domingo, 27 de setembro de 2015

'A morte sem mestre'



Embora com algum atraso, fica aqui o registro da partida do poeta lusitano Herberto Helder, considerado que foi, por muitos, 'o maior poeta poeta português da segunda metade do século XX'. Da sua obra me aproximei pelas sendas do surrealismo, âmbito em que a sua escrita começou por se situar. Figura um tanto enigmática, recusando prêmios, bem como conceder entrevistas e deixar-se fotografar, faleceu em março último, deixando uma obra monumental. Daí ser tido como um 'segundo Fernando Pessoa'. Aí acima, em voz, o realce em um dos seus últimos  trabalhos ('A Morte sem Mestre'); abaixo, um poema do seu livro 'A Faca não Corta Fogo'. No centro da narrativa, a morte. "O quanto se trabalha para que a noite apareça/e à noite se vê a luz que desaparece na mesa". Foi assim. Foi-se Herberto Helder. Shanti, shanti, shanti!

Por Herberto Helder 
que eu aprenda tudo desde a morte,
mas não me chamem por um nome nem pelo uso das coisas,
colher, roupa, caneta,
roupa intensa com a respiração dentro dela,
e a tua mão sangra na minha,
brilha inteira se um pouco da minha mão sangra e brilha,
no toque entre os olhos,
na boca,
na rescrita de cada coisa já escrita nas entrelinhas das coisas,
fiat cantus! e faça-se o canto esdrúxulo que regula a terra,
o canto comum-de-dois,
o inexaurível,
o quanto se trabalha para que a noite apareça,
e à noite se vê a luz que desaparece na mesa,
chama-me pelo teu nome, troca-me,
toca-me
na boca sem idioma,
já te não chamaste nunca,
já estás pronta,
já és toda

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