domingo, 15 de novembro de 2015

'O avesso do avesso do avesso': miragens e representações invertidas do Oriente


Yazidis em celebração de ano novo (abril): nem cristãos,
nem muçulmanos - perseguidos  pelo Estado Islâmico 


Embora a incompreensão humana (assim como a maldade) não seja coisa que me surpreenda, não deixa de me chamar a atenção o modo absolutamente falso como muitas pessoas, tremulando a bandeirinha de França no mundo virtual, estão a se referir aos povos do Médio Oriente. É como se xiitas, sunitas e alauitas, dentre outros grupos, vivessem - desde que o mundo é mundo - atolados no fanatismo, na barbárie, dando cabo uns dos outros. Ora, isto não tem amparo nos fatos. De resto, ainda há um analfabetismo histórico tosco, que mete todos os grupos num mesmo saco, e ainda somos obrigados a ouvir (ou ler) asneiras sem limites, por exemplo, sobre os yazidis - exatamente o grupo que está a ser duramente perseguido pelo Estado Islâmico. A disseminação da imagem de tais povos como "fanáticos reprodutores da barbárie" encaixa-se  na denúncia que faz os estudos do Orientalismo, inspirados em Edward Said, mostrando que essa representação foi construída no Ocidente com propósitos determinados. São vastos os casos provando que os povos orientais sabem conviver em paz, sendo de registrar os casamentos mistos, bem como a constituição de famílias extensas sem identidade fechada. E sim, há Estados laicos, tendo-se como norma o respeito às minorias cristãs. A Síria pode ser mencionada nesse sentido, onde também a condição da mulher é diferenciada do protótipo feminino em outros países islâmicos (países estes apoiados pelos Estados Unidos, que, por outro lado, patrocinam o destroçamento sírio como Estado-nação, numa "paradoxal" movimentação que, ao fim e ao cabo, fortalece o Estado Islâmico). Não custa lembrar ainda, na região, o ideário político do Baathismo, do Partido Baath, mesmo que tenha declinado, o qual certamente - dentre as críticas que lhe podem ser feitas - não é merecedor do rótulo de promotor do sectarismo religioso. A esse respeito, é de se lembrar que Tariq Aziz, homem forte do governo iraquiano (antes de o país ser invadido pelos Estados Unidos e os seus líderes serem presos e/ou assassinados), era um jornalista que estudou literatura inglesa e religiosamente cristão. O sectarismo e a intolerância religiosa no Médio Oriente, em significativa medida, não podem ser dissociados da ação política dos invasores e colonizadores ocidentais. Usando uma "imagem em analogia" exemplificadora disso, repiso aqui uma hipotética situação que César Bejamim tem referido. Pois bem, "imagine [que] uma potência externa conseguisse destruir todas as instituições do Estado brasileiro – forças armadas, polícias, Justiça, Parlamento, governos de todos os níveis, moeda, universidades... E que, em seguida, essa potência passasse a financiar e armar toda espécie de grupos, desde o Comando Vermelho, o PCC e as milícias, até fundamentalistas religiosos, passando por todo tipo de candidatos a senhores da guerra. Logo começaria no Brasil uma guerra civil cruel e infindável." Com as devidas mediações históricas e contextuais, é isso que tem acontecido nas sociedades árabes, as quais têm sido fortemente impactadas por intervenções estrangeiras lideradas pelos Estados Unidos, com o apoio ou cumplicidade dos principais países europeus. Certa feita, numa viagem ao Médio Oriente, em conversa com um cipriota, ouvi dele que os ocidentais têm dificuldade de compreender o que se passa na região. Disse-lhe que se trata de um misto de desinformação e má-vontade. Isso foi há cerca de quinze anos. Continuo pensando da mesma forma. 


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