Registro de cena do filme L' Amour, de Michael Haneke |
Junto à colina, que lindos campos de ouro!
Outros lavraram o que colhe agora o recém-chegado.
Oh! Não te alegres somente com a colheita,
Que outro recém-chegado, por detrás espera.
(Poema chinês. Citação de Lin Yutang)
Outros lavraram o que colhe agora o recém-chegado.
Oh! Não te alegres somente com a colheita,
Que outro recém-chegado, por detrás espera.
(Poema chinês. Citação de Lin Yutang)
Por Ronilda Iyakemi Ribeiro (USP)
Cada qual enxerga o meio dia da porta de sua
casa, diz o adágio
africano. Fato sobejamente conhecido é esse: a experiência social ou cultural
interfere na concepção de tempo. Goldschmidt (1) observa que as definições de
mundo são distintas, não apenas pelo fato de serem diferentes os costumes e as
crenças dos povos: "É, antes, que os mundos de povos diferentes têm formas
diferentes. Os próprios pressupostos metafísicos variam: o espaço não se
conforma à geometria euclidiana, o tempo não constitui um fluxo contínuo de
sentido único, as causas não se conformam à lógica aristotélica... como no
nosso mundo".
Quanto ao tempo,
se pretendemos conceituá-lo, temos que considerar seus aspectos de tempo
histórico, cronológico, físico, psicológico, entre outros. O tempo
histórico, passível de divisão em intervalos curtos ou longos, pode ser
concebido como um processo de ritmo variável e não uniforme. As direções desse
tempo variam segundo diferentes padrões culturais, que exprimem atitudes
valorativas: o processo temporal representado como um percurso linear
progressivo, característico da representação cristã de tempo, tem contraponto
no percurso cíclico, que reúne fases ou períodos recorrentes, característico,
por exemplo, das representações negro-africana e chinesa. O tempo
cronológico, que regula nossa existência cotidiana, pode ser considerado
tempo socializado ou público. Opondo o tempo físico,
natural ou cósmico ao tempo psicológico ou tempo vivido, temos que o primeiro,
pode ser entendido como a medida do movimento, como a expressão de relação
entre anterior e posterior e, ainda, como o próprio processo das mutações, que
independe da consciência do sujeito. O tempo psicológico ou
tempo vivido (duração interior), por sua vez, não coincide com as medidas
temporais objetivas. Variando de indivíduo para indivíduo, sendo subjetivo e
qualitativo, sujeita-se apenas ao registro de momentos imprecisos, que se
aproximam ou tendem a fundir-se, numa organização determinada por sentimentos e
lembranças, que definem "intervalos heterogêneos incomparáveis" (2).
Na clepsidra
escoa a água e na ampulheta, a areia, marcando intervalos de tempo, durações
menores, em cada dia solar. Uma vez constatado que os fatos ocorrem em dada
ordem, configurando unidades orgânicas, com princípio, meio e fim, temos uma
relação entre o começo e o fim de movimentos que se sucedem no vasto continuum temporal,
como que preenchendo o tempo de conteúdos. Essa representação,
segundo a qual os eventos preenchem um continente temporal do
mesmo modo que objetos preenchem continentes espaciais, não é pouco frequente.
Berthelot (3) assinala que a ordenação do tempo costuma proceder da ordenação
do espaço, em especial a da semana. A ordem no tempo se originaria da
consideração de sete direções espaciais – duas para a largura, duas para o
comprimento e duas para a altura, mais o centro. Correspondendo o sábado ao
centro e, expressando o centro a imobilidade, define-se esse dia como o de
descanso e os demais como dias dinâmicos. E, pela relação que une entre si
todos os centros e estes ao Centro Primordial, à origem divina, tem esse dia um
caráter sagrado. A idéia de que o tempo – a semana – provém da organização do
espaço pode ser substituída pela noção de que ambos resultam de um mesmo
princípio. Nesse caso, o espaço pode ser considerado conjuntamente com o tempo
e neles se produzem as fases que constituem o ciclo da vida: não-manifestação/manifestação
/ não-manifestação.
"...
primeiramente apresenta-se em geral aquilo que preenche uma fase do tempo e não
a própria fase temporal correspondente em si mesma. Só a apresentação daquilo
que preenche o tempo, conduz então à apresentação do tempo assim preenchido
(4)."
Nunes (5)
observa que os diversos conceitos de tempo compartilham as noções de ordem,
duração e direção, interligadas pelo conceito mais geral de mudança – mutação –
ao qual não se pode reduzir a natureza do tempo, questão filosófica mais
radical. E sobre esse conceito nos detemos a seguir.
MUTAÇÕES
SEGUNDO A CONCEPÇÃO CHINESA
Não há dois lugares, nem talvez duas horas, em
parte alguma,
exatamente iguais. Quão diferente é o cheiro do meio-dia do da meia-noite, o cheiro do outono do cheiro do inverno, o de um momento de
brisa de outro de calma! O mundo é na verdade um festim da vida!
(Walt Whitman)
As mudanças ou
mutações, entendidas como passagem ou transição entre estados que perduram,
constituíram o fator central da visão de mundo consolidada na China no período
imediatamente anterior à Dinastia Chou (1150-29 a.C.). A observação do mundo,
em torno de si e em seu próprio interior, levou o homem chinês a constatar um
fluir contínuo do qual nada escapa e a constatar que, embora incontáveis e
distintos uns dos outros, todos os fenômenos, em suas tendências de mudança,
são regidos pelos mesmos e constantes princípios. Uma vez apreendidos tais
princípios, descobre-se o simples por detrás do complexo, e fácil se torna o
percurso de tudo o que acompanha o ciclo em vigência pois, segundo o pensamento
taoísta, fluindo em acordo com as circunstâncias encontra-se um caminho fácil,
duradouro e espontâneo, como o da água que, "descendo a montanha, diante
de nada recua, diante de nada insiste: mergulha, desvia, contorna, adapta-se
sem resistência e chega, pois, infalivelmente, ao que lhe corresponde (6)."
Dois estados
opostos e fundamentais de ser são expressos na China pelo Wu Chi, representado
por um círculo dividido em luz e escuridão – yang e yin,
significando yin, o nebuloso, o sombrio e yang (literalmente
estandartes tremulando ao sol), algo que brilha, ou o luminoso, que
também são interpretáveis como o firme e o maleável. Entendida a mutação como a
contínua alternância entre essas forças opostas e, simultaneamente, como um
ciclo fechado de acontecimentos complexos conectados entre si e sujeitos ao Tao
(Lei Universal), têm-se os estados da existência como decorrentes da mutação e
da interação dessas forças.
Considerando o
fato de ser a existência finita, cabe perguntar: ao longo do processo de
contínuas mutações ocorridas ao longo do tempo de vida individual, que lugar é
reservado ao gozo? E aqui, novamente, nos defrontamos com múltiplas respostas
possíveis, dependendo dos pressupostos metafísicos adotados. Dentre eles
recortaremos o enfoque chinês tal qual é apresentado por Lin Yutang (7),
filósofo e romancista da década de 40.
FINITUDE E
GOZO
A consciência a
respeito da mutação contínua e da finitude da existência pode favorecer uma
atitude de busca da felicidade. Lin Yutang aborda o tema da felicidade
enfatizando que o sentimento da evanescência do tempo – somos "colocados
nessa linda terra como hóspedes transitórios" – favorece uma postura
existencial caracterizada pela busca do gozo. Recorrendo a outras metáforas, o
autor refere-se a nós humanos como viajantes que navegam sobre o eterno rio do
tempo, embarcando em certo ponto e desembarcando em outro, a fim de deixar
lugar aos que, rio abaixo, esperam sua vez de subir a bordo. Refere-se à vida
como um palco em que os atores, que raramente se dão conta de estarem
representando papéis, a eles se apegam em demasia e, esquecidos do ato de
estarem apenas representando, confundem-se com a personagem.
Considera que,
sendo limitado o prazo de vida, seu conteúdo deva ser ordenado tendo em vista a
obtenção da maior felicidade possível o que, a seu ver, envolve antes uma
questão de ordem prática, semelhante ao planejamento das atividades de um
sábado, por exemplo, do que uma proposição metafísica atinente ao propósito
místico de nossa vida no plano geral do universo. Observa, por exemplo, que
mesmo se a vida fosse um sombrio calabouço, teríamos que fazer o possível para
torná-lo mais cômodo para nele habitar durante um certo tempo. No entanto, como
em lugar de um calabouço "temos essa terra tão linda para habitar durante
boa parte de um século", por quê não usufruir, do modo mais prazeroso
possível, essa estadia?
Considerando que
o gozo da vida abrange o gozo de nós mesmos, da vida social e cultural, das mil
e uma coisas da Natureza, "de tudo o que, sob uma forma ou outra, vem a
ser a comunhão dos espíritos" e entendendo que a felicidade humana é
primordialmente sensória, o autor sugere que se resgate a capacidade para o
gozo das alegrias da vida no fluir contínuo e ao longo das sucessivas mutações.
E que isso se realize a partir do despertar ou reavivar da sensibilidade.
Não se pense,
entretanto, que haja aqui uma proposta de exaltação narcísica e individualista
de busca contínua de um prazer exclusivo para si. A importância atribuída à
corrente geracional e ao sentido do fluir do tempo através das múltiplas
gerações, característica do pensamento chinês, supõe a obtenção de gozo
associada à felicidade de outros, tanto da geração presente como das vindouras:
Referências
1 Goldschmidt, W.
Prefácio. In: Castañeda,
C. A erva do diabo,
São Paulo: Círculo do Livro, 1976.
2 Pomian, K. L' ordre du Temps. Paris: Gallimard, 1984, p. 220, citado por Nunes,
B. – O tempo na narrativa. São Paulo: Editora Ática, 1995. Série
Fundamentos, p. 19.
3 Citado por Cirlot, Juan-E.. Dicionário de símbolos. São Paulo: Editora Moraes, 1984, Trad. Frias, R.
E.
4 Ingarden, R. A
obra de arte literária. Fundação Calouste Gulbenkian, 1973,
p. 259 citado por Nunes, B. obra citada, p. 25.
5 Nunes, B. O
tempo na narrativa. São Paulo: Editora Ática, 1995. Série
Fundamentos.
6 I
Ching - O Livro das mutações. São Paulo:
Pensamento, 1970.
7 Yutang, L. A
importância de viver: a arte de ser feliz revelada pela profunda sabedoria
chinesa. Rio de Janeiro: Editora Globo, 1963,
caps. 1, 5 e 6.
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Fonte: http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0009-67252002000200022
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