quinta-feira, 24 de setembro de 2015

'Os Caminhos Cruzados da Consciência'

Em 1999, causou uma 'certa estranheza' o fato de reconhecidos cientistas, de projeção internacional, como o neurocientista lusitano António Damásio, terem se reunido com o Dalai Lama (líder do budismo tibetano) tendo como propósito discutir a relação entre cérebro e consciência. Aumentava ainda mais a estranhava o fato de, no grupo, existirem ateus, além de agnósticos. Dos diálogos desse encontro, surgiu o livro 'Consciousness at the Crossroads', vertido para o português lusitano, em tradução oblíqua, como 'Os Caminhos Cruzados da Consciência', tendo um subtítulo, ausente na versão original, denominado 'Conversas com o Dalai Lama sobre ciência do cérebro e budismo'. Na época, convivendo com uma pessoa da Tailândia, adepta religiosa do budismo, perguntei-lhe o que pensava daquilo; ela riu-se e disse que 'era algo natural', visto que, cada vez mais, o budismo estava passando a ser visto como religião e também como uma 'filosofia de vida', com preceitos existências, lado a lado com a laicidade e valorizando o conhecimento do cérebro. De fato o livro tem esse realce. E realmente, ao longo dos últimos tempos, essa dimensão do budismo como 'filosofia de vida' tem se acentuado, calcando-se na tradição oriental da reflexão, na emancipação interior frente aos dogmas que regulam por delegação exógena os comportamentos individuais, no (auto)conhecimento, etc. Por tudo isso e muito mais, a leitura de 'Os Caminhos Cruzados da Consciência' é uma leitura alvissareira. Aí abaixo alguns preceitos dessa dimensão do budismo como 'filosofia de vida'. 

1. A dor é inevitável, o sofrimento é opcional.

Nós tendemos a pensar que reagimos aos eventos que trazem consigo a semente de tristeza ou da alegria, mas, na verdade, reagimos ao que os fatos significam para nós. Nós só podemos sofrer por aquilo a que demos importância. Portanto, para evitar sofrimento desnecessário, por vezes, apenas um passo para trás,desanexar emocionalmente e ver as coisas de outra perspectiva. É difícil, mas com a prática você aprende. Na verdade, uma outra frase budista nos mostra o caminho: “Tudo o que somos é o resultado do que pensamos; É fundada em nossos pensamentos e é feito de nossos pensamentos. “
2. Alegrai-vos porque em toda parte é aqui e tudo é agora.
Muitas vezes perdemos a vida enquanto estamos amarrados ao passado ou preocupados com o futuro. No entanto, o budismo nos ensina que temos apenas o aqui e agora. Portanto, devemos aprender a estar totalmente presentes, para desfrutar de cada momento como se fosse o primeiro e o último. Não mergulhar no passado ou sonhar com o futuro, se concentrar no momento presente, porque é onde você vai encontrar as chaves para a felicidade.
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3. Tenha cuidado com o exterior, bem como seu interior, porque tudo é um.

Somos uma unidade física e espiritual, mas muitas vezes nos esquecemos. Às vezes nos preocupamos muito sobre como cuidar do corpo e esquecemos a alma, enquanto em outras vezes nos preocupamos muito com  nosso equilíbrio psicológico e negligenciamos aspectos importantes, tais como dieta e exercícios. No entanto, para encontrar um estado de bem-estar verdadeiro é imperativo que a mente e o corpo estejam equilibrados.
4. Melhor usar pantufas do que tentar colocar  tapete no mundo.
Às vezes, ou porque superestimamos nossas forças ou porque não estamos cientes da magnitude da situação, estabelecemos metas que vão além de nossas capacidades. Em seguida, geramos um estresse desnecessário. No entanto, para encontrar a paz interior, é importante estar ciente de nossas forças e nossa dose de recursos, e qualquer caminho tem que começar de nós mesmos, antes de mudarmos o que não gostamos no mundo, mudemos o que não gostamos em nós mesmos.
5. Não ferir os outros com o que causa dor a si mesmo.
Esta é uma das máximas do budismo que, se aplicada ao pé da letra, estaríamos praticamente eliminado todas as leis e preceitos morais. No entanto, esta frase budista vai além do clássico “não faça aos outros o que você não quer fazer para você”, pois envolve, acima de tudo, uma profunda compreensão de nós mesmos e, uma grande empatia para outros.
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6. Não é mais rico quem tem mais, mas quem precisa menos.

Apesar de não estarmos conscientes disso, o nosso desejo de mais, seja no material ou emocional, é a principal fonte de nossas preocupações e desapontamentos. Quando aprendemos a viver com pouco e aceitando tudo que a vida nos oferece no momento, podemos alcançar uma vida mais equilibrada e reduzir a tensão e stress. Entender que já temos todo necessário para atingir a paz interna e felicidade é um ensinamento que traz tranquilidade na caminhada e evita a ansiedade e desgaste incessante de sempre achar que a felicidade está logo ali na frente, mas nunca aqui.
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7. Para entender tudo, é preciso esquecer tudo.

Quando somos pequenos, estamos abertos à aprendizagem, não temos idéias preconcebidas. No entanto, à medida que crescemos nossa mente está cheia de condicionamentos sociais que nos diz como as coisas devem ser, como devemos nos comportar e até mesmo o que pensar. Estamos tão imbuídos nesse contexto que não percebemos que nossa mente se tornou uma caixa muito estreita que nos aprisiona. Então, se você quer mudar e ver as coisas de outra perspectiva, o primeiro passo é se separar das crenças e estereótipos que o mantem amarrado. Neste sentido, uma outra frase budista nos ilumina: “No céu, não há distinção entre o leste e o oeste, são as pessoas que criam essas distinções em sua mente e depois pensam que são verdadeiras“.
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8. O ódio não diminui ódio. O ódio diminui com o amor.

Gerar violência, raiva produz ressentimento. É algo que quase nunca aplicamos quando nos envolvemos em discussões nas quais somos guiados por nossas emoções mais negativas, respondemos às críticas com outro comentário e um ataque ainda mais forte. No entanto, o ódio só gera ódio, a única maneira de contrariar o seu efeito é o de proporcionar amor, respondendo com emoções positivas. Não se apaga fogo com mais fogo.

9. Dê, mesmo se você tiver muito pouco para dar.

Esta é uma das mais antigas frases budistas, e algumas pesquisas na área da psicologia positiva mostraram que a gratidão e a entrega é um dos caminhos que conduzem à felicidade. Não é sobre dar com intuito de receber algo, mas dar motivado pelo prazer que sente ao ajudar alguém.

2 comentários:

  1. Gostei do texto. Embora mereça algumas reflexões.
    Por mais que tenhamos tentado, parece que a sombra do cogito cartesiano ainda paira sobre o conhecimento. Falar de pensamento, consciência ou cérebro, e não entrelaçar o corpo (sendo tanto quanto) a essas "instâncias" do saber ou da existência humana, ainda vejo no ar, a concepção dicotômica, mente/corpo, consciência/corpo ou cérebro/corpo, sempre dando ao pensamento (as vezes de forma sutil), um certo grau de superioridade.
    O pensamento se desmancha no corpo e vice-versa. Embora, muitas vezes, acontecem coisas no corpo que foge ao pensamento. Esse fenômeno pode ser muito bem observado nas artes. O corpo vai muito além das sensações. Embora sejam elas, que despertam (provocam) o universo metafísico da existência corpórea, por meio da experiência sensível. Pois, é através desda que damos sentidos e significados as coisas. O corpo, enquanto campo do vidente e do visível, forma toda uma cadeia ontológica, onde se fazem presentes: o conhecimento, as relações humanas e demais coisas que fazem parte da existência do homem. Sempre tenho visto, até mesmo, no pensamento oriental, o cuidar do corpo pelo (maioria das vezes) viés da alimentação e da atividade física. Embora, esses dois cuidados sejam importantes, para o tão "bem estar" desejado, a dimensão corpo vai muito além, desses cuidados. Sem o fluxo da experiência sensível, permeando a existência, apenas, podemos ter um corpo saudável, uma consciência de determinada coisa, um pensamento articulado com o cognitivo, mas, não teremos um Ser formado pela dialética do Sentir, Pensar e Agir, os quais, são os fundadores ontológico do homem.

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  2. Valeu, Poeta! Dentre os aspectos que realça, diversos elementos poderiam ser destacados em argumentação. Refiro apenas dois:

    1) Uma questão de base linguística. No idioma tibetano, como de resto em muitas línguas orientais, a existência de dualismos dicotômicos não é, em substância (conteúdo), algo muito comum, para não dizer mesmo, em muitos casos, inexistente. Portanto, não está presente, por exemplo, a dicotomia corpo x espírito (ou alma ou mente...). A questão é que, na tradução para as ‘línguas ocidentais’, ou, como é o caso, latinas, por não existir nelas e no imaginário ontológico (enquanto história do ser) a unidade compreensiva/de inteligibilidade tibetana, não se verte em patamar apropriado a significação, de modo que a propensão é pela reiteração da dualidade. Já vi, mais de uma vez, orientais se espantarem com esse fato. E com razão, não só por existir base factíca para o ‘espanto”, como por a base de conhecimento deles, a sua, digamos, filosofia, ser bem mais antiga do que a ocidental. São civilizações milenares, perante as quais o ocidente e o seu conhecimento ainda não deram muitos passos, no tocante ao ‘entendimento do que é o ser’ (isso nada tem a ver com fazer bombas, armas modernas, inventos com poder eletrônico de destruição, etc. Nisso o ocidente é crack). Mesmo o conhecimento crítico ocidental padece dos limites do eurocentrismo, bastando, para provar isso, examinar a história intelectual europeia, para ver como muitos teóricos (franceses, alemães, ingleses...) justificaram barbáries, como o colonialismo (e a matança por ele promovido) e o nazismo.

    2) Os limites das ciências humanas em relação à fisiologia, isto é, ao estudo das funções físicas e bioquímicas dos seres vivos - designadamente do ser humano. Isto posto, a base linguística/conceitual que predomina nas abordagens envolvendo temas desta área é a das ciências físico-naturais, visto que efetivamente são elas que realizam estudos nesse campo.

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