quarta-feira, 29 de julho de 2015

Carlos Drummond: o amor natural e a distinção entre erotismo e pornografia

Os trechos aí abaixo são de uma longa e histórica entrevista daquele que José Saramago lamentou não ter sido agraciado com o Prêmio Nobel: o poeta brasileiro Carlos Drummond de Andrade. A entrevista foi realizada pela pesquisadora Maria Lúcia do Pazo, em função da elaboração da sua Tese de Doutorado, em Comunicação na UFRJ, tendo como foco os poemas eróticos de Drummond e uma relação com a lírica medieval. O dado peculiar é que, na época (princípio dos anos 1980), os referidos poemas não estavam publicados. Drummond tinha receios, por exemplo, de que erotismo fosse confundido com pornografia. Como sabemos, o grosso dos seus poemas eróticos só foram publicados após o seu falecimento, em O Amor Natural. Seguem os trechos da reveladora entrevista.

 

Você poderia dizer alguma coisa sobre a sua intenção de não publicá-los [os poemas de "O Amor Natural"] no momento, e a permissão que me deu, tão gentilmente, para que pudessem ser abordados em minha tese de doutorado sobre o erotismo na poesia de Carlos Drummond de Andrade?
Bem, a autorização e mesmo a sugestão que fiz de lhe mostrar esses poemas para serem aproveitados na sua tese, a meu ver, é uma coisa óbvia, porque se o objeto da tese é exatamente o erotismo na minha poesia, não havia nada mais representativo do que esse volume inédito, porque ele trata exclusivamente desse tema em suas muitas variações.
Já na minha "Obra Completa", publicada, o erotismo aparece aqui e ali, de uma maneira mais ou menos intensa ou declarada, mas não tem esse sentido assim de tema único que o "Amor Natural" possui. Não quis publicar até agora e hesito ainda em publicar - ou, antes, resolvi não publicar - pela circunstância de que o mundo foi invadido por uma onda de erotismo, logo depois convertida em pornografia, se é que a onda de pornografia não veio antes.
O fato é que hoje não se distingue mais o erotismo propriamente dito e a pornografia, que é uma deturpação da noção pura de erotismo. Se eu publicasse agora o livro, iria enfrentar, por assim dizer, um elenco bastante numeroso de livros em que a poesia chamada erótica não é mais do que poesia pornográfica, e às vezes nem isso, porque é uma poesia malfeita, sem nenhuma noção poética.
Já me advertiram que a demora em publicar vai importar talvez num futuro próximo, em que meus poemas já não ofereçam nenhuma curiosidade porque o tema já estará tão batido, já se esgotou tanto essa série de assuntos, e a educação sexual, de uma forma errada ou certa, se generalizou de tal modo -na escola, no rádio, na televisão e na casa de família - que o meu livro de poemas correrá o risco de constituir-se em livro de classe para jardim de infância...

O escorpião do poema "Signo" é o desejo, mas o escorpião do poema "Confissão" é o pecado. Durante muito tempo associou-se sexo e pecado; hoje, não mais. Por que nos culpamos tanto por termos outrora feito dele um pecado? O excessivo discurso sobre sexo de nossos dias não será um erro para corrigir outro?
Sem dúvida, porque sobretudo é um discurso muito confuso, muito enrolado. Com relação ao escorpião, devo dizer a você que o escorpião faz parte da minha vida, porque sou do signo de escorpião e essa palavra – escorpião - é terrível para os moradores do interior de Minas, onde cidades inteiras eram ameaçadas, invadidas por escorpiões. O escorpião é muito ligado à minha vida por essa razão, embora eu não acredite na importância dos signos do zodíaco -acho isso uma coisa mais literária ou mágica do que outra coisa, não é nada racional - o escorpião de que eu fugia no porão lá de casa, com medo de ser mordido por ele, era paradoxalmente um bicho que eu trazia dentro de mim, por ter nascido dentro desse signo, compreendeu?
Essa é a interpretação que eu dou. Já o poema "Confissão" -"Escorpião mordendo a alma, o pecado graúdo acrescido do outro de omiti-lo, aflora noite alta em avenidas úmidas de lágrimas, escorpião mordendo a alma da pequena cidade".
Aí, tanto quanto eu posso me lembrar, era associando a ideia do escorpião, do animalzinho perverso, maligno da nossa cidade, ao escorpião do pecado, à tortura, à angústia que a criança do interior, educada no princípio do século, sentia com a noção de pecado.
Você pode imaginar como nós sofríamos porque não tínhamos ainda bastante lucidez de espírito para julgar na época o que fosse ou não pecado. Se era pecado mastigar a hóstia no ato da comunhão, muito mais pecado seria praticar digamos, o onanismo, ou tentar ver o nu feminino, o que aliás era impraticável.
Mas essas coisas, essas tentações da idade, da infância e da adolescência, eram todas consideradas pecados graves. Era como se o sentimento desse pecado passasse a ser pecado realmente, porque nós o sentíamos como tal. Isso nos aferroava a alma como um escorpião.

Em Machado de Assis, a fixação pelos braços das mulheres é evidente; em sua poesia, pernas e coxas femininas se destacam. Isso começou em Belo Horizonte quando você era adolescente. Como foi?
Acho, Lúcia, que começou antes. Começou em Itabira, porque não havia a menor informação sobre o corpo feminino. Os vestidos alongavam-se a ponto de esconder até os sapatos, e as pessoas, no máximo, arregaçavam um pouco o vestido para não se sujarem na lama da rua, nas poças d'água. O máximo que se podia ver de uma mulher era o bico do sapato.
Indo para Belo Horizonte já rapazola, com essa imagem precária da mulher, e encontrando ali um veículo muito útil para se recolher informação um pouco maior, que era o bonde, onde as mulheres, para subir, tinham de, contra a vontade, mostrar um pouco da perna, aquilo era uma delícia, pelo menos para pessoas do interior, como eu. Já para os rapazes nascidos em Belo Horizonte, não seria tanto assim.
Note-se que eu não tinha cinema na infância. O cinema chegou precariamente, com sessões no domingo à noite, quando não chovia, quando as estradas não estavam encharcadas e o burrinho, levando a mala do correio, levava também os discos, as latas dos filmes. Nós conhecíamos pouco da vida e conjecturávamos muito.
É como um selvagem que vai à cidade e encontra todas essas máquinas, esses recursos da civilização: fica espantado; a gente se espantava diante da perna, já não direi da coxa, que essa não se via de maneira nenhuma. A palavra coxa, eu a considerava altamente erótica.
A gente se consolava com a perna e notadamente com a barriga da perna, talvez também porque essa expressão - barriga da perna - já fazia suspeitar alguma coisa mais além. Eram suspeitas, indícios, conjecturas, que formulávamos em torno do corpo feminino.
Daí o fato de Mário de Andrade ter identificado na minha poesia aquilo de que eu não me tinha dado conta: a quantidade enorme de pernas que passam - o bonde passava cheio de corpos, mas eu só via pernas na hora de subir. Freud explica isso, não é?...

Segundo Freud, "o amor sexual proporciona as mais fortes sensações de prazer, constituindo-se no protótipo do anseio de felicidade em geral; todavia, uma pessoa nunca está menos protegida contra o sofrimento do que quando ama". Você mesmo já escreveu, no poema "Elegia", "amor, fonte de eterno frio". Assim sendo, por que queremos todos o amor, a despeito de tudo que possa nos causar?
Não creio que, conscientemente, qualquer um de nós procure a tristeza e a dor. Mas há de haver uma força oculta dentro de nós, que acaba paradoxalmente procurando essas coisas. Não se procura isso conscientemente.
A gente procura o amor como fonte de realização plena, evidentemente. Não creio que alguém aspirasse a um amor puramente tranquilo, celestial, mesmo porque, na prática, está demonstrado que é impossível.

Quais as influências literárias que você foi recebendo desde que começou a fazer poesia?
Olha, essas influências são inúmeras, e não são simplesmente literárias, são de toda natureza. O "Almanaque Bristol", da minha infância, foi uma influência que eu senti profundamente. As farmácias antigas tinham um cheiro especial, devido à manipulação de certas essências que exalavam um perfume muito agradável.
Esse cheiro vinha acompanhado dos almanaques que a gente ganhava; almanaques publicados pelos laboratórios, a Bayer e o Elixir Capivarol faziam isso.
A leitura daquilo - nos almanaques havia anedotas, acrósticos, enigmas, cartas enigmáticas e versinhos também - foi das primeiras leituras que eu tive; em seguida as revistas semanais do Rio -"Fon-Fon!" e "Careta"- que eu pedia emprestado. Já atingindo assim uns dez, doze anos, eu tinha uma pequena mesada; então eu mesmo adquiria as revistas com grande orgulho; colecionava aquilo, guardava com um ciúme louco, ninguém podia pôr as mãos em cima delas. Foram essas as minhas influências literárias.
As revistas já me traziam Olavo Bilac, além dos versos de outros poetas, e aí eu já me sentia mais familiarizado com a literatura. Depois vieram os livros que meu irmão mandava para mim. Ele era estudante de direito no Rio, lia os livros de Fialho d'Almeida, Flaubert (em português), Antônio Patrício, poeta português pouco conhecido, de que eu gosto até hoje, Antônio Nobre, outro poeta muito estimado, Eça de Queirós, espécie de autor universal para o Brasil. Não havia brasileiro que se prezasse que não apreciasse Eça de Queirós. As pessoas imitavam-no, usavam suas expressões. Era uma grande influência.
Tive essas influências todas; depois, através de meu irmão, fui adquirindo um conhecimento maior dos simbolistas franceses, Verlaine, Mallarmé, Rimbaud etc. E me apaixonei por eles. No Brasil, esses poetas refletiam-se em Álvaro Moreyra, em Eduardo Guimarães, do Rio Grande do Sul, e no nosso velho Alphonsus [de Guimaraens], espécie de ídolo da mocidade do meu tempo.
Através dos modernistas, atravessando os modernistas, cheguei a Manuel Bandeira e Mário de Andrade, que foram, realmente, os dois encontros literários mais importantes da minha vida. A esses devo praticamente tudo, porque foi o gosto da poesia de Bandeira, a delicadeza, o mistério dessa poesia que me encantaram, como foi também a teorização, a abertura de novos pontos de vista críticos que Mário me sugeriu.
A poesia do Mário nunca me influenciou. A de Bandeira, sim. Essas foram as grandes influências literárias da minha vida e influências humanas.

E Machado, como é que ficou?
Acho que houve uma intenção inconsciente minha de eliminar o Machado, porque, de tal maneira ele me persegue que quando estou aqui conversando, de repente há uma interrupção qualquer, por motivo de um café ou coisa que o valha, então eu mergulho na estante, pego Machado e abro em qualquer página. É uma fatalidade na minha vida; talvez seja por isso que eu gostaria de esquecê-lo.

Se o "sadismo é uma característica do homem, adquirida em período tardio do seu desenvolvimento" (Wilhelm Reich, "A Função do Orgasmo", pág. 140) e considerando "que o homem se distingue do animal não por uma sexualidade menor, porém mais intensiva - disposição permanente para relações sexuais" (Wilhelm Reich, "A Revolução Sexual, pág. 164), como você vê, Carlos, o fato de que o cruzamento entre macho e fêmea ocorra na Natureza sem maiores incidentes, enquanto o intercurso sexual entre homem e mulher tem mais de desencontro que encontro, haja vista a frequência, por exemplo, dos chamados crimes passionais?
Não concordo com o nosso amigo Reich quanto a essa afirmação de que "o sadismo é uma característica do homem adquirida em período tardio do seu desenvolvimento". O sadismo é uma característica infantil, por excelência; posso dizer isso com experiência própria. Num poema de "Boitempo", falo de um gato em cujo rabo coloquei um carretel a duras penas, segurando com muita força para impedir que me mordesse. O rabo ficou inflamado a ponto de que tirar dele o carretel, foi um problema. Meu irmão é que tirou, eu não tinha condições para isso.
Pratiquei esse ato por pura maldade, não tem outra explicação. Foi um ato perverso, sem sentido – coisa que os animais não fazem. O animal ataca e mata obedecendo à necessidade de alimentação, de sobrevivência, coisa que o homem não tem porque pode subsistir sem eliminar seu parceiro.
Acho que o cruzamento entre macho e fêmea ocorre realmente sem maiores incidentes, mas, na realidade, o animal irracional é aquele que tem a sabedoria, o privilégio de viver a sua vida praticando sexualidade, sem remorso, sem sentimento de culpa, com naturalidade e na época adequada. Ele está programado; nós não estamos ou desobedecemos à programação da natureza.

Carlos, você já me disse que nunca precisou do divã do analista. Em que medida a poesia concorreu para isso?
Realmente, mesmo que eu sentisse necessidade do divã, seria impossível, porque não havia o divã no Brasil. Os divãs existiam, mas divãs comuns. Ninguém se lembraria de deitar neles e dizer coisas da sua infância, coisas tenebrosas, para um especialista.
A figura do analista veio muito depois da minha infância e da minha mocidade. E já agora, a essa altura da vida, acho que nenhum analista me receberia, nem haveria mais necessidade.
De fato, a poesia exerceu sobre mim um papel bastante salubre ou tonificante, procurando, sem que eu percebesse, clarear os aspectos sombrios da minha mente.
Tive uma infância bastante confusa e triste, e uma mocidade tumultuada. Sentia necessidade de expandir-me sem que soubesse como. A conversa com os amigos não bastava porque, talvez, eles não entendessem bem os meus problemas.
Então comecei a fazer versos sem saber fazê-los, por um movimento automático. Foi uma tendência natural do espírito e senti que, pouco a pouco, ia aliviando a carga de problemas que eu tinha. Como se vomitasse. Nesse sentido, a poesia foi, para mim, um divã.
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Fonte: Arquivos da Folha de São Paulo, para assinantes; edição do dia 08/07/2012 (Secção Ilustríssima). 


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