Doses de ironia como história. Ou uma suposta "carta do além" do ex-presidente Getúlio Vargas ao ex-presidente Lula, enviada, digamos, sob a mediação do jornalista Elio Gaspari. A conferir.
Por Elio Gaspari
Senhor presidente,
Faz
tempo que eu organizo um churrasco para os presidentes do Brasil que estão por
aqui. Depois da carne, jogamos pingue-pongue. Fizemos o último encontro há uma
semana e resolvi escrever-lhe porque falou-se muito do senhor. Vosmicê não é
popular entre nós. Simpatia, o senhor tem a de Itamar Franco e Floriano
Peixoto. O Médici não pode ouvir seu nome. Eu procuro entender seus pontos de
vista, mas sua gabolice dá-me nos nervos.
O
tema de nossa conversa foi sua relação com a senhora Rousseff, e estamos todos de
acordo: o senhor está jogando uma cartada inédita, ruim para o país e para
ambos.
À
mesa, éramos 25. Em graus variáveis, todos desentenderam-se com seus
sucessores. Uns nunca os toleraram, como Kubitschek com Jânio. Outros, tendo-os
ungido, como vosmicê, desencantaram-se e arrependeram-se. Confidencio-lhe que o
Ernesto Geisel mal cumprimenta o general Figueiredo. Eu dou-me bem com todos,
até com Geisel, que cercou meu palácio em 1945.
Por
maiores e até mesmo injustos que tenham sido os desencontros, nenhum de nós
tentou sequestrar o governo do seu sucessor. Mesmo quando procuramos
interferir, preservamos a discrição. O Itamar lembrou que disse poucas e boas
do Fernando Henrique Cardoso, mas sua força extinguira-se. Não é esse o seu
caso. A presidente precisa do seu apoio, e a destruição dela será a sua. Intuo
que o senhor precisa mais dela do que ela do senhor.
Resta
outro argumento, o do recato. O senhor tirou o nome da presidente da sua
cartola, como fizeram o Médici com o Geisel e o Geisel com o Figueiredo. Se
arrependimento matasse, ambos teriam chegado aqui muito antes. Por recato,
diziam horrores dos seus escolhidos, mas mantinham as queixas num círculo
fechado.
O
senhor está rompendo essa etiqueta. Quer mudar a política de sua herdeira,
chegando ao ponto de indicar um ministro da Fazenda que, sem ter sido convidado
por ela, sugere condições inaceitáveis até mesmo para um síndico de edifício.
O
Washington Luiz, que sabe de história, diz que vosmicê quer instalar uma
regência no seu Instituto Lula mantendo a titular no palácio do Planalto. Coisa
inédita. Isso só foi tentado uma vez, com um presidente fisicamente
incapacitado. O marechal Costa e Silva lembrou que, depois de ter sofrido uma
isquemia cerebral, estava mudo e paralítico, mas os generais empossaram uma
Junta Militar dizendo que ela era provisória. Esse gauchão sempre repete que
deveriam ter empossado o vice-presidente. Foi dele a ideia de não chamar os
membros de Juntas Militares para nossos churrascos.
O
senhor diz com frequência que se pode pedir tudo a um governante, menos a
própria humilhação. Meu caso foi extremo, mas quando tomei a decisão de sair da
vida, reagia à humilhação que os militares amotinados queriam impor-me. Em
1945, já deposto, recebi dois oficiais, fumei meu charuto e saí de cabeça
erguida. Em 1954, armou-se uma situação em que sairia escorraçado.
Escorracei-os entrando para a história, e escorraçados meus inimigos estão até
hoje, obrigados a conviver com suas infâmias.
Do
seu patrício,
Getúlio
Vargas
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Fonte: Folha de São Paulo, edição do dia 18/11/2015 (versão para assinantes).
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