sexta-feira, 31 de julho de 2015

Caetano Veloso, Gil e um lamentável papel

Na 'estética da arte', há de se considerar 'um certo grau de autonomia' da obra em relação ao autor. Isso explica, por exemplo, que se continue a cantar 'Para não dizer que não falei das flores', apesar do Geraldo Vandré de hoje. Só assim para assimilar o lamentável papel ao qual se prestaram Caetano Veloso e Gilberto Gil esta semana em Israel, contrariando o movimento internacional de protesto pacífico empreendido por artistas de todo o mundo contra o massacre dos palestinos e em defesa da paz no Oriente Médio. Ninguém melhor do que israelenses apoiadores desse movimento para manifestar reprovação total ao papel desempenhado por Caetano e Gil .  É o que fazem os autores do artigo aí abaixo, que teve como título original exatamente 'A vergonha de Caetano e Gil em Israel'. 

Jerusalém: berço histórico de religiões e de guerra 

Por Ofer Neiman e Yonatan Shapira 

Em uma amostra de relações-públicas superficialmente disfarçada, Caetano Veloso declarou nesta segunda em Tel Aviv: “Acho inaceitável a ocupação, mas sou só um brasileiro, visitante, cantor. Esse é um problema dos israelenses”. Como cidadãos israelenses, temos visto, vez após outra, que a ocupação e apartheid de Israel não são um problema que israelenses estão dispostos ou capazes de resolver sozinhos.
Infelizmente, esse “problema” também chegou à porta brasileira há muitos anos: o Brasil é o quinto maior importador de armas de Israel. Contratos assinados entre os governos brasileiro e israelense chegam quase ao valor de US$ 1 bilhão. De veículos blindados vindos de Israel para as ocupações policiais das favelas ao treinamento israelense das polícias militares no Rio e em São Paulo, trata-se de dinheiro do imposto de cidadãos brasileiros.
Caetano e Gil disseram que vieram a Israel em apoio a um “diálogo”. Palestinos vivendo sob a ocupação e apartheid israelenses costumam dizer, e estão certos, que não pode haver diálogo entre um cavalo e seu cavaleiro. Nós sabemos que diálogos significativos só podem começar quando o opressor percebe que suas políticas não são mais aceitáveis. Artistas que realmente acreditam que as políticas de Israel são inaceitáveis apoiariam, certamente, um movimento de boicote global, não violento, como o BDS — baseado no modelo sul-africano de campanha contra o apartheid.
Eles declararam que estavam aqui em Israel para “aprender” sobre a situação. Não é necessário mais do que uma mente aberta e acesso à internet para entender a realidade da ocupação e apartheid de Israel contra o povo palestino — assim como não é necessário ir à Síria para entender a natureza dos crimes que estão sendo cometidos lá. Além disso, nós e outros convidamos ambos a virem ver a realidade aqui sem prover entretenimento às massas privilegiadas de Tel Aviv.
Os slogans de “paz” de Caetano e Gil, 48 anos depois da ocupação israelense da Cisjordânia e Gaza e 67 anos depois da Nakba, a limpeza étnica da Palestina, não são mais do que uma retórica de lavagem política, a qual mantém as pessoas distantes de uma discussão séria sobre a realidade assimétrica sob controle israelense. Paz só pode vir como um resultado, resultado da igualdade perante os direitos humanos e o fim da opressão. Eles falharam em focar nos crimes e violações de direitos humanos que constituem, diariamente, um sistema de ocupação e apartheid contra milhões de pessoas palestinas.
Em nossa opinião, talvez a pior das ações tomadas por Caetano e Gil em Israel tenha sido sua reunião com Shimon Peres. Este talvez tenha enganado pessoas no passado, com seus longos discursos românticos sobre paz, mas qualquer um olhando para seu currículo percebe que Peres é um inimigo da paz. Enquanto primeiro-ministro de Israel, ele foi responsável pelo bombardeamento indiscriminado do Líbano na primavera de 1996, matando muitos civis e expulsando a milhares de libaneses refugiados de suas casas.
Na função de ministro da Defesa, em 1986, Peres autorizou o sequestro e tortura do israelense Mordechai Va’anunu, que revelou ao público informações sobre o programa nuclear de Israel. Ele também fundou o Centro Nuclear militar israelense de Dimona, um projeto que instigou uma corrida armamentista perigosa e não convencional no Oriente Médio. Há também evidência substancial de seu apoio moral e militar ao brutal regime de apartheid da África do Sul e seu projeto nuclear.
Nós já testemunhamos inúmeros artistas vindo se apresentar em Israel pela “paz”. Nenhum deles deixou um legado político aqui. Nenhum deles começou uma onda de dissidência e ativismo pelo fim dos crimes cometidos pelo governo israelense contra milhões de pessoas. Por outro lado, artistas que escolheram não se apresentar aqui deram uma mensagem moral clara: esses crimes não serão tolerados!
Nesta segunda-feira, Caetano Veloso e Gilberto Gil forneceram serviços de propaganda ao regime de apartheid de Israel e seus esforços anti-BDS. Só se pode esperar que eles farão como Roger Waters, que se apresentou aqui mas depois percebeu que cometeu um erro. Talvez eles também percebam que o movimento global e não violento de BDS é o caminho para justiça, igualdade e — só quando estas forem alcançadas — paz.
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Fonte: Jornal O Globo, Secção Opinião, edição do dia 29/07/2015. 


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