Por Fabíola Simões
Adoro a prosa poética de Mia Couto. Entre tantos
livros, tenho preferência por meu primeiro exemplar: "Um rio chamado
tempo, uma casa chamada terra". Revisito suas passagens e me aprofundo em
suas reflexões carregadas de sensibilidade e poesia. Uma delas, em particular,
me atrai: "O importante não é a casa onde moramos. Mas onde, em nós, a
casa mora".
Alguns lugares permanecem vivos dentro da gente,
independente do tempo em que vivemos neles. Sobrevivem ao tempo, às despedidas
e desistências, às necessidades de se seguir em frente, ao desapego. Resistem
como alicerces tão firmes quanto foram as lembranças, e mesmo sendo objetos,
perduram repletos de memórias.
Não morei naquela casa, mas durante algum tempo foi
o lar de meus pais. Antes do bilhete de despedida, era lá que passávamos os
finais de semana, entre pães de queijo do sul de Minas e conversas na varanda,
enquanto meu filho e sobrinho experimentavam as primeiras brincadeiras. Era uma
casa grande, centenária, tombada pelo patrimônio histórico, com janelões do
tamanho de portas, e altura do teto a perder de vista. Uma casa bonita do
interior que se destacava na descida da Matriz em direção à praça do coreto.
Ainda me lembro da última noite. Já tinha
fotografado seus cômodos e agora a estante da sala reinava vazia, restando
apenas a televisão. Preferimos nos distrair da realidade e assistimos o filme "A Suprema Felicidade". De lá vinha a
frase: "Nada é só bom", e entendiamos que aquele momento era o nosso
"não bom", mas ainda assim seria revisitado muitas outras vezes, como
um refúgio de lembranças e saudades.
Um ano depois, de férias pela região, esbarramos na
casa aberta à visitação pública. Era época de natal, e ali funcionava uma
feirinha de artesanato comemorativa. Entrei de mãos dadas com o filhote e na
cozinha chorei. Chorei não pela falta da casa, mas sim pela presença viva dela
dentro de mim. Por enxergar minha mãe abrindo o forno e eu ajudando com a
louça. Por ouvir a voz dos meus irmãos através da musiquinha natalina e
imaginar momentos que não tiveram chance de existir. Por sentir vapores que só
eu conhecia. Vapores de vida, amor, nascimentos, despedidas, alegrias e tristezas.
Não havia mais nada de nosso lá. Ainda assim,
aquelas paredes tinham tanto a dizer. Sabiam de um tempo nem sempre fiel ao que
se esperava dele, mas um tempo bom.
A casa permanece à venda. Espero que os novos
proprietários tenham sonhos, muitos deles, e que todos se realizem naqueles
corredores e varandas. Que coloquem uma mesa grande na sala de jantar e
discutam desde o preço da empadinha do Vadinho até os rumos da política atual.
Que as crianças andem de patins pelos cômodos e façam uma sessão de cinema no
tapete da sala. Se houver um casal, que saibam envelhecer juntos, e passeiem de
mãos dadas pelas ruas da vizinhança. Que as flores do jasmim manga sejam
colhidas no chão e oferecidas pelas crianças às suas mães. E que as paredes
contem um pouco de nossa história àqueles que virão, para que cuidem com
delicadeza daquilo que um dia quis ser parte de nossa eternidade.
Mia Couto tem razão. Já não importa mais a casa
onde morei. Importa sim, a casa dentro de mim. Sabendo que vou me lapidando a
partir do que existe, mas também daquilo que vivi e deixei partir. Entendendo
que minha fachada não é somente o reboco visível, mas sim muitos outros
alicerces imperceptíveis aos olhos. Descobrindo que também abrigo palavras não
ditas, caminhos não escolhidos, sonhos não realizados. Aceitando a vida como
ela é, cheia de acertos e imperfeições, percalços e contradições, desafios e
realizações...
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Fonte: http://lounge.obviousmag.org/
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