Por José Alexandre
Ramos
O título deste meu texto de opinião sobre a leitura
de Não É Meia Noite Quem Quer de António Lobo Antunes, numa tão
simples, comprimidida e (aparentemente?) muito redutora palavra, tanto podia
servir para abrir como para fechar o resumo sobre o que nos diz este livro, o
28º título do escritor, publicado em Outubro de 2012. A razão para tal é
simples: parcas ou muitas palavras podem ser, ao mesmo tempo, excessivas e
demasiadas quando opinamos sobre um livro de António Lobo Antunes, pelo menos
os que foram escritos, mais ou menos, desde O Arquipélago da Insónia.
Até porque Não É Meia Noite Quem Quer reafirma a dificuldade
de ler este autor, cujo discurso se vem tornando cada vez mais fragmentado, no
intuito de ampliar os pensamentos ao nível da palavra escrita e lida. Fica ao
critério do leitor – como o afirma António Lobo Antunes há muito tempo – cuidar
de ter a chave correcta para o decifrar, chave essa que não existe em mais
nenhum lugar senão dentro de nós. O certo é que é mesmo verdade o que o
escritor tantas vezes alerta: temos que partir para a leitura despidos de (pre)
conceitos, e de forma humilde. O livro acaba por ser o leitor que o constrói
mas, para tal acontecer, é necessário que haja total empatia entre quem lê e o
texto. Pode demorar até que essa simbiose surja, ou alías, até que fique
perceptível para o leitor obstinado e curioso (não para aquele que desiste ao
fim de 50 páginas), mas acaba por acontecer, no meio de muito esforço, esforço
este que vale muito a pena.
Se pudéssemos fazer um resumo, o livro é sobre uma
mulher (o autor não lhe dá um nome), a narradora, se quisermos assim chamar, de
cinquenta de dois anos, professora, separada, vítima de cancro da mama e
consequente mastectomia, que vem num fim de semana despedir-se da casa em
Peniche onde cresceu ela e seus irmãos, e decidir dar termo à sua vida. Assim
que chega, o novelo das memórias que a casa obviamente suscita começa a
desenrolar-se, nas primeiras impressões da infância de antes e depois do
suicídio do seu irmão mais velho - ela é a mais nova de quatro irmãos, e a única
rapariga [moça, no português brasileiro] -, memórias que se vão encadeando no discurso da narradora, sem haver
qualquer evolução cronológica dos eventos, apresentando as outras personagens à
medida que o pensamento as evoca. A mãe é uma das personagens mais presentes e
que maior influência exerce sobre a narradora, uma mãe que se tornou amarga
após (ou já o seria antes?) o suicídio do filho mais velho, resignada como o
seu marido que se torna alcoólico pelas mesmas razões. Pelo meio, o segundo
irmão mais velho (designado como o irmão não-surdo) que vai para África combater
e regressa tolhido do stress pós-traumático, e o outro, o irmão surdo, que
conhecemos como uma pessoa rebelde por ser tomado como diferente, incompreendido,
quase marginalizado. Surge ainda Tininha, que conhecemos como a vizinha com
quem em miúda a narradora brincava, sendo depois a indiferente doutora
Clementina, médica da narradora no curso da sua doença, mas sem dar importância
à amizade da infância, tomando uma atitude distante. À medida que as
recordações da infância se vão misturando com o passado mais recente, ficamos a
saber do marido de quem acaba por se separar depois de ter abortado, da morte
do pai após longos anos dependente da bebida, do envolvimento amoroso da
narradora com uma colega mais velha, entre muitos outros factos.
São apenas apontamentos de personagens e do que,
numa primeira mirada, elas representam para a mulher que as vai evocando ao
longo do livro. Não são só estas, outras personagens vão surgindo que, apesar
de não as considerar menos importantes (se o são apenas por que não tantas
vezes evocadas), decidi não referir, assim como não importa referir aqui
pormenores e episódios das vivências desta mulher, já que não é possível isolá-los
do contexto em que são evocados. No fundo, não existe história (o que não é
novidade para quem lê António Lobo Antunes), o que existe são pensamentos e
sentimentos da vida de alguém que vão interpelando e se interligando com os
sentimentos e pensamentos de outras pessoas. E como o pensamento não se
estrutura num simples esquema, também não podemos resumir como numa sinopse o
que nos transmite Não É Meia Noite Quem Quer.
No livro habita a personagem (deixamos de lado
agora a designação – errada – de “narradora”) e os espectros da sua vida. Nada
nos garante, enquanto lemos, que seja de facto uma mulher de meia idade que nos
fala, se quisermos podemos pensar que o nosso diálogo com o livro é feito
através de alguém senil e demente, ou de alguém que já morreu, ou de alguém que
talvez estivesse a sonhar (ainda: do escritor que tenta projectar numa
personagem e factos fictícios a sua própria experiència e a si mesmo? Porque
terá dito António Lobo Antunes que este é o seu livro mais biográfico?). E por
isso também não é garantido que os factos sejam os reais, isto é, os que a
personagem efectivamente viveu, experimentou, conheceu. No fundo, são também os
meus, os teus, os deles. Os nossos. Estes espectros fazem parte de nós, basta
mudarmo-lhes os nomes, substituir as circunstâncias, alterar as afinidades... e
somos nós dentro do livro. Da minha experiência pessoal, eu sonhei com o livro,
ou melhor: sonhei com a personagem e suas angústias, mas o sonho era sobre eu
próprio, sobre o que me angustia. Que outra prova podia haver para mim?
O que resulta de muito valioso é quando percebemos
a forma como as palavras e as expressões estão tão bem colocadas como se
conseguíssemos “ler” o pensamento da personagem (e por aí chegarmos ao ponto de
termos a sensação de estarmos a “ouvir” o nosso próprio pensamento). É
interessante constastar isto se entendermos como se estrutura, por exemplo, um
trecho musical, como se ligam dois ou três acordes para se fazer uma melodia. E
será isto, na minha opinião, que quer dizer António Lobo Antunes quando afirma
“Ninguém escreve como eu, nem eu próprio”.
A terminar, como se um post scriptum:
não se consegue opinar sobre um livro de António Lobo Antunes sem evocar outros
da sua autoria, bem como referir a sua forma de escrever. Já que muitas vezes
até parece que estamos a ler algo que não ficou escrito no(s) livro(s)
anterior(es)...
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Fonte: http://alaptla.blogspot.com.br/2014/04/jose-alexandre-ramos-sobre-leitura-de.html
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