consciência são os universais que a consciência intui quando a ela se apresentam os fenômenos. Ao prescindir dos aspectos empíricos e das preocupações que nos ligam aos fenômenos,  purificando o campo da consciência, podemos buscar a intuição das essências, operação necessária no caminho para a certeza.

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Husserl encontrou o ponto de partida radical, que buscava, no domínio do absolutamente dado, do fenômeno puro, daquilo que se oferece diante de nós em qualquer das formas da nossa experiência. Era preciso deixar  que o “olho do espírito” se dirigisse livremente às coisas para reconquistá-las com confiança profunda, captando em visão imediata o seu conteúdo ideal. Em vez de valorizar as duas maneiras bem conhecidas de aproximar- se do mundo a intuição sensível, mas vaga e imprecisa, e a construção intelectual rigorosa, mas hipotética –, ele nos mostrou um outro tipo de intuição, a intuição categórica. Ela não é um processo de abstração que tenha como ponto de partida um dado fenômeno. É uma experiência direta dos universais que se revelam a nós com irresistível evidência.
Diferentemente do que nos diz o senso comum, o individual chega à consciência pelas mãos do universal. Nossa consciência pode captar um fato (uma cor, um som) se captou sua essência. Não partimos dos fatos e fazemos uma abstração para conhecer tais essências. Ao contrário: podemos compreender fatos se captamos uma essência que os torna compreensíveis e comparáveis. Reconhecemos uma essência comum uma “essência de som” quando ouvimos qualquer som. Sem esse reconhecimento, não poderíamos identificá-lo.
A fenomenologia pretende ser a ciência das essências, não dos fatos. Seu objeto são os universais que a consciência intui a partir dos fenômenos. Husserl chamou “redução fenomenológica” a operação mental que converte a intuição individual (que nos dá esta rosa, esta cadeira, objetos que existem no tempo e no espaço, em constante mutação) em intuição eidética (que nos dá as essências, imutáveis e eternas, de rosa e cadeira). O objetivo é construir um conhecimento que independa de sujeitos definidos. O que permanece depois da redução são os conteúdos dos fenômenos, que aparecem no Ego transcendental, aquele recipiente desprovido das propriedades dos sujeitos psicológicos, e que é o sujeito do conhecimento puro.

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A fenomenologia foi a corrente filosófica mais renovadora do século XX. Representou o início de uma nova época na filosofia, algo parecido com o que foi o sistema cartesiano a partir do século XVII e o kantiano, a partir do XVIII. A Descartes segue-se uma época cartesiana, a Kant, uma época kantiana, em que os debates passam a se dar em torno dos temas propostos por esses pioneiros. Husserl ocupa posição semelhante. Sua enorme influência contrasta com uma personalidade silenciosa e retirada. Viveu obcecado pelos problemas últimos dos quais depende o desenvolvimento do espírito, fixando-se neles com tenacidade exemplar.
Morreu solitário na Alemanha em 1938. De ascendência judaica, os nazistas o haviam afastado do mundo acadêmico e proibido de deixar o país. Depois de sua morte, o franciscano belga Herman Leo van Breda (1911-1974) conseguiu salvar seus manuscritos inéditos – bem mais numerosos que a obra publicada –, levando-os para a Universidade de Louvain, onde estão até hoje.
A obra de Husserl vem sendo publicada gradativamente. Em 1954, como volume VI da Husserliana, veio à luz a versão definitiva de A crise das ciências europeias e a fenomenologia transcendental, que finalmente chega ao Brasil em tradução competente de Diogo Falcão Ferrer (Forense Universitária, 2013). Na verdade, é de uma ampla crise espiritual e existencial, não das ciências e nem da Europa, mas de toda humanidade, que o livro trata, pois a crise nos fundamentos das ciências é também uma crise da filosofia e da subjetividade. “Não podemos prosseguir seriamente com o nosso filosofar como até aqui”, diz Husserl. “A exclusividade com que, na segunda metade do século XIX, a visão de mundo do homem moderno se deixou determinar pelas ciências positivas e com que se deixou deslumbrar pela ‘prosperidade’ que decorria daí significou o afastamento dos problemas decisivos para uma autêntica humanidade. Meras ciências de fatos criam meros homens de fato.”
Diante de sua crise e de seus descaminhos, a razão não pode procurar um fundamento fora de si mesma. Se quiser salvar-se precisa buscar sua justificação em seu próprio seio. É a tarefa da filosofia, esse esforço vigoroso de fundamentação radical que teve em Husserl,  no século XX, o seu principal impulsionador. O livro recém-lançado no Brasil é uma grande síntese de seu pensamento.
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Fonte: http://www.contrapontoeditora.com.br/arquivos/artigos/201312160549530.husserleaverdade.pdf