Sob o título de 'pensamento binário', o artigo a seguir de Vladimir Saflatle, publicado pela Folha de São Paulo, é lapidar ao apontar o grau de involução mental e de desinteligência que tomou conta dos debates no Brasil - debates protagonizados, em muitos casos (o que é mais gave), por pessoas oriundas do meio universitário. Subscrevo o texto. Vale a leitura.
Por Vladimir Safatle
(Departamento de Filosofia - USP)
Há
anos, escrevi que um país em involução mental só consegue contar até dois. Seus
debates organizam-se a partir de um polaridade simplória na qual nenhum
pensamento um pouco mais elaborado é possível.
Tudo deve encaixar em dois conjuntos, sendo
que um deles serve apenas para ser sumariamente descartado e esconjurado. Este
é um dos aspectos daquilo que Christian Dunker chamou recentemente de
"lógica do condomínio" a organizar a vida intelectual do país.
De fato, há algo de cômico em ter que ouvir
cada vez mais frases como "Vá para Cuba" ou "Aqui não é a Coreia
do Norte" todas as vezes que alguém defende políticas esquerdistas de
combate à desigualdade social e de regulação econômica.
Não passa na cabeça destas pessoas que é
possível ser radicalmente de esquerda e contrário, por exemplo, ao Estado
degenerado que acabou sendo implantado em Cuba. Não, isso é muito complicado
para alguém que, no fundo, só consegue pensar com as dicotomias mais primárias
da Guerra Fria.
Da mesma forma, é patético ter que receber
afagos como "você faz o jogo da direita" todas as vezes que critica
de forma dura os descaminhos do governo federal. Normalmente, tais afagos vêm
de pessoas que procuram esconder sua capacidade de pensar criticamente sob a
fantasia da luta constante e inglória contra as forças do atraso.
Há meses, apareceu em uma livraria um dos
títulos mais inacreditáveis que um livro poderia ter: "10 livros que
estragaram o mundo". Entre eles estavam listados obras de Freud, Darwin,
Lênin, Hitler, Nietzsche e Marx. Esta é a melhor síntese deste pensamento
binário que nos assola nos dias atuais.
Não se trata de dizer que você discorda do
encaminhamento de certas ideias. Trata-se de dizer que tais ideias
"estragaram o mundo", que é melhor queimar os livros que as
expressam, nunca mais lê-los, colocando-os ao lado de Hitler (que também
gostava de falar de livros que estragaram o mundo e que mereciam ser
queimados). Engraçado saber que livros que dizem que outros livros estragaram o
mundo são o deleite de alguns.
Gilles Deleuze costumava mostrar a grandeza
de seu pensamento fazendo algo que irritava mais de um de seus colegas. Mesmo
sendo alguém vinculado à tradição do pensamento radical francês, ele não
deixava de mostrar a genialidade de certos autores claramente conservadores,
como Charles Péguy e Paul Claudel, ou de autores "moderados", como
Henri Bergson. Era uma maneira de mostrar verdadeira abertura ao pensamento e à
criação, independentemente de onde ela viesse. Eis um bom exemplo a meditar nos
dias de hoje.
--------------------------------------------
Fonte: Folha de São Paulo, edição para assinantes do dia 28/07/2015
Nenhum comentário:
Postar um comentário