Je vous vens la passerose/Belle, dire ne vous ose/Si l'apercevez tant sans dire. Nas palavras da filósofa-poetisa Christine de Pizan, um ponto da questão sobre a liberdade: 'Eu te vendo malva-rosa/Bela chamar-te não ouso/Se tanto o percebes e nada dizes'. A vida sob o 'condicionamento' das normas (a estática social, dir-se-á, sociologicamente falando) ou a ação. Ou a liberdade que foge. Anselmo Borges tratou do tema no texto aí abaixo.
O Terapeuta, do surrealista René Magritte |
Por Anselmo Borges
Somos livres?
Esta é a pergunta decisiva. De facto, se não somos
livres, o que se chama dignidade humana pode ser uma convenção, mas não tem
fundamento real.
Mas quem nunca foi assaltado pela pergunta: a minha vida
teria podido ser diferente? Para sabê-lo cientificamente, seria preciso o que
não é possível: repetir a vida exactamente nas mesmas circunstâncias. Só assim
se verificaria se as "escolhas" se repetiam nos mesmos termos ou não.
Não há dúvida de que a liberdade humana é condicionada. Mas
ela existe ou é uma ilusão? Não vêm agora neurocientistas dizer que, mediante
dados da tomografia de emissão de positrões e da ressonância magnética nuclear
funcional, se mostra que afinal as nossas decisões são dirigidas por processos
neuronais inconscientes?
De qualquer modo, em 2004, destacados neurocientistas também
tornaram público um "Manifesto sobre o presente e o futuro da investigação
do cérebro" - cito Hans Küng, no seu Der Anfang aller Dinge (O princípio
de todas as coisas) -, revelando-se prudentes no que toca às "grandes
perguntas": "Como surgem a consciência e a vivência do eu? Como se
entrelaçam a acção racional e a acção emocional? Que valor se deve conceder à
ideia de 'livre arbítrio'? Colocar já hoje as grandes perguntas das
neurociências é legítimo, mas pensar que terão resposta nos próximos dez anos é
muito pouco realista." É preciso continuar as investigações, no sentido de
perceber o nexo entre a mente e o cérebro. "Mas nenhum progresso terminará
num triunfo do reducionismo neuronal. Mesmo que alguma vez chegássemos a
explicar a totalidade dos processos neuronais subjacentes à simpatia que o ser
humano pode sentir pelos seus congéneres, ao seu enamoramento e à sua
responsabilidade moral, a autonomia da 'perspectiva interna' permaneceria
intacta. Pois também uma fuga de Bach não perde nada do seu fascínio, quando se
compreende com exactidão como está construída."
A liberdade não é desvinculável da experiência subjectiva, da
"perspectiva interna". Essa experiência é transcendental, no sentido
de que se afirma até na sua negação. De facto, se tudo se movesse no quadro do
determinismo total, como surgiria o debate sobre a liberdade?
Essa experiência coloca-se concretamente no campo da moral e
da responsabilidade. Neste contexto, há um célebre exercício mental de Kant na Crítica da Razão Prática, que é
elucidativo e obriga a pensar. Suponhamos que alguém, sob pena de morte
imediata, se vê confrontado com a ordem de levantar um falso testemunho contra
uma pessoa que sabe ser inocente. Nessas circunstâncias e por muito grande que
seja o seu amor à vida, pensará que é possível resistir. "Talvez não se
atreva a assegurar que assim faria, no caso de isso realmente acontecer; mas
não terá outro remédio senão aceitar sem hesitações que tem essa
possibilidade." Existem as duas possibilidades: resistir ou não.
"Julga, portanto, que é capaz de fazer algo, pois é consciente de que deve
moralmente fazê-lo e, desse modo, descobre em si a liberdade que, sem a lei
moral, lhe teria passado despercebida."
O que confunde frequentemente o debate é a falta de
esclarecimento quanto ao que é realmente a liberdade. Ela é a não submissão à
necessidade coactiva, externa e interna, mas não pode, por outro lado, ser
confundida com a arbitrariedade e a pura espontaneidade - não implica a
espontaneidade a necessidade?
A liberdade radica na experiência originária do Homem como
dom para si mesmo.
Paradoxalmente, é na abertura a tudo, portanto, no horizonte
da totalidade do ser, que ele vem a si mesmo como eu único e senhor de si.
Então, agir livremente é a capacidade de erguer-se acima dos próprios
interesses, para pôr-se no lugar do outro e agir racionalmente.
É preciso distinguir entre causas e razões. Quando se age sob
uma causalidade constringente, não há liberdade. Ser livre é propor-se ideais,
deliberar e agir segundo razões e argumentos, impondo limites aos impulsos [irrefletidos], o que mostra que o ser humano pode ser senhor dos seus actos e, assim,
responsável, isto é, responder por eles.
-------------------
Fonte: http://www.dn.pt/
Nenhum comentário:
Postar um comentário