Por Carlos Melo
(Cientista político - Professor do Insper)
Usufrutuário das mazelas do sistema, da pequenez dos partidos, da crise
de representação, da ausência de lideranças e do bom senso. Eduardo Cunha
ganhou expressão pelo deserto de Política que nos rodeia. Não se lhe reconhece
espírito superior, clareza de ideias; qualidade e ampla positividade de
projetos. Isto ele não tem. Cresceu à sombra, favorecido pela negligência e
animado pelo oportunismo alheios. Usufrutuário, isso sim, do vácuo que se
produziu ao longo da década, é flor que nasce do estio das chuvas, no meio do
volume morto.
Nunca se ouviu dele opinião para além do
interesse dos grupos a que pertence: deputados, pentecostais, negocistas.
Capitão do atraso nos costumes, foi ao front alçado por pautas e ressentimentos
internos: cargos, liberações, reacionarismo. Integra retrocesso ao
fisiologismo. Despachante de lobbies, multiplicador de recursos eleitorais; não
faz colegas, planta devedores no Congresso; a base da fidelidade que desfruta.
Gigante só entre anões, seu mérito foi percorrer ligeiro a vasta planície de
inépcia e estultice do dilmismo, que se abria à sua frente.
Fulanizar em Cunha todos os males do sistema
é erro e má-fé. O presidente da Câmara não é causa de quase nada; início ou
fonte do que quer que seja. É, antes, efeito; sintoma, produto de quase tudo o
que se desenvolveu ao abandono, no país. Crucificá-lo sozinho, mais que
injusto, é vigarice do roto que troça do rasgado. Há mais suspeitos a quem
apontar o dedo.
O sistema se exaure não é de ontem;
degenera-se há anos. A sociedade abandonou a política, desprestigiando-a,
negando seus melhores; relegou a atividade ao cantinho das coisas
insignificantes. À política, a elite – não apenas econômica – virou as costas;
julgou ser os restos da economia. Ao cravar política como “coisa de malandros”,
deixou “reserva de mercado” à pilantragem; isolou os bons. Comovida, a
malandragem agradeceu. A seleção adversa foi inevitável.
Também o presidencialismo de coalizão assumiu
sua dinâmica: o método até ontem era um sucesso, do balacabaco. Olhava-se, como
sempre, resultados imediatos, não as deformações que faziam o pau nascer torto.
Ao presidencialismo imperial, repleto de cargos e recursos, bastavam Medidas
Provisórias e um Congresso submisso e cevado na “partilha do governo”.
Gabinetes, emendas e esquemas falavam mais que argumentos.
Exaltou-se o pragmatismo, objetivo e despido
de valores. A coalizão criou terminologias próprias: “porteira fechada”,
“operadores”, “facilitadores”, por fim, “delatores”. A “revolução brasileira”
que Lula imaginava fazer era, assim, calcada nessa conciliação: chantagem de um
lado, fisiologismo do outro; anemia de cidadania e ideologias. Ideais, o
fisiologismo sepultou; por desnecessário, o combativo tribuno foi à breca –
razão e oratória desapareceram; a liderança morreu. Na exaltação do marketing e
na atrofia do Legislativo, expandiu-se o Executivo acomodado e balofo.
Alguma graxa — admite-se –, de quando em vez,
é necessária para não ranger as engrenagens. Mas, graxa alguma substitui a
Política. O hábito gerou o vício, transbordou em excesso – já não se sabe outra
forma de convencer. Solidificada, a gordura emperrou o mecanismo. A exuberância
irracional, os tempos de nosso crescimento fugaz, permitiu alimentar o rebanho
com opulência, despertando, paradoxalmente, mais fome e a voracidade. A
sociedade e o governo foram igualmente cúmplices. Mas não só.
A oposição tucana e das ruas foi um show à
parte. Paulinhos da Força e que tais são ervas que medraram da mesma tundra;
congêneres, não causam espanto. Mas, do PSDB e das ruas, tão exigentes e
ilustrados, esperava-se mais rigor. A inexperiência, a ansiedade e esperteza
dos “cabeças pretas”— os jovens oposicionistas – fez a verdade se revelar:
antes da moral, mas pretensamente em nome da moral, o alvo era o
impeachment ou a impugnação de Dilma que levasse à nova eleição. Agarraram-se a
Cunha sem considerar que o próprio instrumento depunha contra a ação. Ética
relativa? Barbaridade! Ninguém escapou da degenerescência.
O abraço em Eduardo Cunha não foi,
naturalmente, inocência nem desinformação; foi imprudência ou oportunismo que
lhe deram alento; tanto quanto o afastamento de hoje é arrependimento ou
traição. Melhor admitir rapidamente a estratégia errática, a história julga: “a
política adora a traição, mas detesta o traidor”. A aposta na aventura de Cunha
iludiu e comeu vários tolos, fez Aécio perder densidade política. A oposição
foi jantada, o governo será servido, novamente, no café-da-manhã; Eduardo Cunha
não escapa de virar mingau. Saturno devora seus filhos.
Há personagens que não se deve ter como
inimigos; outros, que não se pode ter como amigos. PT e PSDB atestam hoje que
em Eduardo Cunha se encerram essas duas naturezas. Mas, não se pode dizer que
seja raro, único, nem que tenha nascido por combustão espontânea. Foi incubado
numa câmara de decadência, displicência social e desacertos políticos.
Infelizmente, o usufrutuário está longe de ser uma excrescência.
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Fonte: http://politica.estadao.com.br/blogs/carlos-melo/
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