sábado, 4 de julho de 2015

Em Defesa da Laicidade

Num momento em que o ódio e a intolerância no país chegam ao ponto de apedrejar uma menina de 11 anos, por ela ser de uma crença religiosa diferente da dos seus agressores; 

Num momento em que representantes de determinadas crenças religiosas se articulam e atuam em bloco para impor suas visões nos planos estaduais e municipais de educação (como se as escolas públicas fossem suas igrejas!), eliminando as propostas referentes à orientação sexual/de gênero; 

Num momento em que, na Câmara dos Deputados, parlamentares representantes de crenças religiosas se juntam a parlamentares da chamada 'bancada da bala' (sim, de atirar!) para açular quem defende uma sociedade baseada na diversidade; 

Num momento em que uma jornalista, de um dos principais canais de televisão do país, sofre duros ataques racistas nas redes sociais, sendo até mesmo a sua cor associada ao 'demônio'...

É hora de se falar seriamente sobre laicidade, pois o fascismo tem muitas faces. Fazer a defesa incondicional da laicidade é um imperativo ético fundamental. Nesse sentido, um artigo aí baixo. 

Kaliane Campos, de 11 anos: apedrejada ao sair de um culto de
candomblé no Rio de Janeiro 


Por Jefferson Aparecido Dias 
(Doutor em Direito pela Universidade Pablo de Olavide de Sevilha/Espanha e 
Procurador da República)  
Introdução

Nos últimos anos intensificou-se o debate sobre a necessidade do Estado respeitar todas as religiões e garantir a liberdade de crença e de não crença.
Em consequência cresce o número de pessoas que conclamam o Estado a adotar uma postura de imparcialidade em relação às diversas religiões, deixando de manifestar predileção em relação a uma delas e em detrimento das demais ou em prejuízo da não crença. Tais pessoas são as defensoras da laicidade do Estado.
O presente texto, que não tem a pretensão de esgotar o tema, busca trazer subsídios para um dos aspectos da discussão que envolve a laicidade, que é a colocação e manutenção de símbolos religiosos em locais públicos.     

O que se espera com isso é que se possa avançar na concretização da laicidade do Estado, fazendo com que o princípio da liberdade religiosa se concretize e deixe de ser apenas uma previsão constitucional e legal sem repercussão prática.

Laicidade e Laicismo

Para o desenvolvimento do tema, importante esclarecer que tem se adotado, não sem algumas críticas, a diferenciação entre laicidade e laicismo.  
Laicidade seria a atuação com imparcialidade do Poder Público, que agiria de forma a manter uma equidistância de todas as religiões, sem manifestar predileção ou desprezo por qualquer delas ou mesmo pela não crença.

Laicismo, por sua vez, seria a postura hostil do Poder Público em relação a uma, alguma ou todas as religiões, caracterizada pela adoção de medidas que impeçam ou restrinjam a liberdade de manifestação religiosa.
Nesse sentido1:

(…) es necesario añadir que desde algún tiempo se ha difundido la tendencia a oponer la expresión “laicismo” al término que le es afín a “laicidad”; en una especie de guerra civil de significados, el primero se radicaliza para designar una posición teórica y práctica de abierta hostilidad hacia las creencias y las instituciones religiosas en cuanto tales; el segundo, en cambio, se diluye hasta que coincide con un método que permite y favorece la convivencia y el diálogo entre las creencias y las no creencias.
O Estado, na verdade, deve manter distância dos temas relacionados às religiões, fazendo uma distinção entre o público e o privado. Assim, nada impede que um cidadão ocupante de um cargo público manifeste sua devoção e exerça plenamente a sua liberdade religiosa, o que não se pode admitir, contudo, é que na qualidade de representante do Estado, adote medidas visando prestigiar a fé que confessa.

A título de exemplo, nada impede que o Prefeito de uma cidade frequente determinada igreja e cumpra as obrigações impostas por sua devoção, mas não se pode admitir que utilize recursos públicos para subsidiar a atuação de sua igreja, pois essa destinação de recursos públicos seria inconstitucional, pois fere o princípio da impessoalidade, podendo, inclusive, caracterizar um ato de improbidade administrativa, mesmo que a religião beneficiada seja professada pela maioria da população.

A santa na praça

A partir das considerações teóricas acima mencionadas, necessária a análise de um caso concreto relacionado à suposta violação à laicidade do Estado.
Em uma praça na cidade de Águas Lindas de Goiás, nas proximidades do Distrito Federal, a polêmica está relacionada com a existência de uma imagem de Nossa Senhora Aparecida, pois um pastor da referida cidade está promovendo um abaixo-assinado visando convencer o Poder Público a retirá-la2.
A argumentação, bastante fundamentada, é que a manutenção de tal símbolo religioso confrontaria a laicidade do Estado brasileiro, uma vez que o Poder Público municipal estaria manifestando certa predileção a uma religião em detrimento das demais.
Aqui, são necessárias algumas considerações sobre as espécies de bens públicos.
Os bens públicos se classificam em bens de uso comum do povo, bens de uso especial e bens dominicais. Os dois primeiros, estão sujeitos à afetação ao uso do povo ou ao uso do Poder Público para a prestação de um serviço ou atividade públicas. Já os bens dominicais não sofrem afetação pública e compõem o patrimônio do Estado3:
O critério dessa classificação é o da destinação ou afetação dos bens: os da primeira categoria são destinados, por natureza ou por lei, ao uso coletivo; os da segunda ao uso da Administração, para consecução de seus objetivos, como os imóveis onde estão instaladas as repartições públicas, os bens móveis utilizados na realização dos serviços públicos (veículos oficiais, materiais de consumo, navios de guerra), as terras dos silvícolas, os mercados municipais, os teatros públicos, os cemitérios públicos; os da terceira não tem destinação pública definida, razão pela qual podem ser aplicados pelo Poder Público, para obtenção de renda; é o caso das terras devolutas, dos terrenos de marinha, dos imoveis não utilizados pela Administração, dos bens móveis que se tornem inservíveis.
Assim, um terreno não utilizado pelo Estado e não disponível para o uso do povo, pode ser considerado um bem dominical e, nesta qualidade, pode até ser alienado, desde que observadas as formalidades legais.
Já o prédio público onde funciona a Justiça Federal, por exemplo, é um bem de uso especial do Estado, pois está sendo utilizado para a prestação de um serviço público, característica esta que impede a existência de símbolos religiosos em suas dependências conforme os ditames da laicidade estatal.    

Por fim, uma praça, como é o caso da cidade de Águas Lindas de Goiás, é um bem de uso comum do povo e, nesta qualidade, deve estar aberta ao passeio público e à utilização por todos.
Apesar de ser um bem de uso comum do povo, contudo, pode ser possibilitado o seu uso privativo, por meio de autorização ou permissão4:
Uso privativo, que alguns denominam de uso especial, é o que a Administração Pública confere, mediante título jurídico individual, a pessoa ou grupo de pessoas determinadas, para que o exerçam, com exclusividade, sobre parcela de bem público.

O conteúdo do uso privativo é variável, podendo comportar faculdade de ocupação (como a instalação de bancas na calçada), poderes de transformação (construção de vestiários na praia) ou até poderes de disposição de uma parte da matéria (aproveitamento das águas públicas ou extração de areia).
Aqui surge a primeira dúvida.
A imagem de Nossa Senhora existente na praça em Águas Lindas foi construída pelo Poder Público e, portanto, é um bem público? Ou, ao contrário, trata-se de imagem construída com recursos da Igreja Católica e, assim, é um bem particular que, contudo, ocupa um bem de uso comum do povo, no caso a praça?
Na segunda situação não me parece adequada a sua retirada, desde que seja autorizada a todas as demais religiões a possibilidade de também colocarem, nesta ou em outras praças da cidade, os seus símbolos de devoção, postura com a qual se estaria prestigiando a laicidade do Estado, concebida, como vimos, como uma posição de imparcialidade deste em relação a toda e qualquer religião. Nesse ponto, também deve ser permitido aos ateus a possibilidade de manifestar a sua não crença.
Se a imagem foi construída com recursos do Poder Público, porém, é provável que estejamos diante de um ato ilegal, que pode ser caracterizado, inclusive, como improbidade administrativa, uma vez que não se pode admitir que os recursos públicos sejam aplicados para a promoção de uma determinada fé, o que levaria a ocorrência de prejuízo ao Erário5.

  
É importante frisar que a noção de dano não se encontra adstrita à necessidade de demonstração da diminuição patrimonial, sendo inúmeras as hipóteses de lesividade presumida previstas na legislação. Como consequência da infração às normas vigentes, ter-se-á a nulidade do ato, o qual será insuscetível de produzir efeitos jurídicos válidos. Tem-se, assim, que qualquer diminuição do patrimônio público advinda de ato inválido será ilícita, pois quod nullum est nullum producit effectum, culminando em caracterizar o dano e o dever de ressarcir.

Assim, além de ser retirada a imagem da praça, o responsável por sua construção também deveria ser obrigado a reparar os cofres públicos, devolvendo os recursos públicos que foram indevidamente investidos na sua construção.
Uma solução intermediária seria a Igreja Católica adquirir a imagem e transferi-la para um prédio de sua propriedade ou, ainda, solicitar que lhe fosse concedida uma permissão de uso, para que a imagem pudesse continuar na praça, desde que, como já mencionado, fosse permitido que as outras crenças também utilizassem a praça.
Afinal, não pode ser aceito que os recursos públicos, arrecadados de todos os cidadãos, sejam investidos em homenagem à religião que é comungada por alguns, mesmo que este grupo seja a maioria.
Os recursos públicos devem ser aplicados em fins públicos e a religião, como se sabe, está afeta à esfera privada das pessoas.
Nesse sentido, inclusive, já decidiu o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, que julgou inconstitucional lei quer permitia a concessão de patrocínio público para eventos religiosos6:
O Conselho Especial do TJDFT julgou inconstitucional a Lei Distrital nº 4.876/2012, que dispõe sobre a colaboração de interesse público do Distrito Federal com entidades religiosas. A matéria legislativa já tinha sido objeto de pelo menos outras duas ações diretas de inconstitucionalidade (ADI) julgadas procedentes (em 2002 e 2010), cujas leis impugnadas também visavam conceder benefícios ou custear despesas com a realização de eventos de cunho religioso.
A Procuradoria-Geral de Justiça do DF (MPDFT), autora da ADI, alegou que a norma distrital afronta a Lei Orgânica do DF (LODF) ao ampliar indevidamente o conceito de ‘colaboração de interesse público’, permitindo que simples ‘eventos religiosos’ possam vir a ser custeados pelo Poder Público. Além disso, permite que esse custeio seja concedido sem a devida licitação.

Quanto ao tema, oportuna a apresentação da ementa do julgamento7:
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI DISTRITAL N.º 4.876/12. CONCEITO DE INTERESSE PÚBLICO. SUBVENÇÃO A CULTOS RELIGIOSOS. DISPENSA DE LICITAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE.
O fato de as matérias impugnadas estarem previstas, também, na Constituição Federal não obsta o controle abstrato de constitucionalidade por suposta ofensa de Lei Distrital às normas correspondentes da Lei Orgânica do Distrito Federal.
Deve ser declarada inconstitucional Lei Distrital que viola frontalmente a Lei Orgânica do Distrito Federal, ao ampliar o conceito de interesse público, bem assim ao possibilitar a concessão de subvenção a cultos religiosos ou igrejas pelo Poder Público, sem prévio procedimento licitatório. 

Pedido de declaração de inconstitucionalidade julgado procedente.
Além disso, com frequência, para justificar a colocação de estátuas e símbolos religiosos em locais públicos, tem-se apelado para a existência do Cristo Redentor na cidade do Rio de Janeiro. Afinal, se a cidade fluminense pode manter o ALVES, Rogério Pacheco; GARCIA, Emerson. Improbidade Administrativa. 4ª Ed. Rio de Janeiro : Lumen Juris, 2008, p. 251/252.tradicional símbolo religioso em local público, porque outras cidades não poderiam?
Entretanto, o Cristo Redentor, na realidade, é um bem privado, de propriedade da Diocese do Rio de Janeiro, existindo, inclusive, uma capela em louvor a Nossa Senhora Aparecida instalada no prédio que lhe serve de base8.
Ainda, ao contrário do que se convencionou falar, a imagem não foi um presente da França para o Brasil, uma vez que foi construída com recursos levantados pela Igreja Católica, por meio de campanhas desenvolvidas junto a seus fiéis9:
A mando do cardeal Dom Sebastião Leme é organizada, em setembro de 1923, a “Semana do Monumento”, uma campanha nacional para arrecadação de fundos para as obras. A sociedade em geral se mobiliza. Vendem-se rifas, fazem-se festas, escoteiros pede-se dinheiro nas portas das casas e até as tribos dos Bororós do estado do Mato Grosso contribuem para tornar este sonho uma realidade. (sic)
Tais dados, inclusive, constam da página oficial do Cristo Redentor na internet, mas insistem em ser ignorados pelos que os utilizam para justificar a sua posição a favor da manutenção de símbolos religiosos em locais públicos.

Mudança de postura

É certo que a laicidade do Estado brasileiro foi prevista, pela primeira vez, no Decreto nº 119-A, de 7 de janeiro de 1890.
Contudo, passados mais de 120 anos de tal previsão legal e tendo tal princípio sido elevado à categoria de princípio constitucional desde a Constituição de 1891 (art. 11, § 2º), ainda são encontradas manifestações religiosas do Poder Público.
São centenas de cidades que ostentam símbolos religiosos em prédios, praças e outros locais públicos, sem se dar conta que tal postura acaba prestigiando uma religião em detrimento de outras ou da não crença.
Claro que muitos desses símbolos estão relacionados a fatos históricos e, portanto, até é possível a defesa de sua manutenção em nome desta suposta tradição, desde que não onere os cofres públicos.
O problema, porém, é que muitos desses símbolos foram recentemente colocados, não estando amparado pela alegada “tradição”.
Além disso, é necessário ter muita cautela para justificar determinada postura a partir da tradição ou critérios históricos, pois tais argumentos já foram utilizados, por exemplo, para justificar a escravidão e atos de discriminação dos homens em relação às mulheres.
Dessa forma, apenas se conseguirá dar efetividade ao princípio da laicidade do Estado quando definitivamente for adotada a separação entre Estado e Religião.
Nesse sentido10:

Si esos símbolos expresan creencias religiosas — y no son la manifestación de un valor como el de justicia, el de tolerancia o la identidad histórica del pueblo—, entonces debemos interpretar el acto estatal de desplegarlos en el sentido de comunicar a la población que el Estado y el gobierno que lo administra en un determinado momento se adhieren a esas creencias. Si ello es así, entonces el Estado estaría, por medio de ese despliegue de símbolos, abandonando la posición neutral y laica que el compromiso requiere con la igualdad, la protección de la autonomía y el establecimiento de un régimen igualdad de creencia y no creencia religiosa.
O  princípio da laicidade impõe uma postura imparcial por parte do Estado, que não pode demonstrar predileção por qualquer religião, sob pena de adotar uma conduta inconstitucional e ilegal.

Conclusão

Apesar dos preceitos constitucionais e legais sobre a laicidade,  ainda existem casos em que Estado e Religião se confundem, violando o princípio da separação.
Essa confusão entre Estado e Religião se caracteriza, muitas vezes, pela colocação e manutenção de símbolos religiosos em locais públicos, como é o caso da imagem de Nossa Senhora Aparecida mantida na praça da cidade de Águas Lindas de Goiás.
Como se analisou no presente texto, a permissão ou autorização para que determinada crença coloque e mantenha símbolos religiosos em locais públicos, por si só, não será ilegal, desde que tal possibilidade tenha sido garantida às demais religiões.
Já a construção ou colocação de símbolos religiosos utilizando recursos públicos pode caracterizar ato de improbidade administrativa, uma vez que se está diante de conduta que causa prejuízo ao Erário.

Notas
1) BOVERO, Michelangelo. El concepto de laicidad. Colección de cuadernos “Jorge Carpizo”: para entender y pensar la laicidad, Núm. 2. México : Universidad Nacional Autónoma de México, Cátedra Extraordinaria Benito Juárez, Instituto de Investigaciones Jurídicas e Instituto Iberoamericano de Derecho Constitucional, 2013, p. 2.
2) PASTOR faz abaixo-assinado para retirar imagem de Nossa Senhora de praça em Goiás. Data: 17/09/2013. Disponível em: http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2013/09/17/pastor-.... Acesso em: 03/10/2013.
3) DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 25ª Ed. São Paulo : Atlas, 2012, p. 725.
4) DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 25ª Ed. São Paulo : Atlas, 2012, p. 747.
5) ALVES, Rogério Pacheco; GARCIA, Emerson. Improbidade Administrativa. 4ª Ed. Rio de Janeiro : Lumen Juris, 2008, p. 251/252.
6) LEI que autoriza o DF a colaborar com eventos religiosos é inconstitucional. Data: 12/06/2013. Disponível em:http://www.tjdft.jus.br/institucional/imprensa/noticias/2013/junho/lei-q.... Acesso em: 03/10/2013.
7) BRASIL, Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios. Processo nº 2012 00 2 017245-5 ADI (0017301-71.2012.8.07.0000 – Res. 65 - CNJ) DF. Conselho Especial. Relatora Ana Maria Duarte Amarante Brito. Data do julgamento: 11/06/2013. Publicação no DJE: 19/08/2013, p. 13.
8) CAPELA do Corcovado. Disponível em: http://www.riodejaneiroaqui.com/portugues/corcovado-capela.html.
9) CRISTO Redentor 80 anos. A história. Disponível em: http://www.cristo80anos.com/historia.html. Acesso em: 28/05/2013.
10) SABA, Roberto. Laicidad y símbolos religiosos. Colección de cuadernos “Jorge Carpizo”: para entender y pensar la laicidad, Núm. 7. México : Universidad Nacional Autónoma de México, Cátedra Extraordinaria Benito Juárez, Instituto de Investigaciones Jurídicas e Instituto Iberoamericano de Derecho Constitucional, 2013, p. 24-25.

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