Por Ricardo Sangiovanni
Põe as duas mãos na parede, cidadão. Abre as pernas, cidadão. Mais, cidadão. Documento, cidadão. Tira tudo da moto, cidadão. Fuma maconha, cidadão? Vou te levar preso, cidadão. Você está surdo, cidadão? - vocifera um soldado a um morador de um bairro pobre do Rio de Janeiro, num vídeo na internet.
Não sei se senti mais agonia por me colocar no lugar do homem, ou se pela centena irritante de vezes que o militar rugiu cidadão enquanto aviltava a cidadania do rapaz.
Sei que não deveria, para não parecer ingênuo, me espantar com esse tipo de manobra do vernáculo. Mas quando vejo esse soldado dizer cidadão - ou o papa católico exortar os jovens a serem revolucionários; ou o polemista liberal repelir discussões sobre liberdades civis - não fico imune ao espanto: estão sempre lá as benditas das palavras, usadas como se pudessem servir a qualquer propósito, sorrateiramente contradizendo até seus significados conhecidos.
Nisso não há novidade, dirão os especializados em dissecar o espanto de nós tolos: o vínculo entre o que se diz e o que se faz já não existe desde, sei lá, Maquiavel. Concordo até; mas as dicas do mestre florentino eram para políticos na gestão do Estado, não para gente comum na gestão da vida.
O que enxergo, cá com minha miopia, é uma naturalização alvoroçada desse divórcio entre as palavras e as coisas - entre "retórica" e "prova": parece que isso está se espalhando mais rápido entre nós comuns, se trivializando na medida em que nos ocupamos mais e mais em alimentar nossas próprias imagens públicas, potencializadas nas redes virtuais. Mas esse divórcio, como ensina o historiador Carlo Guinzburg, nada tem de natural: nossa ideia comum do que seja retórica hoje - "mera retórica", "retórica vazia" - não tem lugar na retórica original, lá de Aristóteles: a arte era de persuadir, sim, mas do que fosse verdadeiro.
O uso leviano das palavras, calculando antes o que possam agregar à imagem de quem as profere (as profana), é por fim adubo no terreno fértil das timelines, onde seguem brotando preconceitos - contra pobres, negros, mulheres, homossexuais - arados por gente espantosamente apta a sustentar que não, imagina!, não é classista, racista, machista, homofóbica.
Não sei se senti mais agonia por me colocar no lugar do homem, ou se pela centena irritante de vezes que o militar rugiu cidadão enquanto aviltava a cidadania do rapaz.
Sei que não deveria, para não parecer ingênuo, me espantar com esse tipo de manobra do vernáculo. Mas quando vejo esse soldado dizer cidadão - ou o papa católico exortar os jovens a serem revolucionários; ou o polemista liberal repelir discussões sobre liberdades civis - não fico imune ao espanto: estão sempre lá as benditas das palavras, usadas como se pudessem servir a qualquer propósito, sorrateiramente contradizendo até seus significados conhecidos.
Nisso não há novidade, dirão os especializados em dissecar o espanto de nós tolos: o vínculo entre o que se diz e o que se faz já não existe desde, sei lá, Maquiavel. Concordo até; mas as dicas do mestre florentino eram para políticos na gestão do Estado, não para gente comum na gestão da vida.
O que enxergo, cá com minha miopia, é uma naturalização alvoroçada desse divórcio entre as palavras e as coisas - entre "retórica" e "prova": parece que isso está se espalhando mais rápido entre nós comuns, se trivializando na medida em que nos ocupamos mais e mais em alimentar nossas próprias imagens públicas, potencializadas nas redes virtuais. Mas esse divórcio, como ensina o historiador Carlo Guinzburg, nada tem de natural: nossa ideia comum do que seja retórica hoje - "mera retórica", "retórica vazia" - não tem lugar na retórica original, lá de Aristóteles: a arte era de persuadir, sim, mas do que fosse verdadeiro.
O uso leviano das palavras, calculando antes o que possam agregar à imagem de quem as profere (as profana), é por fim adubo no terreno fértil das timelines, onde seguem brotando preconceitos - contra pobres, negros, mulheres, homossexuais - arados por gente espantosamente apta a sustentar que não, imagina!, não é classista, racista, machista, homofóbica.
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Fonte: http://www.notaderodape.com.br/search/label/mist%C3%A9rio%20do%20planeta
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