Por Anderson Henriques
Às
vezes, a extrema falta de intimidade nos obriga a falar qualquer coisa com
alguém que está por perto, na tentativa de quebrar aquele silêncio incômodo.
Estar em silêncio ao lado de alguém, sem que isso cause constrangimentos, é, a
meu ver, o auge da intimidade entre duas pessoas. Minha avó gostava de um
ditado que nos dizia sempre: "Se a palavra é de prata, o silêncio é de
ouro". Para mim, que às vezes sou inundado por uma necessidade quase vital
de manter-me em silêncio, como se houvesse um selo invisível cerrando minha
boca, esta visão a respeito do silêncio, da falta de necessidade de falar, é,
em alguns momentos ou situações, uma dádiva a que dou muitíssimo valor.
Minha
avó - de quem tanto falo - era uma pessoa simples, porém de uma sabedoria enorme.
Seu olhar sobre a vida, muito me inspirou e tem inspirado. Sempre que
conversávamos, eu lhe falava: "vó, um dia ainda escrevo sobre sua
vida". Ao que ela me respondia sempre: "quem se interessaria pela
vida, pelos pensamentos de uma velha?".
Por
todo o período em que minha avó esteve internada, após sofrer um infarto, nós
nos revezamos para acompanhá-la no hospital. Aquela noite seria a minha vez de
servir-lhe de acompanhante. Durante a visita, a fisioterapeuta veio fazer sua
avaliação e nos disse que era preciso que o acompanhante conversasse bastante
com ela, pois assim a vovó exercitaria a fala. No instante em que a doutora
falou isso, eu olhei pra minha avó e disse: “ihh vó, logo hoje que é a minha
vez. Não foi uma boa escolha. A senhora sabe que eu quase não falo nada”. Vovó
esboçou um sorriso e com imensa dificuldade balbuciou: “você sempre falou o
suficiente, meu neto”. Aquelas palavras me confortaram imensamente.
Minha
avó me conhecia como poucos. Nunca fui o tipo de pessoa efusiva, que demonstra
sentimentos com facilidade. Sempre fui, em verdade, muito contido. Causam-me
desconforto e estranhamento, até hoje, pessoas muito expansivas, exageradamente
íntimas, que necessitam a todo tempo de demonstrações de afeto, de declarações,
de palavras. Sempre achei isso muito cansativo. Diante de minha avó, no
entanto, eu sempre pude ser o mesmo menino calado, taciturno, curto de
palavras, que gostava de subir à sua casa para ficar ao seu lado, em silêncio.
Às vezes à beira da cama, vendo-a dobrar roupas recém-recolhidas do varal,
outras vezes, encostado na máquina de costura, brincando com botões,
carretilhas e retalhos, ou ainda, sentado à mesa, enquanto ela catava o feijão
ou descascava legumes.
Vovó
não insistia em arrancar palavras de minha boca, não me enchia de perguntas o
tempo todo. O silêncio entre nós
era confortável. Ela compreendia que eu gostava muito mais de ouvir
do que falar. “Meu filho, você não é de falar muito. Só observa.” Eu arqueava
as sobrancelhas e sorria. Em silêncio.
Essa
possibilidade de estar ao lado de alguém, podendo guardar meu silêncio, sempre
me agradou. Desde menino, sempre pensei muito. A mente fervilhava, elaborava,
analisava tudo, o tempo todo. Trago em
mim desde sempre esse desejo de silêncio. Pois somente quando me calo é que
ouço a voz que fala dentro de mim. A voz daquele que, mesmo sendo
eu, é um outro que mora em mim, que me conhece de fato, que me compreende e me
aconselha. Aquele que se alimenta do meu silêncio, da minha mudez, que toma
forma e habita meus pensamentos. Esse outro que surge no exato instante em que
silencio. Preciso ouvi-lo. Sinto sua falta. Conto com ele. É ele quem me dá o equilíbrio.
É esse outro "eu" quem também segura firme as palavras que desejam sair de minha boca, e realimenta meus pensamentos, fazendo-os girar dentro de mim, transformando-os, aparando arestas, lapidando. É ele quem grita dentro de mim, tentando me proteger dos meus rompantes. É o tal que me faz respirar fundo, engolir a seco, e começa a contar comigo: “um, dois, três...”, sempre que pressente que hei de ganhar mais permanecendo calado. É obvio que nem sempre estou plácido, sereno, o suficiente para ouvi-lo. Mas é justamente nestes momentos em que não o deixo agir que mais me arrependo.
É esse outro "eu" quem também segura firme as palavras que desejam sair de minha boca, e realimenta meus pensamentos, fazendo-os girar dentro de mim, transformando-os, aparando arestas, lapidando. É ele quem grita dentro de mim, tentando me proteger dos meus rompantes. É o tal que me faz respirar fundo, engolir a seco, e começa a contar comigo: “um, dois, três...”, sempre que pressente que hei de ganhar mais permanecendo calado. É obvio que nem sempre estou plácido, sereno, o suficiente para ouvi-lo. Mas é justamente nestes momentos em que não o deixo agir que mais me arrependo.
Falar
demais me faz mal. Gosto muito de ouvir os que respeitam as pausas, que pensam
antes de falar, os que permitem intervalos. Para mim, uma relação entre duas
pessoas – seja ela qual for – atinge a ‘perfeição’ quando o silêncio não causa
desconforto ou constrangimento. Ter
com quem falar é, às vezes, imprescindível, no entanto, ter alguém que consegue
se calar ao teu lado é vital. Pois é na escassez da palavra falada que os
pensamentos dialogam, as almas conversam.
Meus
amigos mais caros são exatamente os que compreendem o meu silêncio, o meu exílio voluntário. São os que têm
permissão para entrar na minha clausura, pois são capazes de caminhar ao meu
lado sem fazer barulho. Meus amigos
são aqueles que sabem ler os silêncios da minha cadência e não atravessam o meu
ritmo. Sabem fazer soar com exatidão tanto as notas como as pausas dos meus
compassos. Sabem ler a partitura da minha vida. Entendem a minha música.
Exposição de 'Not to be Reproduced', de René Magritte |
Vovó
e eu tínhamos esse refinamento. Ela conhecia o meu silêncio. Não precisava das
minhas palavras para saber o que eu estava sentindo. Eram os nossos olhos que
proseavam, trocavam confidências. O silêncio não incomodava. Naquela última
noite em que estivemos a sós, quando lhe faltavam forças para dizer palavras,
foi com o silêncio que nos despedimos. Foi porque aprendemos a silenciar que
conseguimos trocar aquelas últimas palavras, sem dizê-las.
Em
pé, ao lado da cama, enquanto eu olhava seu rosto, eu pensava no quanto eu
amava aquela senhora, no quanto sua vida, suas histórias, seus ensinamentos
tinham sido determinantes na construção da pessoa que eu havia me tornado. Ela
me olhava nos olhos, como se ouvisse meus pensamentos. De novo, o silêncio. De
minha parte, o silêncio habitual, das horas em que meus lábios cerram de tal
maneira que as palavras parecem não encontrar meios de escapar. O silêncio que
minha alma necessita pra falar dentro de mim. Dela, o silêncio resignado, da
impossibilidade física de falar.
Nós
ficamos um bom tempo, ali, de mãos dadas, olhando nos olhos um do outro.
Trocando nossas últimas confidências silenciosas. Ela, então, num esforço
tamanho, levou minha mão até o seu rosto e a beijou, com carinho. Suspirou
profundamente. E, então, esboçou um leve sorriso. Apesar da tristeza que
insistia em meu coração, eu intuí que se tratava de um momento muito especial.
Com aquele beijo, com aquele leve sorriso, minha avó me dizia pela última vez o
que nunca foi preciso de palavras para dizer.
Naquele
instante, eu me transportei no tempo, e vi novamente o menino que corria ao
terreno baldio, catava três florezinhas no mato, corria pra entrega-las, e saía
às carreiras, envergonhado. Já naquele tempo, ela me sorria e consentia com os
olhos. O silêncio desde então prescindia
das três palavras, as mesmas que meu coração ouviu naquela noite em que nos
olhamos pela última vez. Ainda hoje, é esse silêncio confortável
que ameniza a minha saudade, pois quando em silencio é que ainda sou capaz de
ouvir a sua voz doce a trazer paz e conforto ao meu coração.
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Fonte:
http://obviousmag.org/
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