segunda-feira, 9 de novembro de 2015

Este meu fado, triste e alegre fado


Por Catarina Vasconcelos

Cresci a ouvir fado, no velho rádio preto do meu avô. Um rádio que, já no seu final de vida, só funcionava à base de pancadinhas de amor, dadas a jeito até que de lá começasse a ecoar a voz da senhora dona Amália (ou então o relato do futebol clube do porto nas tardes domingueiras, havia tempo para tudo). Cresci a ouvir a minha avó cantar o “Estranha forma de vida”. Lembro-me de me sentir profundamente triste, mesmo sem saber, ao certo, o que dizia o poema ou o que quereria dizer a minha avó ao cantá-lo. Também me lembro de, com seis ou sete anos, ter feito birra numa das festas da paróquia por não me terem deixado imitar a Dulce Pontes a cantar a “Canção do Mar”. Saí disparada de lá e não mais voltei a querer saber de festa alguma. Até hoje.
O fado colou-se-me à pele mesmo antes de eu lhe conhecer o sentido. Apenas sentia tristeza, mesmo sem saber o que era, efectivamente, a tristeza. Apenas achava bonito o tom arrastado, quase chorado, das guitarras, e a voz da senhora dona Amália que preenchia a sala toda, a casa toda, a minha vida toda. Sim, eu sei que nenhuma criança ouve fado. Ou gosta de fado. Eu ouvia. E gostava. E ainda oiço. Muitas vezes, quase sempre. E gosto ainda mais.
O fado faz-me sentir o que outras músicas não fazem. A beleza dos poemas, as entranhas de cada verso. Não fosse eu uma amante de poesia. Encontro sempre no fado um sentido. Um reflexo. Uma memória. Encontro no fado o meu próprio fado lamentado, arrastado, poucas vezes alegre mas feliz assim. Encontro no fado serenidade, certeza, paixão. Como se estivesse sempre em casa quando o oiço, mesmo estando, por vezes, tão longe. Como se o fado me indicasse o caminho para dentro de mim.
Há quem defina o fado, quem lhe encontre trajeitos, quem lhe estabeleça correntes de pensamento. Há quem não ache de bom tom ouvir fado, como se isso fosse sinónimo de ideologias ou crenças. Para mim o fado é como é. Simples. Sinónimo de saudade, essa saudade tão nossa, essa saudade que não tem tradução, que não se escreve em mais nenhuma língua. Como o fado, que é nosso. Mas também do mundo, de todos aqueles que abrem o coração e o deixam entrar. Simples assim.
O fado continua na minha vida. E, por certo, continuará. Será um compromisso até que a morte nos separe. Não me atrevo a cantá-lo, pelo menos, perante os outros. A voz não mo permite de tão esganiçada que é. Mas, no recanto do meu aconchego, nas noites frias de Inverno ou nos passeios solitários pelas estantes que acomodam os meus livros, lá me atrevo a cantar, e a sentir, um ou dois versos. E faz-me bem.
Hoje em dia, há todo um novo rol de fadistas que trouxeram uma lufada de ar fresco ao fado. Contam-no diferente, mas igual. Com mais alegria, mas a mesma saudade. Com mais desprendimento, mas o mesmo amor. Porque o fado mantém-se igual na sua essência. Continua agarrado às cordas da guitarra, também ela portuguesa. Já não se veste só de preto mas sim de cor e vaidade, continuando verdadeiro na voz de quem o canta. Porque o fado é assim. Vem de dentro. Só faz sentido se vier de dentro, sentido, arrancado à alma, embargando o olhar. Só faz sentido se assim for.
A senhora dona Amália contava-o como mais ninguém. Havia ali qualquer coisa que o tornava maior, mais verdadeiro, mais fado. Depois dela, poucos se aproximaram dessa quase perfeição. Nos dias que correm, tenho em fadistas como Gisela João e Mariza grandes referências. Duas vozes diferentes. O mesmo amor e a mesma entrega, fazendo do fado o seu fado e levando-o além fronteiras. E que bem que o fazem. Deveríamos agradecer-lhes todos os dias. Pela parte que me toca, digo obrigado.
Muito acham, certamente, que tenho uma visão infantil sobre o fado (e não só). Porque pouco ou nada percebo de música ou de oitavas ou tenores. Porque me limito a sentir com o coração. Porque desde pequena, pequenina, envolvi a minha vida em poemas cantados e fiz disso modo de viver. E amar assim o fado, desta forma descomplicada e simples, basta-me para ser feliz.
Assim, continuarei a ouvir fado. Todos os dias ou sempre que sinta vontade. Continuarei a sentar-me no meu sofá preferido, com uma chávena de chá, enquanto tento encontrar sentido para a minha estranha forma de vida, inspirada nesse fado que faz parte do meu fado, este fado nem sempre alegre, nem sempre triste, mas que é meu, tão meu.
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Fonte: http://obviousmag.org/


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