Por Vandeck Santiago
Conta-se
que ao fim de um concerto um grande pianista ouviu de uma fã: “Eu daria minha
vida para tocar como o senhor”. E ele: “Eu dei a minha, senhora, eu dei a
minha…” Na forma como a nossa sociedade é estruturada, a gente só vê o clímax
da conquista, o momento exuberante em que o artista ou o atleta exibe toda sua
maestria. Mas até chegar àquele momento anos e anos se passaram de um esforço diário
e anônimo.
Rogério
Ceni, por exemplo, é o goleiro que mais fez gols em toda a história do futebol.
Chegou a esta marca cobrando faltas e pênaltis. O que poucos sabem é que, antes
de começar a fazer as cobranças, ele treinou 15 mil faltas. Batia de 2.500 a 3
mil por mês.
Carlos
Saldanha hoje é um cineasta de animação reconhecido, daqueles que a indústria
cinematográfica norte-americana permite trabalhar com filme de orçamento de 100
milhões de dólares. Dirigiu A Era do Gelo e Rio. Lendo esta informação somos
levados a pensar: “Ah, esse cara devia ser fera em computação e desenho desde
cedo”. Aí vejam o que ele diz em toda entrevista que lhe perguntam sobre isso:
“Nunca fui o melhor em nada. Não era o que desenhava melhor nem o que entendia
mais de computação, mas talvez eu fosse o que mais queria estar ali”.
Aos
20 anos, Saldanha – que é carioca – juntou tudo o que tinha e foi fazer um
curso em escola de artes visuais de Nova York. Muitos dos alunos nem
compareciam às aulas. Ele ficava lá dia e noite. Aproveitou para fazer várias
produções sozinho, embora isso não fizesse parte do currículo.
Sabem todos que um dia almejaram algo difícil e chegaram lá que fora do esforço
não há salvação. O dom de ser capaz de fazer algo em um nível acima dos outros
vem acompanhado – sempre – da obrigação de também esforçar-se mais que os
outros.
Aos
cinco, seis anos, um enxadrista genial, um pianista genial, um matemático
genial já era capaz de surpreender todos com sua habilidade. Mas se esta
genialidade que surge tão cedo não é cultivada com horas e horas de estudo e
treino, torna-se anos depois apenas uma lembrança doída.
O pianista Oscar Peterson (1925-2007) foi considerado um dos maiores de todos
os tempos. Aos cinco anos ele já estudava com o seu pai. Para desenvolver seu
talento, estudava oito horas por dia. Por que tanto? “Se num dia eu treinar
sete horas”, respondia Peterson, “no outro dia terá alguém tocando melhor”.
O
esforço como meio para atingir objetivos vale para quem nasce com algum talento
extraordinário e também para o restante. Uma teoria desenvolvida pelo psicólogo
K. Anders Ericsson, em 1993, e popularizada pelo jornalista Malcolm Galdwel no
livro Fora de Série - Outliers (Sextante, 2008), diz que para você atingir um
nível de excelência em qualquer atividade são necessárias pelo menos 10 mil
horas de prática. Ou três horas por dia, durante 10 anos. Às vezes quem se
compromete com um esforço obstinado acaba até superando outros que têm muito
mais talento mas não se dedicam. George Leonard, no livro Maestria (Cultrix,
1998) conta que fez uma série de entrevistas para a Esquire com atletas de
ponta em diversos esportes e a maioria “colocou o trabalho árduo e a
experiência acima do talento puro”.
Se
você, leitor, teve a generosidade de me acompanhar até aqui permita-me
dizer-lhe que tudo isso é só para ressaltar o exemplo da nadadora pernambucana
Joanna Maranhão. Na Olimpíada de Atenas em 2004 ela nadou a final de sua prova
preferida, os 400m medley, com um tempo de 4m40s. Ficou na quinta colocação;
até hoje o melhor resultado para uma nadadora brasileira. Joanna tinha 17 anos.
Nos anos seguintes ela nunca mais conseguiu superar aquele tempo, nem
igualá-lo. Uma marca que era extraordinária transformou-se numa barreira
intransponível que afetou psicologicamente a nadadora. Sofreu uma síndrome do
pânico antes de disputar uma prova. Teve um mal súbito na Olimpíada de 2012, em
Londres, e não disputou. Decidiu aposentar-se das competições em janeiro de
2014. Aos 26 anos encerrava precocemente sua carreira, como a maior nadadora da
história do Brasil. Durante cerca de 10 anos ela dominara as provas de 400m
medley e 200m no país, além de conquistas também em outras modalidades da
natação (800m livre, 200m borboleta e 200m costas). Mas cerca de seis meses
depois da aposentadoria anunciada, ela voltou a nadar. E no dia 16 de julho
passado conseguiu superar a marca de 2004 nos 400m medley: terminou a prova com
4m38s07, e levou a medalha de bronze. Farei a conta pra vocês: a superação
demorou 11 anos para acontecer. E foi por menos de dois segundos. Joanna tem
hoje 28 anos.
Nas
entrevistas logo após a disputa, vimos sua alegria: “Nunca fui tão feliz”. Ela conquistou
ainda duas outras medalhas: bronze nos 200m borboleta e prata na equipe de
revezamento 4x200m. Fiquei pensando no que deve ter sido sua luta diária e
anônima, esses anos todos, enfrentando cobranças, pressões, frustrações, o medo
de nunca mais ser beijada pelo sucesso. O talento precoce que não conseguia
superar a si mesma. Como deve ter sofrido esta menina… Como deve ter se
esforçado… Por tudo isso, sua conquista é o resultado mais inspirador desses
Jogos Pan-Americanos de 2015.
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Fonte: Diário de Pernambuco, edição do dia 26/07/2015.
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