segunda-feira, 27 de julho de 2015

A filha do solidão

Literatura em língua portuguesa banhada no continente africano, através da pena do moçambicano Mia Couto. 



Por Mia Couto 

Na vida tudo chega de súbito. O resto, o que desperta tranquilo, é aquilo que, sem darmos conta, já tinha acontecido. Uns deixam a acontecência emergir, sem medo. Esses são os vivos. Os outros se vão adiando. Sorte a destes últimos se vão a tempo de ressuscitar antes de morrerem.
Filha dos cantineiros portugueses, Meninita sempre foi moça comedida. Na penumbra da loja, ela atendia os negros como se fossem sombras de outros, reais viventes. A miúda se ia fazendo ao corpo – o fruto se adoçava em polpa açucrosa. A sede se inventa é para a miragem de águas. Pois nas redondezas não viviam outros brancos, únicos a quem ela entregaria seus açúcares.
A família Pacheco se pioneirara na aridez de Shirapera, onde mesmo os negros originários escasseavam. Por que escolher tão longínquas paragens?
- Aqui, por trás destas altas montanhas, nem Deus me pode espiar....
Fala do português para enganar as perguntas. Ninguém entende por que o Pacheco se internara tanto nas dunas de Sofala, condenando a família a não conviver mais com gente de igual etnia. Dona Esmeralda, a esposa, se angustiava vendo o crescer da filha. A que homem se destinaria ela, naquele afastamento da sua semelhante humanidade? Deram-lhe o nome de Meninita para a ancorar no tempo. Mas a filha se inevitalizava. Na sombra imutável do balcão, ela desfolhava umas mil vezes repetidas repetida fotonovela. Sonhava aos quadrinhos...
- Não espere consolo, filha: aqui só há pretalhada.
A menina se consolava fechada no quarto, a revista da fotonovela entre os lençóis. Suas mãos se desprivatizavam em carícias de outro. Mas esse apagar de lume lhe trazia um novo e mais aguçado tormento. Quando, depois de suspirada e transpirada, ela se abandonava no leito, uma funda tristeza lhe pousava. Era como se nascesse em si uma lama já morta. Tristeza igual só essas mães que dão à luz a um menino inanimado. É justo poder-se assim visitar os paraísos e nos expulsarem? Lhe custaram tanto essas despedidas de si que passou a evitar seu próprio corpo. Vale a pena é trocar carinhos, receber salivas do ventre de um outro. Mas outros ali não havia para a donzela Meninita.
- Acha que essa nossa filha vai se meter com um preto?
O pai se ria, cuspindo gargalhada. O riso dele tinha razão: a casa dos Pachecos se enconchara de preconceito. Ali se dizia no singular: o preto. Os outros, de outra cor, se reduziam a uma palavra, soprada entre a maxila do medo e a mandíbula do desprezo. Meninita cumpria os ensinamentos da etnia. Recebia os clientes, sem erguer a cabeça:
- Que quer?
Massoco, único empregado, achava graça aos modos desdenhosos da pequena patroa. Ele era jovem como ela, carregava sacos e caixotes, conduzia a carroça dali para depois do horizonte.
As melancolias de Meninita cresciam. A revista já esfarelava, de tanto desfolheada. No dia em que fez dezoito, Meninita lançou fogo sobre si mesma. Se imolou. Mas não desses fogos comuns de combustão visível. Ardeu em invisíveis chamas, só ela sofria tais ardências. Ficou ardendo em demorada consecução. A febre lhe autorizava o delírio.
Veio a mãe, lhe abanou uma frescura. Veio o pai, lhe aplicou conselho seguido de ameaças. Tudo irresultou. Esse fogo se apagava era em corpo masculino, em água de duplos suores e carícias. A mãe lhe corrigia a ilusão da expectativa:
- Minha filha, não deixe o corpo lhe nascer antes do coração.
Adoentada, a moça deixou de atender ao balcão. Substitui-a o moço Massoco, cresceram simpatias na loja. Meninita se internou em seu quarto, emigrada da vida, exilada dos outros. Massoco, ao fim do dia, se apresentava, em solene tristeza.
- Peço licença ir lá ver patroinha...
Um dia chegou a Shiperapera uma veterinária do Ministério. Vinha inspecionar o gado dos indígenas. Quando o casal soube da notícia decidiu ocultar a novidade da filha. Ela já andava tão alterada! O Pacheco foi à estrada, esperar a compatriota. Levou cerimônias e pasteis de peixe-seco. Acompanhou a doutora a uma casa de hóspedes que a administração em tempos construíra. Já deitados, os Pachecos trocaram as esperadas más-línguas:
- A gaja parece um homem!
E riram-se. Dona Esmeralda se satisfazia pela visitante ser tão pouco mulher. Não fosse o marido se devanear. Numa dessas noites, Meninita sofreu de um acesso grave. O casal, em desespero, decidiu chamar a médica veterinária. O pai acorreu à casa dos hóspedes e urgiu comparência à veterinária. No caminho, lhe explicou a condição da filha.
Chegados à cantina, dirigem-se em silêncio profissional para os aposentos da perturbada jovem. Em delírio, a menina confunde a veterinária com um homem. Atira-se-lhe aos braços, beijando-lhe os lábios com sofreguidão. Os pais se embaraçaram e acorreram a separar. A veterinária recompõem-se, ajeitando imaginários cabelos sobre a face. Meninita com um sorriso sonhador parece agora ter adormecido.
Pacheco volta a acompanhar a visitante. Vão calados, todo o tempo da viagem. Na despedida, a veterinária, rompendo o silêncio, expõe o seu plano:
- Eu vou fazer de homem. Me disfarço.
Pacheco não sabia o que dizer. A veterinária se explica: o cantineiro lhe emprestaria roupas velhas e ela se apresentaria, disfarçada de namorado caído dos céus. O português acenou maquinalmente e voltou a casa apressado em colocar a esposa a par do estranho plano. Dona Esmeralda riscou no lábio superior a curva da dúvida. Mas que se fizesse, a bem da pequena. E se benzeu.
Nas noites seguintes, a veterinária aparecia com seu disfarce. Subia ao quarto de Meninita e lá se demorava. Dona Esmeralda, na sala, chorava em surdina. Pacheco bebia, devagaroso. Passadas horas a veterinária descia, ajeitando no rosto uma inexistente madeixa.
Fosse pela qual razão, a verdade é que Meninita arrebitava. A veterinária, dias depois, se retirou, nuvem naquela estrada onde mesmo a poeira rareava. Meninita, na manhã, seguinte, desceu à loja, a velha revista na mão. Sentou-se no balcão e inquiriu a sombra do outro lado do balcão:
- Que quer?
Massoca riu-se, abanando a cabeça. E a vida se retomou, em novelo que procura o fio. Até que um dia, Dona Esmeralda despertou o marido, sacudindo-o:
- Nossa filha está grávida, Manuel!
Choveram insultos, improperiou-se. Os vidros das janelas se estilhaçaram, tais as raivas do Pacheco: eu mato o cabrão da doutora! A mulher implorou: agora, sim, era assunto de ir à vila. O marido que quebrasse o seu juramento e superasse as montanhas de volta ao mundo. De noite, o casal se fez à viagem, recomendando à filha mil cuidados e outras tantas trancas. E sumiram-se no escuro.
Na janela, Meninita ainda espreitou a poeira da estrada iluminada pela lua. Subiu ao quarto, abriu a revista das velhas fotos. Vencida pelo sono se ajeitou no colchão em rodinha de lençóis. Antes de adormecer, apertou a mão negra que despontava no branco das roupas. 
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Fonte: Mia Couto, in A Menina sem Palavras - Histórias de Mia Couto (São Paulo: Boa Companhia, 2013).  


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