Por
Vladimir Safatle
(Departamento de Filosofia da USP)
Dentro da narrativa
hegemônica construída para explicar a crise brasileira encontra-se a tentativa
de afirmar que o grande vilão é o Estado. Conta-se, em todos os meandros dos
cadernos de economia dos jornais e na boca de seus analistas, que o primeiro governo Dilma teria "feições estatistas e intervencionistas" responsáveis
pelo descalabro final das contas públicas e orçamentos com previsão de déficit.
A crise que hoje vivemos seria assim a prova do fracasso gerencial do
capitalismo de Estado brasileiro, não restando outra coisa do que aceitar, de
vez, a boa e sã cartilha do liberalismo.
Há,
no entanto, várias ilusões de ótica neste raciocínio.
Primeiro,
chamar o governo Dilma de estatista e intervencionista é dificilmente
defensável. Até onde consta nos anais destes últimos anos, seu governo
privatizou (com o estratagema da "privatização branca" das
concessões) aeroportos, rodovias, portos e ferrovias. Ele ainda abriu a
exploração do pré-sal para empresas estrangeiras, entregando 60% da maior
reserva de petróleo da camada salina para quatro empresas estrangeiras e
contrariando, com isto (para variar), promessas de campanha.
Acrescente
ao bolo uma política de desoneração e redução de impostos que produziu uma
renúncia fiscal de R$ 327,16 bilhões entre 2011 e 2015. Gostaria de saber em
que lugar do mundo um conjunto de políticas desta natureza seria chamado de
estatista e intervencionista.
Na
verdade, este debate procura esconder o que realmente entrou em crise
atualmente.
A
dicotomia liberalismo X estatismo que parece comandar boa parte do nosso debate
é uma falácia. O capitalismo nunca foi liberal. Ele simplesmente oscila em sua
história, respondendo a pressões de conflitos sociais e da força de interesses
setoriais sobre como regular e mediar demandas.
Não
lembro de nenhum destes economistas com Adam Smith no coração reclamar de o
governo norte-americano, em plena crise de 2008, usar dinheiro público para
salvar bancos privados como o Citibank. Também não consta que algum deles tenha
reclamado da Comunidade Europeia despejar dinheiro público em seu combalido
sistema financeiro, permitindo que tal dinheiro fosse usado até para pagar
"stock options" de executivos cujo maior feito de suas capacidades
gerenciais fora quebrar bancos. O que não é de se estranhar, já que a questão
liberal nunca foi "como diminuir o Estado", mas "como privatizar
o Estado, colocando-o a serviço dos interesses dos empresariados nacionais ou
da classe de financistas".
Nós
já vimos isto ocorrer milhares de vezes em terras brasileiras. Basta lembrar
como o "liberal" governo FHC usou dinheiro do contribuinte para
salvar bancos falidos através do Proer. Ou, se quisermos ser mais estruturais,
basta se perguntar sobre a origem da dívida pública brasileira, cuja parte
substancial é resultado da transformação de dívidas privadas de empresas e
bancos em dívidas públicas.
Quer
dizer, no capitalismo, o Estado sempre intervém. A única questão real é:
"A favor de quem?".
Neste
sentido, mais honesto seria lembrar que o modelo em crise atualmente no Brasil
é outro.
O
que entrou em crise foi a crença de ser possível "gerenciar" o
capitalismo brasileiro com ajustes pontuais que permitiriam recuperar um modelo
de "pacto no interior do Estado" entre empresários, sistema
financeiro e sindicatos. Modelo cujas raízes encontram-se no sistema de
equilíbrio de moldes getulistas.
Se a
bomba explodiu na mão da esquerda nacional é por seus setores hegemônicos terem
acreditado que era seu destino ressuscitar tal modelo, com direito até a foto
com mão suja de petróleo em poço da Petrobras. Melhor teria sido escapar da
falsa dicotomia entre capitalismo estatista e capitalismo liberal.
Nestes
últimos meses, o Banco Itaú anunciou o maior lucro líquido na sua história
entre abril e junho, a saber: R$ 5,9 bilhões só em um trimestre. Cifra
praticamente igual ao seu lucro do terceiro trimestre. O Bradesco teve R$ 4,12
bilhões de lucro líquido no terceiro trimestre.
Quem
quiser entender a crise brasileira deveria se perguntar como um país com
economia em contração pode ter lucros bancários tão exorbitantes.
Longe
de um contradição, temos atualmente uma relação de causalidade necessária. Pois
não é difícil perceber quem realmente comanda o Estado.
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Fonte: Folha de São Paulo, versão para assinantes, edição do dia 06/10/2015. Título original: 'O que realmente entrou em crise?'
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