O ano era 2008, e havia no governo brasileiro e em determinados corredores universitários incondicionalmente governistas (chapas-brancas, sem capacidade de análise) um ambiente de grande entusiamo: agências internacionais de risco, com a Standard & Poor's à cabeça, repisavam a concessão do investment grade, o chamado grau de investimento, ao Brasil. Nem de longe perfilei nesse ufanismo. Mas ele era tanto, que, por vezes, na UFPE, onde eu lecionava na altura, ficava difícil até mesmo ter um janar de lazer com alguns colegas. Nem o grego Dionísio dava jeito. Evidentemente que, nem no longo prazo, mas no curto mesmo, os 'burros dariam n'água'. Uma herança maldita se anunciava, e para perceber isso bastava passar a vista com mais atenção na história econômica. Pois bem, ela, a herança maldita, chegou. E agora, com o Brasil em crise, as autoridades econômicas fazem todos tipos de contorcimentos, aumentando taxas de juros, por exemplo, para manter o capital de curto prazo no país. Vale a pena ler o artigo aí abaixo, de César Benjamin, publicado naquele ano, e que alertava para o que estava por vir. Quanto mais não seja, a leitura serve para contribuir no aprendizado das lições da história, como esfera da análise racional. E para tentar fazer com que os ufanistas consigam enxergar o 'princípio da realidade' e abandonem o 'mundo paralelo' em que estão, ainda hoje, a viver, disparando de redes sociais informes baseados em notícias/suposições de há quatro/cinco anos, como as que o ex-Presidente Lula ganhará o Prêmio Nobel da Paz ou tornar-se-á Secretário Geral das Nações Unidas (ONU). Em verdade, a situação do ex-Presidente, neste momento, com os desdobramentos da Operação Lava Jato, está mais para aquela da 'Espada de Dâmocles'. Que, no caso, se encontra em Curitiba.
A FUTURA HERANÇA MALDITA
(Publicado na Folha de São Paulo em 03/05/2008)
Por César Benjamin
A economia brasileira não fez outra coisa, nas últimas décadas,
a não ser adaptar-se aos ciclos do capital financeiro
internacional. Na década de 1970, absorvemos, sob a forma de dívida, uma fração do excesso de liquidez provocado pelo acúmulo
dos petrodólares. Na década de
1980, com o governo dos Estados Unidos enxugando essa liquidez, fomos convocados a remeter
ao exterior um múltiplo do que havíamos
recebido; iniciamos
um longo período de crise. Na década de 1990, quando o sistema
financeiro retornou a uma posição
emprestadora, fomos chamados a renegociar
a “dívida velha”, para voltar a receber recursos novamente disponíveis. Graças a eles, durante vários anos, sustentamos déficits
em transações correntes,
o verdadeiro lastro do Plano Real. Uma nova crise cambial, alguns anos depois, mostrou como tudo era frágil.O problema estrutural da economia brasileira é sua condição
de “economia reflexa
”, que apenas
se adapta a ciclos externos
e, por isso, não constitui um projeto próprio
de desenvolvimento. A expressão
não é minha, mas de Eugênio Gudin, cunhada na década de 1950.
Aprofundamos essa condição ao nos inserir no processo de globalização, principalmente, pelos fluxos financeiros, ao contrário das
economias asiáticas, que privilegiaram a inserção pela produção e o comércio.
Elas sempre selecionaram os investimentos que consideram desejáveis, aqueles que fortalecem as economias locais, e recusaram
os indesejáveis, o endividamento
irracional e predador, que prepara desequilíbrios e crises. Nós nos atrelamos a capitais que mantêm conosco
vínculos tênues, ligados a oportunidades de realizar bons negócios no
curto prazo. Como o espaço de manobra desses capitais
ultrapassa amplamente o espaço da sociedade nacional,
perdemos a capacidade de controlar o nosso
processo de desenvolvimento. A abertura financeira, iniciada por Collor e concluída
por Lula, entregou a eles o nosso destino.A primeira
conseqüência é a fraca capacidade de
nossa sociedade disciplinar o impulso
de acumulação de capital, compatibilizando-o com
o equacionamento da questão social e o fortalecimento da soberania
nacional, em bases economicamente sustentáveis. A segunda conseqüência é o aprofundamento da tendência a realizar ajustes
passivos aos ciclos
internacionais. A conjuntura favorável dos últimos anos – um gigantesco “choque externo positivo” – tem servido para
legitimar essa opção.A coligação rentista,
que nos governa, está em festa: para a Standard & Poor’s, somo s investment grade. Mais capital especulativo ficará disponível para operações de arbitragem. As empresas poderão
tomar mais recursos
lá fora, a juros reais negativos, para aplicá-los nos papéis mais rentáveis do mundo,
remunerados pelo Estado brasileiro.
Não importa em quanto aumentará o nosso passivo
externo líquido – imenso, porém discreto, pois não contabilizado na forma de uma
dívida tradicional. Não importa que, com uma nova rodada de apreciação cambial,
aprofunde-se a tendência
ao desequilíbrio em conta-corrente
e se consolide uma economia baseada
em indústrias maquiadoras e na produção de commodities, as
atividades mais adaptadas a esse ambiente. Não importa saber que uma reversão
do ciclo internacional nos imporá altíssimo
preço, como já impôs no passado. Essas são questões do futuro, um tempo em que os especuladores de hoje não estarão mais aqui.
Recebemos
de presente uma maçã envenenada. Uma herança maldita está a caminho.
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