Por Ana Macarini
A
luz refletida em um objeto passa pela córnea. Os músculos em torno do olho se
contraem ou relaxam para ajustar a forma da lente, focalizando os raios de luz.
Os raios, então, atingem a retina, onde mais de 100 milhões de células
sensíveis à luz interpretam esses raios e transmitem a imagem ao cérebro
através dos nervos óticos. Como os raios de luz se cruzam enquanto atravessam a
córnea, a retina interpreta a imagem de cabeça para baixo - mas o cérebro
reajusta a imagem, garantindo que você seja adequadamente orientado. Uau! Você
piscou e aconteceu tudo isso? Pois é... Na prática e, racionalmente falando,
enxergar é exatamente só isso.
No
entanto, é bom que se aprenda o quanto antes: nada que se resume a "só
isso" é só isso mesmo. Cada um de nós, ao olhar uma cena; um objeto; uma
situação, acessa uma infinidade de memórias que, tanto podem ser registros
reais de vivências anteriores, quanto uma interpretação que pode coincidir com
o real em si, ou ser uma releitura, fruto de nossas expectativas e projeções, poderosos
mecanismos de distorção da realidade. Assim, vemo-nos diante de uma
inquestionável certeza: o objeto do olhar pode ser um só, mas as interpretações
desse objeto olhado, será visto de infinitas maneiras, a depender de nossa
forma de enxergar.
Olhos
abertos não garantem a capacidade de ver. Para ver é preciso achar uma porta de
saída para longe da obviedade daquilo que se olhou. Dispor-se a ver é abrir mão
da segurança desse lugarzinho protegido, onde só se vê o que não é capaz de nos
tirar da cômoda situação de meros expectadores. A partir do momento que nos
arriscamos a ver o que vem por debaixo da alegoria aparente, somos tomados por
uma ousadia desconhecida. Nossa mente fica exposta a um bombardeio de perguntas
que nos tiram do ponto de acomodação com uma passagem só de ida para o mundo
daqueles que se recusam a cruzar o os braços diante daquilo que os olhos viram
e interpretaram como algo pelo qual valha a pena lutar, quer seja para defender
ou combater.
Em
algum ponto de nossas vidas, somos todos passíveis de sucumbir à cegueira
voluntária; por vezes, estamos nos protegendo de entrar em contato com a
realidade que nos afeta diretamente; por vezes, abrimos mão de ver para que a
tragédia do outro não nos atinja. Optamos por cobrir os olhos com lentes
especiais de distorção da realidade que proporcionam, para nós, o recurso de
sermos enganados voluntariamente: é mais fácil fingir que não vimos do que
admitir que vimos e, mesmo assim, escolhemos nos omitir.
Os
mesmos olhos que trazem coisas do mundo para dentro de nós, são, também, o
portal que nos revela para o mundo. O ato de "fechar os olhos" diante
do que nossa consciência ética acusa como injusto, revela nossa postura diante
de escolhas. Escolher não agir diante da injustiça vista, nos revela. Revela
nossa incapacidade de sentir a dor do outro, revela nossa escolha pela
cegueira.
É
fim de tarde, o trânsito é caótico em uma cidade cujo nome desconhecemos. Um
homem está sentado em seu carro e, de repente, se vê mergulhado num mar de
leite; não enxerga absolutamente nada. Perdido em desespero, pede ajuda e
consegue ir para sua casa. Ele é o estopim de uma doença que se reproduzirá em
cascata exponencial, todos que tiverem contato com alguém infectado estará
também doente. Diante de uma iminente pandemia, o Governo é obrigado a
contê-la: resolve deixar todos os doentes presos no mesmo local, para que não
contagiem mais pessoas até que a doença seja investigada a fundo. Dentre os
indivíduos isolados apenas uma mulher é capaz de enxergar, justamente a mulher
do primeiro homem acometido pela cegueira. No entanto, ela finge estar cega
como os demais; tanto para se proteger, quanto para ajudar os cegos. O
sensacional e perturbador Ensaio Sobre a Cegueira, de Saramago, vem como um
golpe no estômago de nossas superficiais atitudes diante dos inúmeros absurdos
que nossos olhos não conseguem evitar de ver, a menos que fiquem teimosamente
fechados.
A
cegueira moral pode ser uma opção. Olhar e não ver. Ver e não enxergar.
Enxergar e ignorar. Nossa escolha. Apenas não nos esqueçamos de que os outros
ao nosso redor, muito provavelmente, escolheram a mesma coisa.
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Fonte: http://lounge.obviousmag.org/
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