É bem provável que eu seja incompreendido com esta postagem. Contudo, correrei o risco. Afinal, de determinado modo, já estou habituado com isso - mesmo quando os casos são de cavilosas distorções dos meus posicionamentos. Seja como for, estou-me nas tintas para esses disparates - não dou a menor importância. Pois bem, a entrevista aí abaixo é com o cientista político Marcio Sales Saraiva, especialista em políticas públicas, e um ativo interveniente na discussão sobre o presente e o futuro da Esquerda brasileira. Ele mantém laços com a Rede Sustentabilidade e afirma que, no Brasil, a Esquerda parou no tempo e só olha para trás. Da minha parte, das posições por ele expostas, decorrem, dentre outras, duas observações pertinentes e duas outras nem tanto, quais sejam:
1)É bastante salutar o descarte do 'populismo de esquerda', embrulhado pelos 'camisas pardas' e vendido pela espuma de palavras com frases de efeito em torno de supostos 'movimentos sociais', que, no mais das vezes, servem a propósitos pecuniários para fins pessoais.
2) Também é salutar desenvolver o debate com aprofundamento teórico, tratando as questões com o devido refinamento conceitual. O surgimento de manifestações de intolerância na sociedade brasileira (como as agressões a imigrantes) é resultado, também, de a 'esquerda populista' ter desprezado a discussão programática, atendo-se a um 'praticismo cego', o que deixou o terreno livre para a ascensão de posições fascistas.
3) Fiamos, no entanto, a aguardar notícias sobre a base social da 'Nova Esquerda' vislumbrada por Marcio Sales. Se é fato que, de certa forma, em temas ambientais, entra jogo posições pluriclassistas, em outros temas, todavia, não parece ser assim que a 'banda toca'.
4) Last but not least, é insuficiente, muito insuficiente, dizer que determinada organização política 'não é de esquerda e nem de direita, mas para frente'.
Aí abaixo a entrevista.
Entrevista concedida ao Brasil Post
(http://www.brasilpost.com.br/)
O senhor escreveu recentemente sobre o "aniquilamento da
esquerda brasileira". Nesse contexto, qual seria o diagnóstico para essa
esquerda?
Marcio Sales Saraiva: Dentro do "critério Bobbio" do que é esquerda e
direita, considero razoável dizer que hoje a esquerda brasileira está, num
primeiro momento, esfacelada e desmoralizada. Mas poderá se recuperar na medida
em que ela abrir mão de dogmas do passado e conseguir refletir de forma honesta
sobre o presente. Fazer uma autocrítica profunda e apontar para uma agenda
ética, política, socioeconômica e cultural antenada com o século 21. Trata-se
de apresentar à sociedade um programa de esquerda que seja crível, razoável e
possível. Não adianta falar, por exemplo, em dar um calote na dívida. Isso é
loucura. Ninguém acreditaria nisso. Poderia levar o País a uma insolvência
econômica. Hoje, com o mundo globalizado e as economias interconectadas, se
você faz algo desse tipo, você dá uma pancada violenta no mercado com fuga
imediata de capitais. São questões muito pragmáticas das quais a esquerda
precisa se dar conta com mais realismo e menos devaneio.
Podemos considerar essa esquerda brasileira que temos hoje como
uma esquerda elegível?
Eu acredito que, se essa
esquerda não se renovar, não se conectar com o século 21, não desenvolver um
projeto que possa ganhar os corações e mentes dos indivíduos e ganhar a
confiança de vários setores da sociedade, com certeza, será varrida por um bom
tempo do mapa político e eleitoral do País. O resultado disso já estamos vendo:
o crescimento exponencial da direita, da extrema-direita e das forças mais
reacionárias no Brasil. Esse crescimento é espontâneo? Não. Esse crescimento é
um fruto da Era PT. A direita volta a crescer à medida que o PT vai cometendo
erros sobre erros. A decepção e a desilusão são imensas diante do partido que
prometeu ética na política com um discurso de esquerda que procurava ser
"diferente de tudo que aí está". Esses conservadores crescem nas
costas dos erros do PT, que arrastou o então imaginário social positivo a
respeito da esquerda para a lama da corrupção e das alianças imorais. E agora
nós temos uma direita muito maior, mais organizada e com uma voz ativa no
cenário político. O pior disso tudo é que nem sempre é uma direita liberal e
comprometida com a democracia. Esses liberais eu respeito, mas o que tenho visto
é o crescimento de uma direita mais estúpida, carrancuda, linha-dura, com
simpatias por regimes autoritários, antifeminista, contra os direitos das
pessoas LGBT. Isso é nefasto.
E quais seriam as perspectivas de futuro para a esquerda
brasileira?
Eu considero que essa é
"a pergunta do milhão". Penso que o futuro da esquerda brasileira
passa por uma releitura radical do seu passado à luz da contemporaneidade e
pela necessidade de se refundar, ética e politicamente, sobre novos valores,
novos paradigmas, como por exemplo, o da sustentabilidade planetária. Ou seja,
eu penso que o que a história pede hoje é uma nova esquerda. Nova esquerda não
só porque ela vai trocar de camisa, trocar de símbolo ou trocar de nome. Isso é
algo muito superficial. Mas nova esquerda no sentido de concepção, de visão de
mundo. Que a esquerda possa realmente aprender com os erros do passado: desde o
culto ao Estado até o "vale-tudo" em nome da mudança social. A Rede
Sustentabilidade, por exemplo, está tentando isso. Mas não é só a Rede. Tem
gente espalhada por vários partidos e gente fora dos partidos políticos que vem
meditando e refletindo sobre essas questões, criando novas formas de atuação
com mais horizontalidade e democracia, sem uma metanarrativa arrogante que dê
conta de todas as coisas. Mas ainda assim, no geral, o que chamamos de
"esquerda brasileira" tem enorme dificuldade de se repensar.
Qual é a tendência diante dessa dificuldade de se repensar
enquanto movimento ideológico?
A tendência é fazer o
que ocorreu na fundação do PSOL. Diante da fragmentação social e política,
culpa-se a direita, as forças reacionárias, os "golpistas" ou o
próprio PT de "desvio doutrinário/ideológico". Qual seria a solução
"inovadora" pra essa esquerda tradicional? Voltar novamente ao
passado. A esquerda permanece numa espécie de eterno retorno ao passado. Como
se a solução para o mundo - com seus dilemas e potencialidades - estivesse, em
síntese, no passado. No retorno literal a Marx, Gramsci ou Althusser, ao invés
de olhar para frente e pensar: "Bem, dadas as novas condições
socioeconômicas, culturais, ambientais e políticas, o que podemos pensar como
progressista daqui pra frente? O que é ser progressista hoje?". Claro,
isso não quer dizer que a esquerda deva negar sua trajetória, seu passado. De
forma alguma. Já disse que o equilíbrio é necessário e há lições que ainda hoje
são preciosas. Marx, Gramsci e Togliatti ainda nos dizem algo, mas não podemos
encará-los como uma espécie de cânon sagrado, vozes inquestionáveis de uma
"verdade divina do proletariado". Eles, os clássicos, nos apontam
problemas que precisam ser repensados a partir do hoje.
Não ocorre, vamos colocar assim, um certo bullying ideológico quando alguém tenta
fazer essas novas reflexões dentro da esquerda?
Sem dúvida. No Brasil, há intelectuais que têm na tradição de
esquerda sua referência, mas que estão pensando no hoje com os olhos no futuro.
Veja, por exemplo, Luiz Eduardo Soares, Marco Aurélio Nogueira, Boaventura
Souza Santos ou Bruno Cava Rodrigues. Mas isso é algo que irrita profundamente
a maioria da esquerda tradicional, agarrada aos velhos paradigmas. Nesse
movimento de repensar, hoje, somos poucos. A maioria corre pro velho. Corre pro
antigo. Até porque isso oferece uma solidez psicológica e emocional. É algo
típico do fundamentalismo religioso. Eu diria que a esquerda brasileira tende a um certo fundamentalismo
ideológico. Ela
se volta aos fundamentos e se agarra neles, diante de um presente que é muito
arriscado, que é muito complexo, cheio de desafios e paradoxos, fluido e não
rígido. Nesse campo, nossa esquerda tem traços semelhantes ao fundamentalismo
religioso. Quem na esquerda ousa pensar diferente é prontamente tachado de
"coxinha", de "reacionário" ou de "liberal".
Num cenário em que há um movimento mundial de se repensar a
esquerda, por que a esquerda brasileira seria então tão fundamentalista?
Eu tenho impressão de
que teorias e ideias renovadoras do pensamento ideológico chegaram muito
atrasadas ao Brasil e, por muito tempo, a esquerda brasileira ficou isolada da
esquerda mundial. Mas com o processo de globalização da informação, essa
situação de "atraso" vem sofrendo profundas modificações. A esquerda
brasileira está sendo forçada a pensar em conjunto com o mundo. Ainda assim,
ela resiste. Quem na esquerda aceita dialogar com as contribuições de um John
Rawls, Adam Przeworski, Amartya Sen ou mesmo Hannah Arendt não é visto com bons
olhos.
E quais seriam questões importantes para a esquerda de hoje?
Como conduzir um
programa de responsabilidade fiscal sob uma perspectiva de esquerda, por
exemplo? Ou governos de esquerda devem ser necessariamente deficitários? O
Syriza, na Grécia, tem enfrentado essas questões pragmáticas. E muita gente já
se retirou do Syriza por causa disso. Porque é muito fácil você fundar um
partido novo, de esquerda, que fica na oposição parlamentar "contra tudo e
todos" com um purismo ingênuo. O desafio é quando esse partido de esquerda
senta na cadeira do governo e assume responsabilidades públicas. Aí ele tem que
dar conta da realidade. Sair do discurso fácil do "contra tudo isso
aí". Deixar a promessa e transformá-la em política pública concreta. Sair
das perspectivas utópicas da campanha para administrar o real. E esse real
cotidiano é massacrante. O Tsipras tem passado por muita dificuldade, porque
uma coisa era o que ele dizia na campanha, outra é executar. Não é fácil.
Onde poderíamos enxergar algumas dessas reflexões que você cita
ocorrendo na esquerda global?
Você tem, por exemplo, uma tradição de esquerda que vem inovando
muito desde o eurocomunismo na Itália, na França e na Espanha. Incluindo
setores de esquerda liberal do Canadá. Anthony Giddens, com toda sua teorização
da Terceira Via, trouxe contribuições muito importantes, principalmente com o
livro Para além da Esquerda e da Direita. A
Utopia Desarmada, do Jorge Castanheda, Christopher Lasch, Pierre
Rosanvallon, Manuel Castels, Zygmunt Bauman, Alain Touraine, Castoriadis,
Daniel Cohn-Bendit, Michel Lowy e os ecossocialistas... Todos trazem aportes
importantes para a esquerda renovada do século 21. Precisamos aprender com a
experiência do Syriza. A experiência dos movimentos da Espanha, como o Podemos.
Acompanhar os movimentos de reforma do Partido Democrata nos
Estados Unidos, do Partido Socialista Espanhol (PSOE). Olhar o modelo sueco,
com o Partido Operário Social-Democrata da Suécia. A própria experiência da
Frente Ampla no Uruguai. Mas nada disso parece fazer muito sucesso no Brasil.
Pelo contrário, a tendência da esquerda brasileira sempre foi de condenar esses
autores e movimentos que, nem sempre acertando, ainda assim faziam um esforço
intelectual no sentido de mudança e compreensão do vivido. A tendência é de
sempre olhar isso tudo como uma traição à ortodoxia do marxismo, essa mesma
ortodoxia que matou Marx.
Existe muita reação na internet quando se faz uma defesa da Rede,
com acusações de que a Rede seria um partido conservador. Diante desse quadro,
você diria que há espaço para o pensamento de esquerda dentro do Rede?
Se não houvesse espaço para um pensamento de esquerda dentro da
Rede, uma liderança como Heloísa Helena não estaria na Rede, nem o vereador
carioca Jefferson Moura, o comunista Martiniano Cavalcanti, o senador Randolfe
Rodrigues ou
o deputado federal Alessandro Molon. Se não houvesse espaço para um pensamento renovado de
esquerda dentro do partido, muita gente da Executiva Nacional, do Elo Nacional
e dos Elos Regionais abandonariam a Rede Sustentabilidade. O fato de que essas
pessoas estão na Rede é uma prova de que a Rede tem espaço pra um pensamento à
esquerda. Essa conversa de que a Rede seria conservadora-liberal é ignorância
ou má-fé. Lembramos que Marina Silva, Pedro Ivo e muitos outros companheiros da
direção nacional foram militantes do clandestino Partido Revolucionário
Comunista (PRC) na década de 1980, no interior do Partido dos Trabalhadores.
Chamar esse povo de "direita" é brincadeira.
Mas a Rede é de esquerda ou de direita?
A Marina já expressou, em algumas ocasiões, que a Rede
Sustentabilidade não é "nem de esquerda, nem de direita". Que ela é
"para frente". Qual o sentido disso? A primeira questão é que essa
expressão envolve, na minha leitura, um ideal progressista. Esse seria o
sentido de "para frente". Muito mais do que preocupar-se com as
etiquetas de esquerda ou de direita, a Rede Sustentabilidade tem como
preocupação o progresso social, e que esse progresso se dê dentro do paradigma
de sustentabilidade planetária. Portanto, isso nos diz algo sobre nova
política, ética global e desenvolvimento não predatório com redução de
assimetrias sociais graves. São diversos eixos que se encontram dentro desse
paradigma de sustentabilidade progressista que age no aqui-agora com olhos no
futuro. Basta conferir o Estatuto da Rede, o seu Manifesto, acompanhar a atuação da Rede Sustentabilidade, os posicionamentos da Executiva Nacional da Rede e agora os posicionamentos
da bancada da Rede no Congresso e você irá testemunhar que, de fato, trata-se
de uma nova organização progressista. Ainda que não esteja capturada pela
lógica tradicional da esquerda e da direita. Portanto, não opera dentro dos
critérios de Norberto Bobbio que eu estou usando aqui apenas como orientação. A
segunda questão é que a Rede tem claros compromissos ideológicos e
programáticos. Não ser de esquerda ou de direita deve ser interpretado apenas
como a afirmação de um espaço imagético, sem, contudo, negá-la por completo.
E se tentássemos fazer uma análise externa, pela visão tradicional
de um cientista político?
Se nós tentarmos forçar a dicotomia ou a "díade", como
chamava Bobbio, talvez possamos dizer que a Rede seja um partido de centro-esquerda ou
"esquerda moderada". Ela tenta conjugar mercado e Estado com justiça
social e respeito a todas as formas de vida e ao meio ambiente. Um partido que
se afasta de uma visão laissez-faire de mercado, mas que também não abraça
uma visão tradicional de socialismo onde o "Estado é bom" e deve
intervir em todos os aspectos da vida dos indivíduos "para o bem dos
indivíduos". Por isso mesmo, a Rede, da forma como vejo, dialoga com uma
tradição positiva do liberalismo: defesa das liberdades individuais e civis,
das instituições e procedimentos da democracia e do dinamismo do mercado. Mas
também dialoga com aquilo que a esquerda e os movimentos socialistas trouxeram
de melhor para a humanidade, como a radicalização da democracia e a
centralidade do bem-estar social: a defesa da igualdade social, da distribuição
equitativa da renda e do direito das minorias contra todas as formas de
totalitarismo de maioria. Todas essas são bandeiras da Rede Sustentabilidade.
Mas poderíamos dizer também que isso está para além da direita e da esquerda.
Poderíamos chamar de razoabilidade democrática.
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