Por Alexandre Sá
Dia de finados é sempre a mesma coisa. Chuva. Algum
vento. Algo de fog. Alguma tristeza. Cemitérios lotados. Alguma hipocrisia.
Alguma verdade. E é curioso perceber como o tempo muda as coisas, as tradições
e as saudades. Quando era pequeno, lembro que este dia 02 de novembro trazia um
peso inevitável ao ambiente. Não se ouvia música alta. Falava-se pouco e a
alegria era algo a ser evitado. Sempre.
De uns tempos para cá, a impressão que tenho é que
tal dia tem entrado na esfera do esquecimento, e inundado por nosso vício
espetacular, trata-se apenas de mais um feriado onde a oportunidade de
aproveitar o dia para algum descanso ou para viajar ou para não fazer nada, é o
que importa. Obviamente não vejo problema nenhum nisso, já que naturalização da
saudade é um devir capital. Será?
Sempre tive problemas com a morte. A primeira e
mais potente, foi a de minha vó. Acordando no meio da noite com falta de ar. Eu
lia ‘Cartas na Rua’, de Bukowski (autor que jamais ousei ler novamente por
razões óbvias). A respiração ofegante no sofá como se clamasse por ajuda. Corro
para pegar o balão de oxigênio que curiosamente, estava vazio. Daí pra frente
era um corpo inerte e uma carne fria. Meu avô pede para que o coloquemos no
sofá e a fé dele de que alguma coisa talvez mudasse se estende até o caixão
enfeitado e o tanto de conversa que tem com ela, numa intimidade que talvez eu
nunca tenha visto. A cena ali, junto aos meus 15 anos, foi porrada.
Porrada maior, só quando a mãe morre. É como se o
seu eixo de fixação a um legado qualquer tornasse-se instável. Depois que se perde
a mãe, a morte chega a parecer natural. A dos outros e a sua. O medo se esvai e
talvez seja compreensível que o fluxo é contínuo, ligeiro, inevitável e como um
boca aberta cheia de dentes.
Para a psicanálise, a morte é a maior castração. Se
no começo da vida há um sentimento de ameaça, a morte é a presença absoluta e
inelutável da a(R)meaça do fim, ou melhor da finitude. Mas talvez seja sempre
importante perguntar, que mal há nisso? Qual a grande questão do morrer? Ou
pior, o que haveria de tão distante entre o viver e o morrer?
Em alguns poucos terreiros de candomblé, existe um
ritual que, se bem feito e com todo o cuidado necessário, é inquestionavelmente
lindo. Os mortos, ou melhor, os ancestrais, voltam a terra e fazendo-se valer
do oco da vestimenta encantada que lhes é destinada, dançam, comemoram, trazem
mensagens, brincam, apavoram e mostram que a morte é apenas o vazio inevitável
com o qual teremos sempre que lidar.
Assisti uma festa dessas uma única vez. E apesar de
uma angústia natural, percebi que estava diante de materialidades diferentes da
possibilidade do existir. Se a vida é átomo e energia, o corpo talvez seja
instrumento. Apenas isso. Naquele momento meu medo se foi. Como os lençóis que
voavam no quintal da dona do terreiro, presentificando também os familiares
desconhecidos de algum dos visitantes. A vida é vento. Talvez tenha sido isso
que, de maneira Sísifo, me mostrou nos olhos a relatividade do tempo e da
experiência.
Como tenho/tinha uma micro-família, acho sempre
curiosa a metáfora do viver como um jogo do resta um. E apesar de uma ligeira
angústia que surge quando precisamos dar um número de telefone para casos de
emergência quando se faz o check-in de algum voo, a sensação que tenho é que viver
e morrer são eixos paralelos de algum universo maior.
Geralmente, opto por não sair no dia de finados.
Ontem, por um xeque-mate do destino, precisei passar grande parte do dia fora.
Paradoxalmente, vinha de um seminário de psicanálise. Não tive medo. Não tive
saudade. Não senti nada, exceto a sensação que o caminho de volta para casa
também era relativo. E naquele instante, da mesma forma que agora, eu estava
bem acompanhado e dedicando sempre tudo o que faço aos vivos e aos mortos. E
pedindo humildemente que me deem passagem, e a justiça necessária para quem, de
fato, merece. A vida é foice.
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Fonte: http://obviousmag.org/. Título original: 'Havia ali'.
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