segunda-feira, 30 de novembro de 2015

Brasília e a marcha da crise: risco de colapso institucional

Os últimos acontecimentos agravaram a crise política brasileira e poderão ter consequências drásticas. A prisão do líder do governo no Senado, Delcídio do Amaral, e do banqueiro André Esteves inverteu a tendência de 'alento' que se desenhava à administração Dilma Rousseff e, junto com outros fatores, pode colocar o país no abismo de uma crise institucional. É o que, figurativamente, e só figurativamente mesmo, pode-se chamar de uma "uma peça de Fortuna", a deusa romana do acaso, do imprevisto, do destino. Dois exemplos apenas do cenário do teatro dos horrores que - se não houver uma reconfiguração do quadro atual em favor da estabilidade - são vislumbrados: 1) Em face das dificuldades de interlocução com o parlamento e da tramitação das matérias orçamentárias, a presidente poderá ser levada a dar um calote em compromissos/despesas públicas, com consequências imprevisíveis em relação aos estados, servidores públicos e aposentados; 2) poder-se-á ter confrontos de rua entre pessoas/movimentos em protesto. Boa parte das pessoas - secundadas por abordagens que não passam de espuma de palavras, da grande mídia e de determinados analistas - permanece alheia ao que está em causa. Com uma dose de ironia, é de se dizer: que Fortuna olhe para o Natal e o Ano Novo dos brasileiros! A situação é grave. Nessas horas, como em outras, tudo o que não é necessário é "sangue quente" e açodamento. E é nesse sentido, a meu ver, que a análise social objetivamente se deve pautar, examinando a crise e colocando em realce quadros de inteligibilidade que proporcionem perspectivas sobre o que está em questão e o que pode vir. Foi o que fez, aí abaixo, o prof. Aldo Fornazieri, apontando os riscos de um colapso institucional no país. Iniciei a semana pretendendo escrever um texto dessa natureza, mas, ao tomar conhecimento desse dele, senti-me contemplado. A conferir. 

Teto do Congresso Nacional - Manifestações de 2013
(Crédito: ABr) 

Por Aldo Fornazieri 
(Escola de Sociologia e Política de São Paulo)

Há duas semanas, a crise política dava sinais de arrefecimento, com o governo conseguindo algumas vitórias no Congresso, com o recuo dos ataques a Joaquim Levy, com o enfraquecimento de Eduardo Cunha, com o PSDB sinalizando uma possível mudança de postura e com a própria tese do impeachment perdendo força, tanto nas ruas quanto no meio político. A surpreendente prisão do senador Delcídio Amaral e do banqueiro André Esteves é um daqueles trabalhos terríveis da Fortuna que fazem os ventos mudar de lado, desfazendo o que vinha sendo feito, provocando tormentas e tempestades, criando novas condições, novas  circunstâncias, exigindo um reposicionamento dos atores. O reposicionamento, ainda em andamento, dos partidos e dos políticos, no entanto, sinaliza não um clareamento do horizonte, mas o aumento das incertezas.
No jogo das irresponsabilidades sobram imputações para todos os lados: à presidente Dilma, que construiu no primeiro mandato as condições da ruína do segundo mandato e porque agora não consegue reagir e governar; ao PT, que se corrompeu e que, junto com Lula, desenvolve ações desestabilizadoras do atual governo Dilma; a Aécio Neves e ao PSDB, que não aceitaram a derrota das urnas e desenvolveram uma ação golpista sob o manto disfarçado de legalidade dos tribunais e do instrumento do impeachment; ao PMDB, que não se compromete com a governabilidade e que age como ave de rapina sempre à espreita de vítimas ou de carniça; a Eduardo Cunha, que não tem escrúpulos e limites para salvar-se da guilhotina e para viabilizar seus interesses pessoais. 
Nem no governo, nem nos partidos governistas e nem na oposição existem centros de gravidade política ou líderes legitimados, capazes de imprimir alguma coerência e sentido ao sistema político. O que se instaurou é uma guerra sem quartel e sem escrúpulos pelo botim do Estado, uns querendo levar os outros ao cadafalso e todos imolando os interesses do povo e do país no altar dos sacrifícios.
A perda de legitimidade do sistema político e dos partidos, que vem se agravando desde as manifestações de 2013, se deve a duas razões principais: a) os partidos não representam mais nada, a não ser eles mesmos e seus interesses; b) a suspeita generalizada de que havia no país uma corrupção sistêmica – suspeita de longa data – se tornou evidente à luz do dia com a sucessão de escândalos, nos vários níveis da administração pública, mas atingindo principalmente o Executivo, o Legislativo, juízes, as estatais, o BNDES que beneficia o clube de amigos do poder, as empreiteiras, as prestadoras de serviços públicos, o sistema financeiro e várias empresas que, pelas suas relações de poder, ou praticam a corrupção pura e simples ou sonegam impostos. Servidores públicos, inclusive de carreira, não ficaram imunes a esse sistema. O presidencialismo de coalizão perdeu a sua função política de garantir a governabilidade e se transformou em presidencialismo de negócios, desbalanceando a competição de mercado, introduzindo a deslealdade como critério de sucesso e definindo o Estado, incluindo os Legislativos, como balcão de negócios, com agências ramificadas nos mais diversos setores.
Desta forma, a luta política deixou de ser uma luta por representação de interesses sociais, pela promoção do interesse público e pelo desenvolvimento econômico e social do país. Os partidos e os políticos – claro que há exceções – se tornaram agentes de negócios. Financiamento de campanhas, contas no exterior, promoção de empreendimentos de familiares de políticos e agentes públicos são formas de mediação de um novo sistema de negócios que floresceu à margem da lei e embalado pela impunidade. Com isso, a política perdeu toda a dimensão moral e se reduziu a uma mera técnica de conquista e manutenção do poder, visando os negócios privados dos partidos, de funcionários e dos políticos com as mais variadas empresas públicas e privadas. A habilidade técnica da conquista e manutenção do poder é indiferente aos fins. O único fim que interessa é o fim particular da posse do poder. O poder deixou de ser meio com vistas a realizar os fins públicos.
A prisão de políticos, de empreiteiros e de banqueiros provocou um curto circuito no sistema múltiplo de locupletação ilícito. O fim da impunidade está fazendo esse sistema ruir. O risco de colapso institucional existe porque o governo não consegue reagir e governar; porque a Câmara dos Deputados se tornou presa de um lobo solitário, de um cachorro louco, no sentido figurado do termo, e porque a oposição se mantém disposta a chegar ao poder pelos atalhos das sombras. O risco de colapso existe porque as margens para uma saída política normal – por eleições e por uma alternativa partidária legítima – se estreitaram. O sistema está sendo posto abaixo pela ação do Ministério Público, da Polícia e da Justiça. Em face da ausência de alternativas e da irracionalidade pública dos políticos o que vem se gerando é um enorme vácuo político, um vazio de autoridade legítima.
A solução da crise política tem vários ângulos de mirada, dependendo do ator e de seus interesses. Evidentemente, a remoção de Eduardo Cunha da presidência da Câmara é necessidade mais imediata. Como e se isto será feito, talvez se saiba nesta semana.  Se não for feito a crise não tem solução, pois ele se tornou o obstáculo mais imediato para qualquer solução.
O problema maior se situa em como solucionar a crise no governo. Com a prisão de Delcídio Amaral se intensificou uma articulação tucano-peemedebista que quer o impeachment. Sendo que não há nenhum fundamento jurídico para o mesmo, este é o pior caminho e arrastará o país para uma grave desestabilização política. O impeachment é um processo prolongado que pode demorar mais de 100 dias. Se o impeachment de Dilma for desencadeado, tudo indica que se constituirá um cenário de confrontação de rua. Ao mesmo tempo em que os movimentos pró-impeachment refluíram, os movimentos sociais progressistas, que inclusive não apoiam o governo, mas são contra o impeachment, ganharam articulação e força. A radicalização em nome da defesa da democracia e contra o golpe será inevitável. Se não surgir nenhum fato que implique diretamente a presidente Dilma em atos ilegais, o impeachment é o caminho da insensatez.
Outra proposição de setores da oposição, e este talvez seja também o desejo de Lula e do PT, é a renúncia de Dilma. Dilma estará disposta a renunciar enquanto ainda houver alguma esperança de recuperação do governo? Aparentemente, não. Esta saída depende de um ato de vontade unilateral ou de um imenso movimento de massas pela renúncia, algo que não é visível neste momento. Em caso de impeachment ou de renúncia cabe perguntar se Michel Temer teria condições de governar, com os movimentos sociais nas ruas. É altamente duvidoso, ainda mais com o PMDB fortemente envolvido nos escândalos de corrupção.
A saída mais sensata consistiria na criação de condições mínimas de governabilidade, com alguma colaboração da oposição, por mínima que seja. Mas Dilma e o governo precisariam fazer sua parte, lançando, ao lado do ajuste fiscal, uma plataforma de recuperação da economia. O governo deveria chamar também os setores empresariais, os movimentos sociais e parte da oposição para negociar propostas concretas. Mas é difícil supor que isto aconteça num governo que vem se mostrando surdo, mudo e paralítico quando se trata da ação e da interlocução políticas.
A única coisa que os movimentos sociais e políticos progressistas não podem abrir mão, nesse momento de incertezas crescentes, consiste na manutenção de sua organização e mobilização. Precisam cobrar as soluções que façam recair os maiores custos da crise sobre os mais ricos. Propostas sensatas e razoáveis não faltam.  Na medida em que terminou o jogo do ganha-ganha da era Lula, o jogo agora é definir quem ganha e quem perde ou quem perde menos. Num momento em que os partidos e os políticos representam seus próprios interesses, os setores mais pobres da sociedade só ganharão algo ou reduzirão as suas perdas se estiverem organizados e mobilizados, com plataformas sensatas e com a sabedoria prática para fazer as mediações políticas necessárias.
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Fonte: http://jornalggn.com.br/. Título original: 'Risco de colapso institucional' 

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