Os
trechos aí abaixo são de uma longa e histórica entrevista daquele que José
Saramago lamentou não ter sido agraciado com o Prêmio Nobel: o poeta brasileiro
Carlos Drummond de Andrade. A entrevista foi realizada pela pesquisadora Maria Lúcia do Pazo, em função da elaboração da sua Tese de
Doutorado, em Comunicação na UFRJ, tendo como foco os poemas eróticos de
Drummond e uma relação com a lírica medieval. O dado peculiar é que, na época
(princípio dos anos 1980), os referidos poemas não estavam publicados. Drummond
tinha receios, por exemplo, de que erotismo fosse confundido com pornografia.
Como sabemos, o grosso dos seus poemas eróticos só foram publicados após o seu
falecimento, em O Amor Natural. Seguem
os trechos da reveladora entrevista.
Você poderia dizer alguma coisa sobre a sua intenção de não
publicá-los [os poemas de "O Amor Natural"] no momento, e a permissão
que me deu, tão gentilmente, para que pudessem ser abordados em minha tese de
doutorado sobre o erotismo na poesia de Carlos Drummond de Andrade?
Bem,
a autorização e mesmo a sugestão que fiz de lhe mostrar esses poemas para serem
aproveitados na sua tese, a meu ver, é uma coisa óbvia, porque se o objeto da
tese é exatamente o erotismo na minha poesia, não havia nada mais
representativo do que esse volume inédito, porque ele trata exclusivamente
desse tema em suas muitas variações.
Já
na minha "Obra Completa", publicada, o erotismo aparece aqui e ali,
de uma maneira mais ou menos intensa ou declarada, mas não tem esse sentido
assim de tema único que o "Amor Natural" possui. Não quis publicar
até agora e hesito ainda em publicar - ou, antes, resolvi não publicar - pela
circunstância de que o mundo foi invadido por uma onda de erotismo, logo depois
convertida em pornografia, se é que a onda de pornografia não veio antes.
O
fato é que hoje não se distingue mais o erotismo propriamente dito e a
pornografia, que é uma deturpação da noção pura de erotismo. Se eu publicasse
agora o livro, iria enfrentar, por assim dizer, um elenco bastante numeroso de
livros em que a poesia chamada erótica não é mais do que poesia pornográfica, e
às vezes nem isso, porque é uma poesia malfeita, sem nenhuma noção poética.
Já
me advertiram que a demora em publicar vai importar talvez num futuro próximo,
em que meus poemas já não ofereçam nenhuma curiosidade porque o tema já estará
tão batido, já se esgotou tanto essa série de assuntos, e a educação sexual, de
uma forma errada ou certa, se generalizou de tal modo -na escola, no rádio, na
televisão e na casa de família - que o meu livro de poemas correrá o risco de
constituir-se em livro de classe para jardim de infância...
O
escorpião do poema "Signo" é o desejo, mas o escorpião do poema
"Confissão" é o pecado. Durante muito tempo associou-se sexo e
pecado; hoje, não mais. Por que nos culpamos tanto por termos outrora feito
dele um pecado? O excessivo discurso sobre sexo de nossos dias não será um erro
para corrigir outro?
Sem
dúvida, porque sobretudo é um discurso muito confuso, muito enrolado. Com
relação ao escorpião, devo dizer a você que o escorpião faz parte da minha
vida, porque sou do signo de escorpião e essa palavra – escorpião - é terrível
para os moradores do interior de Minas, onde cidades inteiras eram ameaçadas,
invadidas por escorpiões. O escorpião é muito ligado à minha vida por essa
razão, embora eu não acredite na importância dos signos do zodíaco -acho isso
uma coisa mais literária ou mágica do que outra coisa, não é nada racional - o
escorpião de que eu fugia no porão lá de casa, com medo de ser mordido por ele,
era paradoxalmente um bicho que eu trazia dentro de mim, por ter nascido dentro
desse signo, compreendeu?
Essa
é a interpretação que eu dou. Já o poema "Confissão" -"Escorpião
mordendo a alma, o pecado graúdo acrescido do outro de omiti-lo, aflora noite
alta em avenidas úmidas de lágrimas, escorpião mordendo a alma da pequena
cidade".
Aí,
tanto quanto eu posso me lembrar, era associando a ideia do escorpião, do
animalzinho perverso, maligno da nossa cidade, ao escorpião do pecado, à
tortura, à angústia que a criança do interior, educada no princípio do século,
sentia com a noção de pecado.
Você
pode imaginar como nós sofríamos porque não tínhamos ainda bastante lucidez de
espírito para julgar na época o que fosse ou não pecado. Se era pecado mastigar
a hóstia no ato da comunhão, muito mais pecado seria praticar digamos, o
onanismo, ou tentar ver o nu feminino, o que aliás era impraticável.
Mas
essas coisas, essas tentações da idade, da infância e da adolescência, eram
todas consideradas pecados graves. Era como se o sentimento desse pecado
passasse a ser pecado realmente, porque nós o sentíamos como tal. Isso nos
aferroava a alma como um escorpião.
Em
Machado de Assis, a fixação pelos braços das mulheres é evidente; em sua
poesia, pernas e coxas femininas se destacam. Isso começou em Belo Horizonte
quando você era adolescente. Como foi?
Acho,
Lúcia, que começou antes. Começou em Itabira, porque não havia a menor
informação sobre o corpo feminino. Os vestidos alongavam-se a ponto de esconder
até os sapatos, e as pessoas, no máximo, arregaçavam um pouco o vestido para
não se sujarem na lama da rua, nas poças d'água. O máximo que se podia ver de
uma mulher era o bico do sapato.
Indo
para Belo Horizonte já rapazola, com essa imagem precária da mulher, e
encontrando ali um veículo muito útil para se recolher informação um pouco
maior, que era o bonde, onde as mulheres, para subir, tinham de, contra a
vontade, mostrar um pouco da perna, aquilo era uma delícia, pelo menos para pessoas
do interior, como eu. Já para os rapazes nascidos em Belo Horizonte, não seria
tanto assim.
Note-se
que eu não tinha cinema na infância. O cinema chegou precariamente, com sessões
no domingo à noite, quando não chovia, quando as estradas não estavam
encharcadas e o burrinho, levando a mala do correio, levava também os discos,
as latas dos filmes. Nós conhecíamos pouco da vida e conjecturávamos muito.
É
como um selvagem que vai à cidade e encontra todas essas máquinas, esses
recursos da civilização: fica espantado; a gente se espantava diante da perna,
já não direi da coxa, que essa não se via de maneira nenhuma. A palavra coxa,
eu a considerava altamente erótica.
A
gente se consolava com a perna e notadamente com a barriga da perna, talvez
também porque essa expressão - barriga da perna - já fazia suspeitar alguma
coisa mais além. Eram suspeitas, indícios, conjecturas, que formulávamos em
torno do corpo feminino.
Daí
o fato de Mário de Andrade ter identificado na minha poesia aquilo de que eu
não me tinha dado conta: a quantidade enorme de pernas que passam - o bonde
passava cheio de corpos, mas eu só via pernas na hora de subir. Freud explica
isso, não é?...
Segundo
Freud, "o amor sexual proporciona as mais fortes sensações de prazer,
constituindo-se no protótipo do anseio de felicidade em geral; todavia, uma
pessoa nunca está menos protegida contra o sofrimento do que quando ama".
Você mesmo já escreveu, no poema "Elegia", "amor, fonte de
eterno frio". Assim sendo, por que queremos todos o amor, a despeito de
tudo que possa nos causar?
Não
creio que, conscientemente, qualquer um de nós procure a tristeza e a dor. Mas
há de haver uma força oculta dentro de nós, que acaba paradoxalmente procurando
essas coisas. Não se procura isso conscientemente.
A
gente procura o amor como fonte de realização plena, evidentemente. Não creio
que alguém aspirasse a um amor puramente tranquilo, celestial, mesmo porque, na
prática, está demonstrado que é impossível.
Quais
as influências literárias que você foi recebendo desde que começou a fazer
poesia?
Olha,
essas influências são inúmeras, e não são simplesmente literárias, são de toda
natureza. O "Almanaque Bristol", da minha infância, foi uma
influência que eu senti profundamente. As farmácias antigas tinham um cheiro
especial, devido à manipulação de certas essências que exalavam um perfume
muito agradável.
Esse
cheiro vinha acompanhado dos almanaques que a gente ganhava; almanaques publicados
pelos laboratórios, a Bayer e o Elixir Capivarol faziam isso.
A
leitura daquilo - nos almanaques havia anedotas, acrósticos, enigmas, cartas
enigmáticas e versinhos também - foi das primeiras leituras que eu tive; em
seguida as revistas semanais do Rio -"Fon-Fon!" e "Careta"-
que eu pedia emprestado. Já atingindo assim uns dez, doze anos, eu tinha uma
pequena mesada; então eu mesmo adquiria as revistas com grande orgulho;
colecionava aquilo, guardava com um ciúme louco, ninguém podia pôr as mãos em
cima delas. Foram essas as minhas influências literárias.
As
revistas já me traziam Olavo Bilac, além dos versos de outros poetas, e aí eu
já me sentia mais familiarizado com a literatura. Depois vieram os livros que
meu irmão mandava para mim. Ele era estudante de direito no Rio, lia os livros
de Fialho d'Almeida, Flaubert (em português), Antônio Patrício, poeta português
pouco conhecido, de que eu gosto até hoje, Antônio Nobre, outro poeta muito
estimado, Eça de Queirós, espécie de autor universal para o Brasil. Não havia
brasileiro que se prezasse que não apreciasse Eça de Queirós. As pessoas
imitavam-no, usavam suas expressões. Era uma grande influência.
Tive
essas influências todas; depois, através de meu irmão, fui adquirindo um
conhecimento maior dos simbolistas franceses, Verlaine, Mallarmé, Rimbaud etc.
E me apaixonei por eles. No Brasil, esses poetas refletiam-se em Álvaro
Moreyra, em Eduardo Guimarães, do Rio Grande do Sul, e no nosso velho Alphonsus
[de Guimaraens], espécie de ídolo da mocidade do meu tempo.
Através
dos modernistas, atravessando os modernistas, cheguei a Manuel Bandeira e Mário
de Andrade, que foram, realmente, os dois encontros literários mais importantes
da minha vida. A esses devo praticamente tudo, porque foi o gosto da poesia de
Bandeira, a delicadeza, o mistério dessa poesia que me encantaram, como foi
também a teorização, a abertura de novos pontos de vista críticos que Mário me
sugeriu.
A
poesia do Mário nunca me influenciou. A de Bandeira, sim. Essas foram as
grandes influências literárias da minha vida e influências humanas.
E
Machado, como é que ficou?
Acho
que houve uma intenção inconsciente minha de eliminar o Machado, porque, de tal
maneira ele me persegue que quando estou aqui conversando, de repente há uma
interrupção qualquer, por motivo de um café ou coisa que o valha, então eu
mergulho na estante, pego Machado e abro em qualquer página. É uma fatalidade
na minha vida; talvez seja por isso que eu gostaria de esquecê-lo.
Se
o "sadismo é uma característica do homem, adquirida em período tardio do
seu desenvolvimento" (Wilhelm Reich, "A Função do Orgasmo", pág.
140) e considerando "que o homem se distingue do animal não por uma
sexualidade menor, porém mais intensiva - disposição permanente para relações
sexuais" (Wilhelm Reich, "A Revolução Sexual, pág. 164), como você
vê, Carlos, o fato de que o cruzamento entre macho e fêmea ocorra na Natureza
sem maiores incidentes, enquanto o intercurso sexual entre homem e mulher tem
mais de desencontro que encontro, haja vista a frequência, por exemplo, dos
chamados crimes passionais?
Não
concordo com o nosso amigo Reich quanto a essa afirmação de que "o sadismo
é uma característica do homem adquirida em período tardio do seu
desenvolvimento". O sadismo é uma característica infantil, por excelência;
posso dizer isso com experiência própria. Num poema de "Boitempo",
falo de um gato em cujo rabo coloquei um carretel a duras penas, segurando com
muita força para impedir que me mordesse. O rabo ficou inflamado a ponto de que
tirar dele o carretel, foi um problema. Meu irmão é que tirou, eu não tinha
condições para isso.
Pratiquei
esse ato por pura maldade, não tem outra explicação. Foi um ato perverso, sem
sentido – coisa que os animais não fazem. O animal ataca e mata obedecendo à
necessidade de alimentação, de sobrevivência, coisa que o homem não tem porque
pode subsistir sem eliminar seu parceiro.
Acho
que o cruzamento entre macho e fêmea ocorre realmente sem maiores incidentes,
mas, na realidade, o animal irracional é aquele que tem a sabedoria, o
privilégio de viver a sua vida praticando sexualidade, sem remorso, sem
sentimento de culpa, com naturalidade e na época adequada. Ele está programado;
nós não estamos ou desobedecemos à programação da natureza.
Carlos,
você já me disse que nunca precisou do divã do analista. Em que medida a poesia
concorreu para isso?
Realmente,
mesmo que eu sentisse necessidade do divã, seria impossível, porque não havia o
divã no Brasil. Os divãs existiam, mas divãs comuns. Ninguém se lembraria de
deitar neles e dizer coisas da sua infância, coisas tenebrosas, para um
especialista.
A
figura do analista veio muito depois da minha infância e da minha mocidade. E
já agora, a essa altura da vida, acho que nenhum analista me receberia, nem
haveria mais necessidade.
De
fato, a poesia exerceu sobre mim um papel bastante salubre ou tonificante,
procurando, sem que eu percebesse, clarear os aspectos sombrios da minha mente.
Tive
uma infância bastante confusa e triste, e uma mocidade tumultuada. Sentia
necessidade de expandir-me sem que soubesse como. A conversa com os amigos não
bastava porque, talvez, eles não entendessem bem os meus problemas.
Então
comecei a fazer versos sem saber fazê-los, por um movimento automático. Foi uma
tendência natural do espírito e senti que, pouco a pouco, ia aliviando a carga
de problemas que eu tinha. Como se vomitasse. Nesse sentido, a poesia foi, para
mim, um divã.
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Fonte: Arquivos da Folha de São Paulo, para assinantes; edição do dia 08/07/2012 (Secção Ilustríssima).
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