Pelo tema da postagem anterior (o Inverno, sobretudo na forma
como ele ‘derrama o tempo’ pela paisagem
do agreste pernambucano), cheguamos à atual, sobre a ‘consciência do mistério’. O
enigma das ‘estradas invernais’, o tempo em modo sereno, os automóveis
embaçados, as pessoas a acomodarem-se em agasalhos, etc. Tudo isto existe em
função do momento, sem maiores preocupações. A existência é o momento. Por
estas e outras, o estadunidense Jim Holt, jornalista, filósofo, matemático e
analista da ciência, produziu a obra ‘Por que o Mundo Existe? Uma História de
Detetive Existencial’. Das 320 páginas do livro, há algo que possivelmente fica
de forma marcante: a consciência (ou autoconsciência) do mistério. O que,
convenhamos, não é pouca coisa para a razão. A seguir, uma entrevista do autor,
concedida ao jornalista Jorge Pontual.
Jorge Pontual — Eu
adorei seu livro. Eu li duas vezes, mas não significa que entendi tudo. Mas eu
acho bom tratar deste tipo de assunto. “Por que o mundo existe?”
Jim Holt — Tentei ser simples e elucidativo, mas é o mais sublime dos
mistérios.
Jorge Pontual — Você
parece ter se divertido muito escrevendo.
Jim Holt — É verdade. Foi uma grande busca. Eu fiz como se fosse uma
história de detetive e fui atrás dos melhores suspeitos cósmicos, conversei com
os maiores pensadores do mundo e os fiz pensar alto. É ótimo ouvir um grande
físico, filósofo, teólogo ou romancista pensando alto. Eles dizem coisas mais
extraordinárias. Estamos aqui lutando com o mistério que intriga todo mundo, e
você se pergunta se está no caminho certo, mas, quando os ouve falando, pensa:
“Talvez eles não sejam tão mais inteligente que eu”. Portanto, é um processo
muito libertador conversar com grandes pensadores sobre este, que é o maior dos
mistérios.
Jorge Pontual — Para
algumas pessoas, essa é a questão fundamental. Por que isso?
Jim Holt — Bem, é fundamental porque não se pode entender como é o mundo
até se entender por que o mundo existe. O grande filósofo Wittgenstein disse
que o enigma não é como o mundo é, mas sim que exista um mundo. Então, sim,
esse é nosso maior questionamento, mas de certo modo, é também o mais simples
deles. Não se trata apenas de uma questão de especulação intelectual.
Recentemente, nos EUA, surgiu um movimento chamado “neoateísmo”, com pensadores
como o biólogo evolutivo Richard Dawkins e outros defendendo o ateísmo com
muita veemência, dizendo que devíamos crescer e abandonar a ideia de Deus. E os
defensores da religião dizem que a ciência pode explicar o que é o mundo, mas
não pode explicar por que o universo existe. De certo modo, esse é o último
argumento da ortodoxia religiosa contra a visão do mundo laica e científica. Em
programas da televisão americana, as pessoas têm falado sobre a razão da
existência do universo. Se você não aceita a existência de Deus, como pode
explicar isso? Isso se tornou assunto frequente dos noticiários enquanto eu
escrevia o livro.
Jorge Pontual — Mas como
você explicaria, sem falar de Deus, o surgimento de algo a partir do nada?
Jim Holt — A história religiosa é que Deus criou o mundo a partir do nada.
Assim, a equação é: Deus + nada = mundo. Se tirar Deus da equação, o que irá
colocar ali? Alguns físicos têm escrito best sellers nos quais afirmam que a equação seria:
leis da Física + nada = algo. Esse algo seria o Big Bang. Mas isso gera vários
problemas. No livro, eu exploro todas as possibilidades, começando com a
hipótese de Deus e questionando: “Se você não acredita em Deus, a ciência pode
responder à pergunta?” Acho que não. Então pensei que talvez haja uma
explicação mais profunda, que vá além das alternativas tradicionais, que são
Deus e a ciência. E foi para aí que minha busca me levou.
Jorge Pontual — E é algo
muito profundo e difícil de entender. Para você, qual é a explicação mais
lógica, aceitável e plausível para a existência do universo?
Jim Holt — Essa é a finalidade da minha busca. Ir além da ciência e da
filosofia e encontrar os princípios verdadeiros que regem a realidade como um
todo. E há dois princípios aos quais eu acabei apelando. Um é o da
simplicidade, que é um princípio científico, segundo o qual se deve sempre
procurar a hipótese mais simples para explicar os dados. O outro é o princípio
da totalidade, que remonta ao filósofo grego Platão. E, combinando esses
princípios e raciocinando de maneira sutil, eu cheguei à conclusão de que,
ironicamente, o tipo de realidade que se deve esperar não é o nada, pois,
obviamente, há alguma coisa. O nada é uma realidade muito especial, muito
simples. É uma característica especial. Também não podemos esperar o mundo mais
completo, em que todas as possibilidade imagináveis se tornam realidade.
Devemos esperar algo entre dois, uma espécie de realidade infinita, confusa e
medíocre. O tipo de realidade que vemos ao nosso redor. Seria como um buraco
cheio de lixo cósmico. E o impressionante é que o lugar que ocupamos no
universo parece mesmo ser isso. Veja a descoberta recente do bóson de Higgs. O bóson
de Higgs basicamente torna o universo um lugar mais confuso do que seria sem
ele, pois quebra a simetria e dá massa a algumas partículas, mas tira de
outras. As próprias leis da Física, quanto mais exploramos o Cosmos, tendem a
ser mais confusas, e isso se coaduna com a conclusão a qual eu cheguei — que,
aliás, não é minha... eu sou só jornalista. Apenas me apoiei sobre os ombros de
um grande filósofo de Oxford, Derek Parfit. Foi ele que me permitiu ver sob um
novo enfoque toda a questão de por que há alguma coisa, em vez do nada.
Jorge Pontual — Mas você
também é formado em Filosofia, não é?
Jim Holt — E em Matemática.
Jim Holt — E em Matemática.
Jorge Pontual — Então
você é um jornalista que sabe bem o que está falando. Eu acho que uma das
coisas que impressionam a maioria dos seus leitores é que muitos daqueles
pensadores trabalham com a hipótese de um multiverso, um número infinito de
universos, ou de mentes infinitas, mundos múltiplos. O que é isso? Como eles
chegaram a isso?
Jim Holt — Acho que isso está bem claro. A história cientifica é a
seguinte: este universo teve início há 13,7 bilhões de anos, com o evento que
chamamos Big Bang. Portanto, parece que houve algo e que, de repente, surgiu um
universo. Mas isso provavelmente não foi o que aconteceu. O Big Bang deve ter sido
apenas um acontecimento local, que já aconteceu várias vezes, e nós vivemos
neste multiverso eterno, com vários universos sendo criados o tempo todo. Isso,
na verdade, levante várias possibilidades. Uma delas é a de que o nosso
universo foi criado por um físico hacker em algum outro universo. Eu conversei
com um grande físico russo, Andrei Linde, que criou a teoria da inflação
caótica, que é a melhor teoria do multiverso. Ele disse: “Veja, é possível
criar todo um universo com 1/100.000 grama de matéria, em laboratório. Não
podemos fazer isso hoje por não termos a tecnologia, mas é claramente possível
que um físico hacker em outro universo faça um universo igual ao nosso. E, se
for assim, ele não poderia se comunicar conosco, não poderia nos mandar uma mensagem,
mas poderia codificar alguma mensagem nas leis básicas da Física, de modo que
os físicos pudessem descobrir a mensagem”. Mas ele disse que nosso universo é
tão básico e bagunçado, que parece mesmo ter sido criado por um hacker, não por
um deus. Se Deus tivesse feito o universo, ele seria perfeito. Só que ele não é
perfeito. Há 37 famílias de partículas elementares, as leis da Física são
confusas. E o mundo é um desastre. Temos crianças com câncer, por exemplo, e
como a história religiosa poderia justificar isso?
Jorge Pontual — Uma
coisa que eu aprendi com seu livro foi que a hipótese de um multiverso é mais
simples, porque explica a física quântica e essa sintonia fina das condições
físicas que tornaram a vida possível, bem como nossa existência.
Jim Holt — É verdade. As pessoas que querem defender a religião dizem que o
universo em que vivemos é sintonizado com precisão. Todas as leis da Física são
perfeitas para permitir o surgimento de criaturas como nós.
Jorge Pontual — É uma
chance em bilhões, não é?
Jim Holt — É, mas, se você tiver vários universos, alguns deles devem ter a
temperatura certa e as qualidades que permitam a vida humana. Essa é uma
maneira de a ciência responder à religião. É um pouco mais sutil, pois o
multiverso... Não sei se consigo expor essa linha de pensamento, pois é meio
matemática...
Jorge Pontual — Voltando
a essas hipóteses, elas não podem ser provadas, certo? É metafísica? O que é
isso?
Jim Holt — Na verdade, não. A hipótese do multiverso tem implicações
observáveis para o universo. Nós temos satélites que analisam a radiação
deixada pelo Big Bang, e eles estão cercados por um nível bem baixo de
radiação. Na verdade, se você ligar sua televisão e ficar trocando de canal,
poderá ver um pouco dessa radiação. Isso é eco do Big Bang. E, analisando os
contornos e detalhes específicos dela, temos várias provas que sugerem que
nosso universo é apenas um entre muitos. Nós nunca poderemos observar esses
outros universos, pois eles estão separados do nosso por regiões de espaços que
inflam mais rápido do que a velocidade da luz. Mas nós temos boas provas
indiretas da existência disso. Para a ciência, isso já é bom o bastante. Não
conseguimos ver os átomos, mas nós temos várias justificativas teóricas para
acreditar que os átomos são reais. E o mesmo vale para os universos
alternativos.
Jorge Pontual — E a
ideia de que nós vivemos em uma simulação?
Jim Holt — A hipótese da Matrix.
Jim Holt — A hipótese da Matrix.
Jorge Pontual —
Exatamente.
Jim Holt — Ela também suscita a pergunta: qual é a natureza da realidade? Parece um pergunta muito pomposa, mas qual é...? Isto parece uma madeira sólida, não?
Jim Holt — Ela também suscita a pergunta: qual é a natureza da realidade? Parece um pergunta muito pomposa, mas qual é...? Isto parece uma madeira sólida, não?
Jorge Pontual — É.
Jim Holt — Sabemos que ela é feita de átomos, que são, basicamente, espaços
vazios. Se começarmos a olhar dentro do átomo, da matéria em nível subatômico,
ela tende a se dissolver em matemática pura. Não há nada real ali. É como a
simulação por computador: não há nada real, apenas informação. Isso levanta
várias possibilidades estonteantes. Uma delas é a de que o universo é
informação estruturada. Ou mesmo uma mente estruturada. Portanto, a ciência
pode nos dizer como a realidade é estruturada matematicamente, mas não pode nos
dizer qual é a natureza intrínseca dessa realidade. E há várias coisas que a
ciência não pode explicar. A maneira como essas folhas nos parecem verdes, o
sabor do hortelã, o que sentimos quando levamos um beliscão. Isso tudo está
sujeito à realidade mental. E a ciência não consegue explicar como o mundo da
consciência surge a partir do mundo físico. Então uma das coisas que temos que
fazer quando questionamos por que há algo, em vez do nada, por que existe um
universo, em vez de um vazio, é começar a pensar na pergunta: “O que é a
existência?” Ela é exatamente o que a ciência nos diz ou há um componente
mental nela? Ela pode ser uma simulação por computador, como você mesmo
levantou? Não uma simulação em um computador de verdade, mas uma informação
estruturada e abstrata. Essas são as perguntas que eu faço. É claro que não
podemos respondê-las em definitivo, mas, quanto mais você luta com elas, mais
você consegue ver as linhas gerais da resposta se formando.
Jorge Pontual — Que
impacto isso teve em você, do ponto de vista intelectual e até mesmo emocional?
Jim Holt — Emocionalmente, foi um impacto grande, porque a pergunta “por
que o universo existe?”, a pergunta cósmica, combina com a pergunta existencial
“por que eu existo?” E, quando se levam em conta todos os seres humanos
possíveis... Geneticamente, há trilhões e trilhões de seres humanos possíveis.
Mas, desde que a espécie humana surgiu, apenas cerca de 40 bilhões de humanos
ganharam vida. Ou seja, uma fração minúscula dos seres humanos possíveis. E
isso inclui você e a mim. Por que tivemos tanta sorte? Como ganhar a loteria
cósmica? Ou podemos ser desafortunados. Depende de como você vê sua existência.
Na peça “Édipo Rei”, de Sófocles, o coro diz: “Não ter nascido é melhor do que
tudo.” Assim, a pergunta “por que eu existo?”, como eu disse, combina com a
pergunta sobre a existência do cosmo. Eu passei muito tempo me perguntando o que
eu sou, o que é o “eu”. Descartes disse: “Penso, logo existo.” Mas o que é o
pensar? É meu corpo? Não, pois parece que, se colocassem minha consciência em
um robô, eu poderia sobreviver sem meu corpo. Outra questão emocional que
surgiu foi o nada de cada um de nós, que vamos encarar com a morte. Eu não
acredito que sobreviverei à morte do meu corpo. A ideia de que a existência foi
precedida por éons de nada, que, repentinamente, ganhamos consciência, vivemos
um pouco e voltamos ao nada...
Jorge Pontual — O livro
aborda muitas questões pessoais, por causa das suas perdas.
Jim Holt — É verdade, eu senti que fui golpeado pela morte enquanto eu o
escrevia. Começou com a morte repentina do meu cachorro. Eu sei que parece algo
trivial, mas foi meu dia mais triste da minha vida. E, lá pelo final do livro,
quando trato do que é o ser e a morte, minha mãe foi diagnosticada com câncer
de pulmão e morreu em um mês e meio. Eu estava no quarto, ao lado dela, quando
ela morreu, e ver um ser passar a não existência, o mesmo ser que gerou a minha
existência, me fez enfrentar mais uma vez a estranheza da existência, a
improbabilidade dela, e a surpresa que é nós existirmos e o mundo existir.
Jorge Pontual — Muitas
pessoas procuram a religião ou mesmo alguma maneira filosófica de encarar a
vida, em busca de consolo, certo, para conseguir suportar esse nada que está à
nossa frente. Mas, mesmo acreditando que nós voltaremos ao nada, há um consolo,
há uma maneira de aceitar isso?
Jim Holt — O interessante é que, quando eu ouvia diferentes opiniões ou
diferentes atitudes diante da existência como um todo, algumas pessoas diziam
que o universo é um lugar lindo e maravilhoso e que nós temos sorte de estar
vivos. Se Deus fez o universo, ele é cheio de bondade. Ela pode estar escondido
de nós, mas está lá. Já outras pessoas,
como o diretor americano Woody Allen, consideram o universo apenas um lugar
horrível, insuportável. Ele não acredita em Deus e acha que, quando morrer,
acabou, é o nada. E há um pequeno oásis de alívio disso tudo para ele, que é
reclamar. Ele diz que é assim que sobrevive a isso reclamando, fazendo filmes e
fazendo sexo. É interessante que não só Woody Allen, mas também John Updike,
escritor americano que morreu em 2009, era
muito obcecado com a ideia do nada, da morte e de onde vem o universo. Ele
também considerava o sexo uma maneira de se afastar, provavelmente não muito
eficazmente, da terrível ideia da morte, então...
Jorge Pontual — O que
foi que Updike lhe disse para explicar a existência? Está no livro.
Jim Holt — Updike, na verdade, acreditava na religião, de uma maneira muito
sutil ou filosófica. E ele tinha essa imagem de Deus cercado de nada, pensava
que talvez Deus tivesse criado o mundo apenas para aliviar seu próprio tédio
cósmico. Assim, o mundo seria um pouco como uma distração, algo que Deus criou
para se divertir. É uma concepção muito bonita. Mas, em um dos livros de
Updike, “Roger's Version”, todo o fim do livro trata da questão de por que há
um universo, em vez do nada. E, em uma conversa em uma festa, um personagem faz
esse relato virtuoso e puramente científico sobre como um universo como o nosso
pode surgir do nada. A beleza dessa questão é que pode ser tratada de um ponto
de vista religioso, como fonte intelectual de consolo, mas também pode ser
tratada de um ponto de vista científico, de um ponto de vista literário ou
mesmo místico. Se você for budista, por exemplo, e lhe perguntarem por que
existe algo, em vez de nada, a resposta pode ser: “Tem certeza de que existe
algo?” Para eles, este mundo parece real, talvez por sermos escravos de nossos
desejos, que dão substância a algo que não tem substância, que é vazio, e a
melhor coisa a fazer é acabar com o desejo, de modo que o mundo se dissolva no
nada, você entre em estado de nirvana, que é o que mais se aproxima da
felicidade. Um amigo meu disse que o nirvana é ter vida suficiente para gostar
de estar morto. É um estado de quase nada. Então, há essa visão mística também.
O incrível de refletir sobre o mistério da existência é que isso obriga você a
analisar todas as culturas, todo o conhecimento humano. Não se pode deixar nada
de fora, tem que ver o pacote inteiro, e eu fiz isso em um livro de 300
páginas.
Jorge Pontual — Você
escreveu um livro sobre a filosofia das piadas. Qual é a melhor piada sobre o
mistério da nossa existência?
Jim Holt — Eu tive um professor na Universidade de Columbia que era famoso
por suas piadas filosóficas. Um dia, um aluno perguntou a ele: “Professor, por
que há algo em vez de nada?” E ele disse: “Mesmo que não houvesse nada, você
ainda estaria insatisfeito.” Essa não é ruim.
Jorge Pontual — Essa é
boa.
Jim Holt — E é verdadeira. Os maiores mistérios e motivos de perplexidade
suscitam nas pessoas o impulso de fazer piada. Há piadas sobre coisas
horríveis, como o Holocausto. Uma maneira de os judeus lidarem com ele é
imprimindo humor ao fato. Nós nos perguntamos que piada pode ser apropriada
quando o assunto é algo tão horrível quanto o Holocausto, mas, para os judeus,
é possível. E encarar com humor o mistério da existência também é algo nobre.
Eu queria ter piadas melhores.
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Fonte: http://www.conjur.com.br/2013-abr-05/ideias-milenio-jim-holt-filosofo-norte-americano
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