Desde que o historiador Michel de Certau colocou em realce as conexões entre a ciência histórica e a psicanálise, na obra Histoire et psychanalise, as aproximações entre o 'campo da ciência social' e o 'campo psicanalítico' têm se revelado muito promissoras. Vladimir Safatle, no artigo aí abaixo, incursiona nesse terreno ao tratar da relação entre Freud e a teoria social, explorando aspectos desta última, como a questão da socialização. Ou o poder do (auto)ocultado de si afirmando a identidade negada.
Por Vladimir Safatle
Freud é um autor fundamental
no esforço de constituir um campo de reflexão sobre a modernidade. O recurso a
ele foi uma constante em várias correntes de pensamento do século 20 e a razão
para tal constância era evidente: longe de se colocar apenas como uma clínica
do sofrimento psíquico, a psicanálise freudiana procurou, desde seu início, ser
reconhecida também como teoria das produções culturais para desvendar a maneira
com que sujeitos mobilizam sistemas de crenças, afetos, desejos e interesses
para legitimar modos de integração a vínculos sociopolíticos.
Partir do patológico sem
reduzir o social
Não se trata aqui de reduzir
a dimensão do social ao psicológico. Na verdade, esse recurso à psicanálise
apenas realizava a intuição do sociólogo alemão Max Weber a respeito da
necessidade de explicar como a racionalidade dos vínculos sociais depende
fundamentalmente da disposição dos sujeitos em adotar certos tipos de conduta.
Em A
Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, Weber lembrava como
a racionalidade econômica do capitalismo dependia fundamentalmente da
disposição dos sujeitos em adotar os tipos de conduta ligados a um modo de ser
que remetia à ética protestante do trabalho e da convicção, estranha ao cálculo
utilitarista, e cuja gênese deve ser procurada no calvinismo. Sem essa ética
internalizada, os sujeitos nunca desenvolveriam disposições para trabalhar,
poupar e acumular do modo que o capitalismo exigia. No caso de Freud, essa
análise das disposições individuais nascia de uma maneira peculiar. Em vez de
partir do que deveria ser normal a todos os sujeitos, Freud partia da análise
daqueles que, de certa forma, portavam as marcas do fracasso da razão, daqueles
que guiavam suas condutas de maneira “patológica” e “irracional”. No entanto, o
que Freud procurava era transformar a compreensão do patológico no modo de
acesso ao verdadeiro mecanismo do comportamento normal. O que não poderia ser
diferente para alguém que acreditava que a conduta patológica expõe, de maneira
ampliada, o que está realmente em jogo no processo de formação das condutas
sociais gerais. É dessa forma que devemos interpretar uma metáfora maior de
Freud: “Se atiramos ao chão um cristal, ele se parte, mas não arbitrariamente.
Ele se parte, segundo suas linhas de clivagem, em pedaços cujos limites, embora
fossem invisíveis, estavam determinados pela estrutura do cristal”. O
patológico é esse cristal partido que, graças à sua quebra, fornece a inteligibilidade
do comportamento definido como normal.
Por exemplo, Freud nunca
cansou de lembrar que “um ser humano se torna neurótico por não poder suportar
a frustração (Versagung) imposta pela sociedade com seus ideais culturais”, sem
que essa impossibilidade o leve ao ponto de negar todo e qualquer interesse por
tais ideais. Para assumir tais ideais, os sujeitos devem estabelecer certo
compromisso entre suas exigências individuais de satisfação e aquilo que é
socialmente permitido. Tal compromisso exige, necessariamente, aceitar certa
frustração, submeter-se a certa coerção e conflito. Esse é, para Freud, um
traço geral dos processos de socialização. No entanto, os neuróticos vivem tal
compromisso como fonte profunda de sofrimento psíquico. Entender as causas de
tal sofrimento psíquico nos permite, por outro lado, apreender a verdadeira
natureza dos compromissos presentes em todo processo de assunção de ideais,
normas e valores sociais. Dessa forma, poderemos partir da frustração
patológica para, ao final, encontrar seus traços em todo comportamento normal.
Notemos um dado fundamental
aqui. Quando alguém está doente, cremos que sabemos isso porque comparamos sua
situação com uma situação normal da qual disporíamos previamente. Ou seja, a
doença nos aparece como uma derivação do normal. No entanto, Freud faz
praticamente o inverso. Ele parte do sofrimento vivenciado pelo doente que
procura amparo clínico. Em vez de simplesmente curá-lo, ele procura
inicialmente mostrar como seu sofrimento expõe conflitos e processos gerais na
constituição de todo e qualquer indivíduo. Isso lhe permite problematizar uma
noção demasiadamente normativa e sublimada de normalidade.
No entanto, não se trata com
isso de simplesmente negar a distinção entre normal e patológico. Podemos dizer
que, no caso de Freud, temos uma diferença qualitativa fundamental entre normal
e patológico. Se é verdade que o patológico permite a visibilidade de processos
e conflitos presentes no comportamento normal, é porque o patológico transforma
em motivo de quebra aquilo que o comportamento normal é capaz de suportar sem
cindir-se e dissociar-se.Por exemplo, a ambivalência entre amor e ódio na
relação com o objeto de desejo, assim como a erotização da autoridade, é um
traço que encontramos em todo comportamento. Mas é na neurose obsessiva que tal
ambivalência e tal processo são vivenciados para produzir necessariamente
sintomas, inibições e angústia. Ou seja, há uma diferença qualitativa na
vivência de processos estruturalmente semelhantes. Eles ganham visibilidade,
como os sulcos do cristal quebrado, porque começam a produzir fenômenos que não
produziriam em algo que poderíamos chamar de uma situação normal (e que nada
mais é do que a ausência de certos sintomas, inibições e angústias em outras
situações patológicas, já que não há sujeitos sem sintomas de sofrimento
psíquico).Mas dizer que o patológico é o ponto que fornece a visibilidade do
que está em jogo nas condutas sociais gerais significa, necessariamente, dizer
que “normal” e “patológico” são categorias que podem ser utilizadas para
compreender fatos sociais. Proposição aparentemente temerária, a não ser que
mostremos que a verdadeira crítica social pode ser algo como uma “análise de
patologias do social”. Talvez essa seja a lição que podemos tirar ao tentar
trazer Freud para o domínio da teoria da sociedade.
Da necessidade de críticas
totalizantes
Nesse sentido, podemos dizer
que o recurso a Freud nos permite compreender que uma crítica social é
indissociável da análise dos procedimentos de socialização que visam conformar
sujeitos a formas de vida aspirantes a uma validade que não se reduz apenas aos
domínios da tradição e do hábito. Por um lado, sabemos como os dispositivos de
formação e de individuação presentes nas dinâmicas de socialização são legíveis
a partir daquilo que compreendemos como sendo processos de identificação
mimética e de investimento libidinal. Até porque socializar é,
fundamentalmente, “fazer como”, atuar a partir de tipos ideais que servem de
modelos de identificação e de polo de orientação para os modos de desejar,
julgar, falar e agir. Mas sabemos também que essa identificação com tipos
ideais não pode ser descrita simplesmente a partir de considerações sobre as
pressões de conformação presente em núcleos elementares de interação social
(família, instituições sociais, mídias). Freud compreendeu que as estruturas
elementares que orientam o que está em jogo nesses núcleos de interação são
figuras privilegiadas da razão. As exigências de racionalidade presentes nesses
núcleos são, necessariamente, manifestações privilegiadas do que estamos
dispostos a contar como racional. No entanto, nunca deixará de colocar a
questão: “o que é necessário perder para se conformar a exigências de
racionalidade presentes em processos hegemônicos de socialização e de
individuação?”, ou, ainda, “qual o preço a pagar, que tipo de sofrimento
devemos suportar, qual o cálculo econômico necessário para viabilizar tais
exigências?”.
Essa questão está claramente
enunciada em trechos como, por exemplo: “Grande parte das lutas da humanidade
centralizam-se em torno da tarefa única de encontrar uma acomodação
conveniente, ou seja, um compromisso (Ausgleich) que traga felicidade entre
reivindicações individuais e culturais; e um problema que incide sobre o
destino da humanidade é o de saber se tal compromisso pode ser alcançado
através de uma formação determinada da civilização ou se o conflito é
irreconciliável”. Pois devemos nos perguntar o que deve acontecer ao sujeito
para que ele possa se pautar por um regime de racionalidade que impõe padrões
de ordenamento, modos de organização e estruturas institucionais de
legitimidade. Como deve se organizar sua economia libidinal para que ele possa
ser reconhecido, como sujeito agente, por estruturas institucionais que aspiram
garantir a racionalidade de nossas dinâmicas sociais. Toda discussão freudiana
clássica da imbricação entre socialização e repressão, que encontramos em
textos como O Mal-estar na Civilização, é apenas o ponto mais visível desse
problema.
Essas perguntas são
fundamentais por nos levarem a uma visão renovada do que pode ser a crítica
social. Sendo os núcleos de interação social modos de realização de formas de
ordenamento, de determinação de validade do que estamos dispostos a contar como
racional, então a verdadeira crítica social deverá ser uma análise das formas
de vida que se perpetuam por meio dos modos institucionais de reprodução
social.
No entanto, sabemos desde ao menos Rousseau que tal análise pode nos
levar à denúncia ampla do caráter distorcido das formas de vida na modernidade
ocidental. Nesse caso, ela se transforma em crítica da natureza patológica de
tais formas de vida com suas exigências de autoconservação e reprodução social.
Notemos que, aqui, uma forma de vida poderia ser chamada de “patológica” por
produzir um sofrimento social advindo da impossibilidade de dar conta de
exigências de reconhecimento dos sujeitos em suas expectativas de
autorrealização. Ou seja, nesse caso, a estrutura conceitual e valorativa
“normal”, cuja internalização constitui sujeitos agentes, produtores de
deliberações racionais, já seria “patológica”, pois indissociável da
perpetuação de uma situação de sofrimento advinda, ao menos no caso de
Rousseau, da perda de um horizonte originário que se confunde com a natureza
como plano positivo de doação de sentido.
Se deixarmos de lado a
temática rousseauísta do retorno à origem, é bem possível que esse esquema
esteja animando algo da intuição freudiana. Trata-se de se perguntar se o sofrimento
social que produz patologias não expõe, de maneira mais clara, o funcionamento
dos processos de formação de subjetividades normais. Trata-se, ainda, de
investigar se isso não nos obrigaria a perguntar pelos conflitos que estão por
trás dos sistemas de normas e regras que compõem a vida social e,
principalmente, por novas maneiras de gerir tais conflitos.
--------------------------
Fonte: Revista Cult - http://revistacult.uol.com.br/
Nenhum comentário:
Postar um comentário