segunda-feira, 28 de setembro de 2015

Crepúsculo da memória, temporalidade degradada e melancolia da finitude

Fachada do museu René Magritte, em Bruxelas, Bélgica 

Por Ivonaldo Leite

O tempo é uma superfície oblíqua e ondulante que só a memória é capaz de fazer mover e aproximar
(José Saramago) 

Entre a morte e as ruínas históricas pode ser estabelecida uma relação que evoca necessariamente uma reflexão sobre a degradação temporal. Os sentimentos que experimentamos sobre esse tribunal do tempo, sobre essa temporalidade degradada, nos provocam uma deprimente tristeza.
Ao constatarmos o perecer de uma vitalidade consciente, o falecimento de uma pessoa estimada, atormentamo-nos no desconsolo das lembranças, mesmo quando se busca apoio nas crenças religiosas. Assim é a morte. Ela nos aporta uma pergunta sem resposta: ‘Por quê?’ Por não termos uma resposta confortante, emerge uma dor profunda e, na sua sequência, a melancolia que se nos apodera ora nos oprime no desaparecimento, ora nos indaga nos tormentos sobre o significado das vidas individuais. Lágrimas são vertidas.
Se a sensação vazia do desaparecimento que sentimos, diante do túmulo, nos provoca o luto e nos aprisiona à passividade, é na indagação sobre o significado e a validade das vidas individuais onde podemos encontrar o caminho que nos conduz a superar o desconsolo melancólico, para devolvermo-nos  ao mundo ativo da história. Perante o morto não há consolo, pois ele pertence ao domínio do desaparecimento e da finitude. Somente com o nosso retorno ao mundo ativo da história dos vivos, podemos reconciliar-nos com a universalidade da vida. Quer dizer, é na reconciliação com a vida que temos o lugar onde poderemos encontrar a valorização do desaparecido. Contudo, não como desaparecido em si, mas na expressão de sua universalidade vivida, no produto de sua atividade, que se apresenta como legado e na significação exemplificativa.  
Se é verdade que a analogia entre as ruínas históricas e a morte leva-nos necessariamente à reflexão sobre o crepúsculo das vidas individuais, também o é que ela nos conduz à introspecção indagativa sobre a degradação do patrimônio histórico dos lugares. Praças, casas, prédios, etc., com raízes históricas em distantes idos, são a memória, um reflexo da ‘cor do tempo quando passa’, a alma de modos de vida de determinada época materializada em construções, lembrando-nos que, em boa medida, o nosso lugar presente foi edificado pela ação das gentes de tempos outros. Quando o patrimônio histórico de uma cidade não é respeitado, não sendo preservado, a sua memória verte lágrimas. E limita os seus habitantes a um “presentismo” marcado pelo analfabetismo histórico.
Tal como o perecer das vidas individuais, a desatenção ao patrimônio histórico representa o ocaso do próprio lugar. Daí que, em cidades com ‘longas raízes históricas’, o poder público estabeleça instâncias administrativas específicas (departamentos) para cuidar da preservação da memória histórica, criando, por exemplo, como iniciativa de fomento ao turismo, corredores culturais (não físicos, portanto) na rota de antigos prédios, casas e casarões. Bem sabe-se, nessas cidades, que, além do seu patrimônio histórico ser um ativo turístico e de captação de recursos, se dele elas não cuidarem não terão futuro. Afinal, a construção deste é resultado do labor de homens e mulheres que, como cantou Vandré, têm “a certeza na frente, a história na mão.”


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