Por Lolô Sganzerla
O tempo que me habita não é o tempo das coisas. As coisas, elas têm um
tempo próprio. Elas começam e acabam e transformam a gente nesse durante, num
ritmo que é delas - e isso aí vira o nosso tempo. Mas as coisas, elas são como
as estações do ano. Por exemplo, eu me pergunto como as árvores conseguem
superar os invernos. Você não? Você nunca se espanta? Olhando pra elas lá,
firmes, imperiosas, isoladas, nuas?
Admiro a paciência do carvalho. A impassividade dos pinheiros. Elas têm
a compreensão profunda da hora certa, a paciência da espera para as coisas com
hora marcada. É que as árvores vivem a eternidade do tempo certo. Elas não têm
nem antes nem depois: são somente o agora.
Já eu… eu não. Ao contrário de mim, as árvores não têm vontade. Você já
viu uma árvore ansiosa? Uma árvore em crise de pânico?
Como seria possível para nós, filhos do acaso, saber a precisão do tempo
de cada coisa? Como acertar o tempo certo, com a exatidão da folha, que se
recolhe, impassível, na espera de desabrochar com mais beleza? Esse instinto de
relógio cuco não me pertence - desses que não atrasam um segundo e vêm com um
pássaro impiedoso para não perder uma chance de me lembrar que tudo tem um
tempo próprio: o amor, a solidão, o sexo, o riso.
Alguns povos tinham como sagrado esse papo do tempo das coisas, da
medida exata, do momento presente. Mais que uma elegia ao equilíbrio, era o
culto ao instante. Eles não subestimavam o poder do agora. Admirei. É um
exercício para os fortes esse de lembrar de nunca esquecer que tudo pode mudar
a qualquer momento. Diante disso, eu especulo: bastaria a demanda correta, um
gesto, uma exigência para acertar o passo de cada um na dança da existência,
que é sempre rumo ao fim? Seria possível conviver em paz com o que está sempre
se esgotando?
Olhar o presente de frente é saber que só ele existe. É viver na
finitude, no que escorre pelos dedos. Viver com isso tudo na sua cara exige a “franqueza”
das crianças. Porque você vai cair na tentação de esquecer que tudo,
absolutamente tudo, acaba. Você vai se perder nas bobagens do dia a dia ou
transformar a agilidade da moça do mercado em uma pedra filosofal capaz de
determinar o sucesso ou fracasso da sua existência - e resumir isso tudo apenas
numa atitude inadequada e mal direcionada, para não apontar tantos dedos...
Porque é perturbador lembrar o tempo todo que tudo, absolutamente tudo, passa.
Menos o tempo das coisas.
O tempo das coisas é eterno. Mesmo que você não esteja mais presente,
que tenha decidido ir embora, ou mesmo quando a gente decide abandonar tudo e
vem aquela ânsia de sair pelo mundo e recomeçar. Também nessa hora o tempo das
coisas está lá, pra colocar você no seu devido lugar. E você, quando saiu,
deixou o tempo da sua ausência. Nunca o do seu retorno. A volta, ela é sempre
mais rápida. Tudo fica mais fácil quando a gente já conhece o caminho.
Eu queria poder decretar uma lei que impedisse que algumas frases fossem
compostas. Algumas palavras deveriam ser como elementos químicos, ter naturezas
incompatíveis, combinações impossíveis de acontecer, impensáveis. Talvez assim
eu conseguisse tornar algumas ações impraticáveis, algumas dessas que eu
pratiquei. Elas seriam possibilidades que não existiriam mesmo nos sonhos mais
loucos. Mas os sentimentos, assim como as palavras, são elementos complexos,
independentes, que se ligam das formas mais estranhas para criar uma dinâmica
particular. Eles se tornam mais profundos do que o que se deseja ou se espera
deles, num compasso maluco que nos ensina, mais uma vez, a precisão da hora
certa.
Por isso, veja bem, a importância do tempo das coisas, você me entende?
Não dá pra acelerar ou deixar pra trás o ritmo dos sentimentos sem se tornar um
hipócrita, um cretino ou cínico. Eles, como as coisas, têm o tempo que tem que
ter e não dependem mais de mim ou de você ou de ninguém. Mesmo que pareça
impossível concentrar no corpo a calma das árvores, o tempo das coisas acontece
em nós. Justo em nós, que ficamos sempre perplexos pelas dissonâncias do que
nos acontece. Justo em nós, que olhamos assombrados para o nada, nosso destino,
nosso fim. Justo em nós, que precisamos transformar em nosso o tempo do outro… sem
jamais esquecer que ele é do outro.
E eu? Eu tenho que aprender a me demorar mais. A me demorar mais em
você, nas coisas. Precisamos de mais tempo. Não sou só eu que me perco na
duração do instante. É que as palavras - e junto com elas os sentimentos - se
encontram e se combinam de forma abrupta na trama dos eventos, eu acho que só
para determinar algumas escolhas. Me aconteceu você. Eu aconteci em você.
Abortamos. Tempo errado.
Por isso, eu preciso encontrar uma forma de conquistar a impassividade
dos pinheiros que sabem de cor a hora de cada pinha. Eu sou sempre antes,
sempre cedo demais e, quando eu me dou conta, já é tarde demais. Aí o que me
resta é perambular pelas dobras do tempo, quando ele deixa de ser linear, e se
dobra em mim, na minha dor, na minha incapacidade em apreender o ritmo do
mundo. Nessa hora ele habita o pensamento, ali se vive tudo ao mesmo tempo -
nesse espaço impossível -, o antes, o depois e o agora. Não importa a ordem.
Será que é assim que abandonamos o que já foi sem nos lançarmos, como uma
flecha, ao abismo que é o futuro?
Foi assim que eu aprendi que tem coisas piores do que ficar sozinho.
Poderia não ter amigos. Poderia ser incapaz de lapidar a palavra.
Só não pode ser cedo demais ou tarde demais. Agora preciso esperar que o
próprio tempo dissipe esse aborto que é o cedo demais.
Nessa hora eu invejo profundamente toda e cada árvore. Elas vivem os
invernos da alma com leveza. A tristeza, ela também é parte da vida. Então vou
falar uma coisa, dessas que todo mundo sabe mas não tem muita coragem de falar
em voz alta: precisamos aprender o tempo do triste. Eu e você. Para lembrar que
ele também é tempo e, como tudo, passa. Só que eu, eu tenho uma natureza
alegre. Ela é pouco tolerante ao tempo do cinza. Uma combinação difícil. Como
conciliar forças tão divergentes? Se eu tivesse a natureza dos bambus, me
curvaria, quieta, nos dias de vento e esperar passar. Se eu cultivar na alma a
natureza de todas as árvores, será que eu consigo aplacar a fúria da pressa?
Porque o tempo, o tempo é tudo o que temos. O tempo das coisas que duram
ou das que terminam. Há uma dignidade no fim. E há uma dignidade no tempo dos
sentidos, assim como há uma dignidade na tristeza também.
Só assim podemos conviver com nossos erros e acertos ou nossas vidas
destruídas: aceitando as coisas com o tempo de cada uma. De frente. No
presente. Porque também há uma dignidade no fracasso. E há uma dignidade
inclusive no desespero - a mais terrível forma de tristeza. É uma tristeza que
não se quer se saber triste nem aceitar o tempo da espera. Mas também é quando
a dor do erro descobre que não tem mais o que esperar. Quando não há o que
esperar, o tempo aquieta. Paralisa.
Aí você me pergunta: e você?
Eu?
Eu desesperei - enquanto
todos encaravam, com horror e espanto, a fragilidade de uma alma incapaz de se
render ao tempo das coisas.
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Fonte: http://obviousmag.org/
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