Literatura em língua portuguesa banhada no continente africano, através da pena do moçambicano Mia Couto.
Por Mia Couto
Na vida tudo chega de súbito. O
resto, o que desperta tranquilo, é aquilo que, sem darmos conta, já tinha acontecido.
Uns deixam a acontecência emergir, sem medo. Esses são os vivos. Os outros se
vão adiando. Sorte a destes últimos se vão a tempo de ressuscitar antes de
morrerem.
Filha dos cantineiros
portugueses, Meninita sempre foi moça comedida. Na penumbra da loja, ela
atendia os negros como se fossem sombras de outros, reais viventes. A miúda se
ia fazendo ao corpo – o fruto se adoçava em polpa açucrosa. A sede se inventa é
para a miragem de águas. Pois nas redondezas não viviam outros brancos, únicos
a quem ela entregaria seus açúcares.
A família Pacheco se pioneirara
na aridez de Shirapera, onde mesmo os negros originários escasseavam. Por que
escolher tão longínquas paragens?
- Aqui, por trás destas altas montanhas, nem Deus me pode espiar....
Fala do português para enganar
as perguntas. Ninguém entende por que o Pacheco se internara tanto nas dunas de
Sofala, condenando a família a não conviver mais com gente de igual etnia. Dona
Esmeralda, a esposa, se angustiava vendo o crescer da filha. A que homem se
destinaria ela, naquele afastamento da sua semelhante humanidade? Deram-lhe o
nome de Meninita para a ancorar no tempo. Mas a filha se inevitalizava. Na
sombra imutável do balcão, ela desfolhava umas mil vezes repetidas repetida
fotonovela. Sonhava aos quadrinhos...
- Não espere consolo, filha: aqui só há pretalhada.
A menina se consolava fechada no
quarto, a revista da fotonovela entre os lençóis. Suas mãos se desprivatizavam
em carícias de outro. Mas esse apagar de lume lhe trazia um novo e mais aguçado
tormento. Quando, depois de suspirada e transpirada, ela se abandonava no
leito, uma funda tristeza lhe pousava. Era como se nascesse em si uma lama já
morta. Tristeza igual só essas mães que dão à luz a um menino inanimado. É justo
poder-se assim visitar os paraísos e nos expulsarem? Lhe custaram tanto essas
despedidas de si que passou a evitar seu próprio corpo. Vale a pena é trocar
carinhos, receber salivas do ventre de um outro. Mas outros ali não havia para
a donzela Meninita.
- Acha que essa nossa filha vai se meter com um preto?
O pai se ria, cuspindo
gargalhada. O riso dele tinha razão: a casa dos Pachecos se enconchara de
preconceito. Ali se dizia no singular: o preto. Os outros, de outra cor, se
reduziam a uma palavra, soprada entre a maxila do medo e a mandíbula do
desprezo. Meninita cumpria os ensinamentos da etnia. Recebia os clientes, sem
erguer a cabeça:
- Que quer?
Massoco, único empregado, achava
graça aos modos desdenhosos da pequena patroa. Ele era jovem como ela,
carregava sacos e caixotes, conduzia a carroça dali para depois do horizonte.
As melancolias de Meninita
cresciam. A revista já esfarelava, de tanto desfolheada. No dia em que fez dezoito,
Meninita lançou fogo sobre si mesma. Se imolou. Mas não desses fogos comuns de
combustão visível. Ardeu em invisíveis chamas, só ela sofria tais ardências.
Ficou ardendo em demorada consecução. A febre lhe autorizava o delírio.
Veio a mãe, lhe abanou uma
frescura. Veio o pai, lhe aplicou conselho seguido de ameaças. Tudo irresultou.
Esse fogo se apagava era em corpo masculino, em água de duplos suores e
carícias. A mãe lhe corrigia a ilusão da expectativa:
- Minha filha, não deixe o corpo lhe nascer antes do coração.
Adoentada, a moça deixou de
atender ao balcão. Substitui-a o moço Massoco, cresceram simpatias na loja.
Meninita se internou em seu quarto, emigrada da vida, exilada dos outros.
Massoco, ao fim do dia, se apresentava, em solene tristeza.
- Peço licença ir lá ver patroinha...
Um dia chegou a Shiperapera uma
veterinária do Ministério. Vinha inspecionar o gado dos indígenas. Quando o
casal soube da notícia decidiu ocultar a novidade da filha. Ela já andava tão
alterada! O Pacheco foi à estrada, esperar a compatriota. Levou cerimônias e
pasteis de peixe-seco. Acompanhou a doutora a uma casa de hóspedes que a
administração em tempos construíra. Já deitados, os Pachecos trocaram as
esperadas más-línguas:
- A gaja parece um homem!
E riram-se. Dona Esmeralda se
satisfazia pela visitante ser tão pouco mulher. Não fosse o marido se devanear.
Numa dessas noites, Meninita sofreu de um acesso grave. O casal, em desespero,
decidiu chamar a médica veterinária. O pai acorreu à casa dos hóspedes e urgiu
comparência à veterinária. No caminho, lhe explicou a condição da filha.
Chegados à cantina, dirigem-se
em silêncio profissional para os aposentos da perturbada jovem. Em delírio, a
menina confunde a veterinária com um homem. Atira-se-lhe aos braços,
beijando-lhe os lábios com sofreguidão. Os pais se embaraçaram e acorreram a
separar. A veterinária recompõem-se, ajeitando imaginários cabelos sobre a
face. Meninita com um sorriso sonhador parece agora ter adormecido.
Pacheco volta a acompanhar a
visitante. Vão calados, todo o tempo da viagem. Na despedida, a veterinária,
rompendo o silêncio, expõe o seu plano:
- Eu vou fazer de homem. Me disfarço.
Pacheco não sabia o que dizer. A
veterinária se explica: o cantineiro lhe emprestaria roupas velhas e ela se
apresentaria, disfarçada de namorado caído dos céus. O português acenou
maquinalmente e voltou a casa apressado em colocar a esposa a par do estranho
plano. Dona Esmeralda riscou no lábio superior a curva da dúvida. Mas que se
fizesse, a bem da pequena. E se benzeu.
Nas noites seguintes, a
veterinária aparecia com seu disfarce. Subia ao quarto de Meninita e lá se
demorava. Dona Esmeralda, na sala, chorava em surdina. Pacheco bebia,
devagaroso. Passadas horas a veterinária descia, ajeitando no rosto uma
inexistente madeixa.
Fosse pela qual razão, a verdade
é que Meninita arrebitava. A veterinária, dias depois, se retirou, nuvem
naquela estrada onde mesmo a poeira rareava. Meninita, na manhã, seguinte,
desceu à loja, a velha revista na mão. Sentou-se no balcão e inquiriu a sombra
do outro lado do balcão:
- Que quer?
Massoca riu-se, abanando a
cabeça. E a vida se retomou, em novelo que procura o fio. Até que um dia, Dona
Esmeralda despertou o marido, sacudindo-o:
- Nossa filha está grávida, Manuel!
Choveram insultos,
improperiou-se. Os vidros das janelas se estilhaçaram, tais as raivas do
Pacheco: eu mato o cabrão da doutora!
A mulher implorou: agora, sim, era assunto de ir à vila. O marido que quebrasse
o seu juramento e superasse as montanhas de volta ao mundo. De noite, o casal
se fez à viagem, recomendando à filha mil cuidados e outras tantas trancas. E
sumiram-se no escuro.
Na janela, Meninita ainda
espreitou a poeira da estrada iluminada pela lua. Subiu ao quarto, abriu a
revista das velhas fotos. Vencida pelo sono se ajeitou no colchão em rodinha de
lençóis. Antes de adormecer, apertou a mão negra que despontava no branco das
roupas.
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Fonte: Mia Couto, in A Menina sem Palavras - Histórias de Mia Couto (São Paulo: Boa Companhia, 2013).
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