Por Ana Marcarini
Cada
vez que abrimos os olhos pela manhã é como se tivéssemos despertado de uma
pequena morte, com uma vida inteiramente nova pela frente, certo? Bem, não é
exatamente assim. O sono pode até ser interpretado como uma pequena morte. O
que não condiz muito com a realidade é essa vida nova em folha de presente. A
conquista de uma vida diferente requer muito além de uma noite de morte.
Somos
seres constituídos de inúmeras camadas, pequenas representações de nós mesmos
que vão se formando a partir da nossa interação com os que nos apoiam; mas,
principalmente, das colisões com os que se opõem a nós. Essas camadas
sobrepostas vão esculpindo as diferentes personagens que nos dispomos a
interpretar.
Corremos
o sério risco de nos encantarmos além da conta com uma ou outra dessas
personagens, desconsiderando sua natureza volátil e efêmera. Esse apego nos
leva a acreditar que somos de fato a representação criada para alimentar as
relações; ficamos, assim, aprisionados numa casca criada para ser casulo e não
morada. Ao insistirmos em permanecer ali acomodados, nos afastamos cada vez
mais da possibilidade de romper a casca, experimentar as asas e arriscar o voo.
E, depois de algum tempo percebemos que o corpo de lagarta já não nos serve
mais e que não somos ousados o suficiente para sermos borboletas. A realidade?
Nos metamorfoseamos em recatados bichos da seda.
Um
único bicho da seda é capaz de tecer um casulo formado por um fio perfeito, sem
cortes ou emendas, que podem chegar a medir 1,3 km de comprimento (sim, são
quilômetros mesmo!). Ao completarem 20 dias de vida, as lagartas são mortas por
desidratação, expostas a um temperatura de 105 graus (temperatura ideal para
matar a larvinha, sem danificar o casulo). A parte que era viva no bicho da
seda é descartada por ser inútil. Todo o cuidado é voltado para o invólucro, a
parte externa, o substrato do tecido raro.
Assim
como a larvinha, nossa parte viva é desidratada, morta, ressecada, para que a
nossa bela casca seja desejada, aceita e cobiçada. O fato é que a larvinha não
tem escolha. Nós temos! O mais assustador de tudo, no entanto, é que somos
capazes de escolher conscientemente ser casca. Permitimos que a nossa porção
viva seja sacrificada para garantir um ilusório lugar de importância fornecido
pela aceitação daqueles a quem outorgamos julgar-nos adequados ou não.
Num
mundo que se edifica sobre os pilares da aparência atraente, da vida perfeitamente
adequada aos padrões estéticos e supostamente morais, quem se recusa a
"produzir seda", fica relegado a patamares distantes da realeza que
determina quem está dentro ou quem está fora.
Ora,
por favor, me deixem de fora! Prefiro a vida errante de uma monarca (a
borboleta, que fique claro!), à comedida e sacrificada existência da nobreza do
bicho da seda. Minha alma anseia pela desobediência. Minha alma quer se
encharcar de vida. Meu corpo só será belo e feliz se for digno de abrigar essa
alma rebelde que acredita na transitoriedade da vida, que não aceita ser
contida em casulos perfeitos. Eu escolho dizer "NÃO" ao
reconhecimento alheio que depende da morte daquilo que sou em minha essência;
que resume minha importância àquilo que pareço ser. Eu nasci para o voo livre.
Interessa-me a amplidão do céu, não a perfeição da vitrine.
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Fonte: lounge.obviousmag.org
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