Por Catarina
Vasconcelos
Cresci a ouvir fado, no velho rádio preto do meu
avô. Um rádio que, já no seu final de vida, só funcionava à base de pancadinhas
de amor, dadas a jeito até que de lá começasse a ecoar a voz da senhora dona
Amália (ou então o relato do futebol clube do porto nas tardes domingueiras,
havia tempo para tudo). Cresci a ouvir a minha avó cantar o “Estranha forma de
vida”. Lembro-me de me sentir profundamente triste, mesmo sem saber, ao certo,
o que dizia o poema ou o que quereria dizer a minha avó ao cantá-lo. Também me
lembro de, com seis ou sete anos, ter feito birra numa das festas da paróquia
por não me terem deixado imitar a Dulce Pontes a cantar a “Canção do Mar”. Saí
disparada de lá e não mais voltei a querer saber de festa alguma. Até hoje.
O fado colou-se-me à pele mesmo antes de eu lhe
conhecer o sentido. Apenas sentia tristeza, mesmo sem saber o que era,
efectivamente, a tristeza. Apenas achava bonito o tom arrastado, quase chorado,
das guitarras, e a voz da senhora dona Amália que preenchia a sala toda, a casa
toda, a minha vida toda. Sim, eu sei que nenhuma criança ouve fado. Ou gosta de
fado. Eu ouvia. E gostava. E ainda oiço. Muitas vezes, quase sempre. E gosto
ainda mais.
O fado faz-me sentir o que outras músicas não
fazem. A beleza dos poemas, as entranhas de cada verso. Não fosse eu uma amante
de poesia. Encontro sempre no fado um sentido. Um reflexo. Uma memória.
Encontro no fado o meu próprio fado lamentado, arrastado, poucas vezes alegre
mas feliz assim. Encontro no fado serenidade, certeza, paixão. Como se
estivesse sempre em casa quando o oiço, mesmo estando, por vezes, tão longe.
Como se o fado me indicasse o caminho para dentro de mim.
Há quem defina o fado, quem lhe encontre trajeitos,
quem lhe estabeleça correntes de pensamento. Há quem não ache de bom tom ouvir
fado, como se isso fosse sinónimo de ideologias ou crenças. Para mim o fado é
como é. Simples. Sinónimo de saudade, essa saudade tão nossa, essa saudade que
não tem tradução, que não se escreve em mais nenhuma língua. Como o fado, que é
nosso. Mas também do mundo, de todos aqueles que abrem o coração e o deixam
entrar. Simples assim.
O fado continua na minha vida. E, por certo,
continuará. Será um compromisso até que a morte nos separe. Não me atrevo a
cantá-lo, pelo menos, perante os outros. A voz não mo permite de tão esganiçada
que é. Mas, no recanto do meu aconchego, nas noites frias de Inverno ou nos
passeios solitários pelas estantes que acomodam os meus livros, lá me atrevo a
cantar, e a sentir, um ou dois versos. E faz-me bem.
Hoje em dia, há todo um novo rol de fadistas que
trouxeram uma lufada de ar fresco ao fado. Contam-no diferente, mas igual. Com
mais alegria, mas a mesma saudade. Com mais desprendimento, mas o mesmo amor.
Porque o fado mantém-se igual na sua essência. Continua agarrado às cordas da
guitarra, também ela portuguesa. Já não se veste só de preto mas sim de cor e
vaidade, continuando verdadeiro na voz de quem o canta. Porque o fado é assim.
Vem de dentro. Só faz sentido se vier de dentro, sentido, arrancado à alma,
embargando o olhar. Só faz sentido se assim for.
A senhora dona Amália contava-o como mais ninguém.
Havia ali qualquer coisa que o tornava maior, mais verdadeiro, mais fado.
Depois dela, poucos se aproximaram dessa quase perfeição. Nos dias que correm,
tenho em fadistas como Gisela João e Mariza grandes referências. Duas vozes
diferentes. O mesmo amor e a mesma entrega, fazendo do fado o seu fado e
levando-o além fronteiras. E que bem que o fazem. Deveríamos agradecer-lhes
todos os dias. Pela parte que me toca, digo obrigado.
Muito acham, certamente, que tenho uma visão
infantil sobre o fado (e não só). Porque pouco ou nada percebo de música ou de
oitavas ou tenores. Porque me limito a sentir com o coração. Porque desde
pequena, pequenina, envolvi a minha vida em poemas cantados e fiz disso modo de
viver. E amar assim o fado, desta forma descomplicada e simples, basta-me para
ser feliz.
Assim, continuarei a ouvir fado. Todos os dias ou
sempre que sinta vontade. Continuarei a sentar-me no meu sofá preferido, com
uma chávena de chá, enquanto tento encontrar sentido para a minha estranha
forma de vida, inspirada nesse fado que faz parte do meu fado, este fado nem
sempre alegre, nem sempre triste, mas que é meu, tão meu.
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Fonte: http://obviousmag.org/
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