Com o rebaixamento da nota do Brasil pela agência Stand & Poor's, parece que iniciamos uma "nova fase" da dramática crise brasileira, e talvez o Governo da Presidente Dilma tenha chegado naquela situação em que a tropa em combate já não sabe se a batalha do dia apenas antecede a seguinte ou se é a última, imposta pela derrota. O ultimato dado por entidades empresariais, e vocalizado na imprensa pela Folha de São Paulo com um editorial intitulado 'A Última Chance', diz muito. Entender as causas da crise brasileira é algo que requer um significativo esforço, dadas as variáveis políticas, econômicas e sociais envolvidas. Contudo, trata-se de algo necessário, sobretudo em função das consequências que dela podem advir. Para o amanhã que nos aguarda, brasileiros e brasileiras de todas as idades. Escrevi o artigo aí baixo para uma revista portuguesa, buscando atender o propósito de tentar explicar ao leitor de um outro país o que está acontecendo no Brasil.
POLÍTICA, PODER E GOVERNO NO BRASIL:
DA HISTÓRIA À FARSA
Por Ivonaldo
Leite
A
se fazer uma analogia com o livro 1968, o
ano que não terminou, do jornalista Zuenir Ventura, é de se dizer que 2015
é um ano que, no Brasil, “não vai terminar”.
Após
uma dura disputa eleitoral entre os dois partidos que têm polarizado a vida
política brasileira ao longo dos últimos vinte anos (PT e PSDB), 2015 iniciou-se
com a posse de Dilma Rousseff, reeleita para o seu segundo mandato de quatro
anos. A investidura da Presidente no cargo, contudo, não veio acompanhada de um
ambiente de estabilidade assegurando-lhe as condições da governabilidade. Isto
em decorrência de um conjunto de razões, coforme, a seguir, poremos em relace
algumas delas, sem necessariamente obedecer a uma cronologia em termos de ordem
hierárquica.
PT, lulismo e Governo Dilma:
contradições, equívocos e esgotamento
Uma
primeira razão a considerar diz respeito ao fato de o pacto político firmado pelos
governos petistas, aglutinando uma aliança de classes e grupos sociais sob a
chancela do que se convencionou chamar de lulismo[1], começou a ser estiolado
já no primeiro mandato de Dilma Rousseff. Este pacto teve como correspondência
no plano político-econômico a tentativa de junção entre teses com afiliação
neoliberal e formulações desenvolvimentistas, supostamente com raízes na Escola
Desenvolvimentista que tem entre os seus expoentes Raúl Prebish e Celso
Furtado. Dessa tentativa de “casamento” surgiu então o chamado
neodesenvolvimentismo. Nas palavras de Plínio de Arruda Sampaio Jr., pode-se
dizer que o neodesenvolvimentismo buscou conciliar pregações neoliberais - como
austeridade fiscal e ausência de
restrição ao capital internacional - com aspectos do antigo desenvolvimentismo,
como “o comprometimento com o crescimento econômico, papel regulador do Estado,
sensibilidade social”[2].
Como
elaboração teórico-conceptual, no entanto, o neodesenvolvimentismo deixa muito
a desejar. As suas vagas premissas deambulam em torno dos instrumentos que
devem ser mobilizados pela política econômica para superar os obstáculos ao
crescimento e conciliar as exigências do equilíbrio macroeconômico com os
objetivos da política industrial e as necessidades orçamentárias da política
social. Não são colocados em causa factores danosos à nação, como a conexão
entre dependência externa e segregação social.
A
propósito, é de se assinalar a conivência do neodesenvolvimentismo com a
“sangria” da taxa básica de juros praticada no Brasil, que beneficia o capital
voltado à especulação financeira. Essa taxa, que já é alta, conforme os padrões
internacionais, em julho último, atingiu os 14,25% ao ano, conforme pode ser
obervado no gráfico a seguir.
O aumento da referida taxa tem como
consequência imediata a elevação das despesas do governo, com o pagamento de
juros aos detentores de títulos da dívida pública. Cada ponto na elevação da
mesma resulta num acréscimo de despesa anual de 15 bilhões de reais.
No curso do que estamos a assinalar, a partir
de 2012, os sinais de cisão do pacto petista-lulista tornaram-se evidentes.
Como decorrência, para as eleições de 2014, a frente de forças políticas em
torno da qual esse pacto foi celebrado fracionou-se, resultando daí até mesmo
uma nova candidatura presidencial, do então governador do estado de Pernambuco
Eduardo Campos. Este só não foi a votos em decorrência do acidente aéreo que
lhe tirou a vida, sendo então substituído pela ex-Ministra do Meio Ambiente (e
ex-petista) Marina Silva, com quem havia feito uma aliança.
A mencionada cisão resulta,
significativamente, das próprias contradições oriundas da base de sustentação
do pacto e dos limites do neodesenvolvimentismo. Chegou um momento em que a
indução ao consumo (através do crédito, do endividamento das famílias), os
agrados à iniciativa privada (benefícios fiscais, subsídios, abreviamento de
procedimentos – como no caso cãs licenças ambientais – para pavimentar caminhos
a empresas), os imperativos monetaristas, etc., tornaram-se uma mistura de
difícil gestão. Frente a isso, não tendo considerado devidamente a dependência
externa e com uma pauta de exportações unisetorial, o governo viu-se com as
consequências da queda dos preços das commodities,
no quadro da crise mundial, com a China, por exemplo, reduzindo as compras de
produtos brasileiros.
Uma segunda razão da falta de condições de
governabilidade da Presidente Dilma remonta ao ano 2013, naquilo que ficou
conhecido como as Jornadas de Junho de 2013. Tratou-se de um amplo conjunto de
manifestações, com considerável grau de espontaneidade e com uma pauta bastante
diversificada de reivindicações, embora o protesto contra as condições de
serviços públicos tenha sido um fator central da eclosão da insatisfação
popular, sendo de referir, nesse sentido, a rejeição ao aumento dos preços dos
transportes.
Essas manifestações materializaram aquilo que,
em análise, já se ressaltava: o divórcio entre o PT/seus aliados (partidários e
nos movimentos sociais) e as manifestações de massa no país, que durante anos
estiveram sob a hegemonia do bloco petista. Lideranças desse bloco a tudo
assistiram de forma um tanto pasma. Multidões, quase diariamente, percorriam
ruas portando cartazes e pronunciando palavras de ordem, sem abrir espaço em
suas fileiras para os segmentos que tradicionalmente davam direção a essas
manifestações. Contudo, a dado momento, a ação direta dos black blocs – investindo contra bancos, por exemplo – passou a ser
evidenciada e criminalizada, a repressão policial foi acionada e as
manifestações, perdendo apoio na classe média e a simpatia dos meios de
comunicação, se foram esvaziando.
Seja como for, as manifestações de Junho de
2013 parecem ter representado um divisor de águas na relação do governo com a
população. O bloco petista que se havia recomposto após a eclosão do escândalo
do chamado mensalão (compra de apoio político), entre 2005 /2006,
sendo prova dessa recomposição a reeleição do Presidente Lula e a vitória da Presidente
Dilma em 2010, via-se agora (2013) diante de uma ampla insatisfação da
população e, ao mesmo tempo, às portas com o julgamento, pelo Supremo Tribunal
Federal, do dito mensalão, processo que se arrastava há cerca de sete anos. Do
julgamento decorreu a prisão de destacados líderes do PT, como José Dirceu; por
outro lado, não faltou polêmica em torno da apreciação judicial, com advogados
apontando o ‘não cumprimento do devido processo legal’ e prejuízos à defesa dos
réus.
Foi nesse contexto que a Presidente Dilma foi
a votos em 2014, buscando a sua reeleição, e que foi obtida por uma pequena
diferença de cerca de 3% dos votos sobre o seu adversário Aécio Neves.
As lideranças petistas não souberam tirar as
devidas lições das chamadas Jornadas de Junho de 2013. Não perceberam (ou não
quiseram perceber) que o seu bloco, após mais de dez anos acoplado aos
“negócios do Estado”, havia se divorciado da base social que historicamente lhe
dava suporte. Sem respaldo popular substancial, o Governo Dilma tornou-se
fragilizado na relação com o parlamento.
Uma terceira razão da instabilidade da
administração petista refere-se ao estelionato político-eleitoral cometido na eleição
de 2014. Isto é, a Presidente Dilma, em campanha, não só criticou duramente
propostas do seu adversário - assumidas por ele em dado momento como
impopulares - como reiterou diversas vezes que, uma vez reeleita, não adotaria
nenhuma medida que contrariasse a agenda social. Empossada para o segundo
mandado, todavia, desdisse com atos o seu discurso de campanha, ao implementar
pontos do programa do candidato Aécio Neves, o que deixou os seus apoiadores, à
esquerda, perplexos. Se, diante do percurso das gestões petistas, o apoio, na
segunda volta, à candidata Dilma já tinha custado um esforço grande a esses
setores à esquerda, a referida postura da Presidente não só os frustrou como os
fez retraírem-se no seu respaldo. De resto, as parcelas da população atingidas
com os efeitos da política econômica monetarista voltaram-se contra o governo e, como consequência, a
aprovação ao mesmo caiu drasticamente.
Last
but not least, uma quarta razão da crise vivida pelo
Governo Dilma Rousseff diz respeito às consequências da opção feita pelo
próprio PT na busca de recursos para o financiamento de campanhas eleitorais.
Ou seja, o partido, sob a condução do setor que há anos o controla (onde José
Dirceu era possivelmente a principal referência, depois de Lula), seguiu um
caminho que, em princípio, rejeitava e passou a buscar dinheiro junto a grandes
empresas, como as empreiteiras. Daí foram montadas articuladas redes de
captação de fundos, cujos reflexos episódios
como o mensalão e o escândalo da Petrobrás trouxeram ao conhecimento
público.
A honestidade pessoal da Presidente é
reconhecida até por adversários, mas o funcionamento das referidas redes, no
mais das vezes, ocorre às margens da anuência da chefia do poder executivo. Além
disso, os seus operadores não agem necessariamente apenas em função de
“propósitos políticos”, mas também pessoais, obtendo dividendos. Trata-se de um modus operandi que tem sido usual na história política brasileira (e
quiçá, em maior ou menor medida, seja mesmo inerente ao funcionamento da
“democracia de mercado”), mas o que se esperava do PT era que não capitulasse
perante ele, pois nasceu combatendo-o. Desse ponto de vista, existe no país um
tratamento seletivo dos casos de corrupção: os que envolvem o PT são abordados/apreciados
exaustivamente e com rigor; os que envolvem os outros partidos, de direita,
não. Com isso, dissemina-se no imaginário nacional o vergonhoso constrangimento
da derrota político-moral petista.
A grande imprensa, monopolizada, como avant-garde dessa disseminação, serve de
suporte à nova direita que se tem formado no país, uma direita mais orgânica e
ideologicamente estruturada, a qual - seja comandando manifestações de rua,
seja atuando no contexto universitário – tem como propósito liquidar a própria
ideia de esquerda. O combate obstinado ao marxismo, a sintonia com outras
organizações de direita na América Latina (como métodos de ação semelhantes), a
realização de cursos para jovens sobre pensadores (neo)liberais, etc., e mesmo
a defesa de posições políticas autoritárias, propagando intolerância, configuram
a face dessa nova direita brasileira, tripudiando sobre a derrota
político-moral do PT.
Espetáculo da farsa, dúvidas
sobre o futuro e uma lição
Estamos,
no Brasil, numa daquelas situações em que, como é próprio de “um ano que não
vai terminar”, os acontecimentos se sucedem numa velocidade que “ultrapassa a
marcha do tempo”. No continente da História, sem que se assuma a postura de
vidente, é possível - ligando passado e presente, conjuntura e estrutura,
observando o jogo do poder entre classes e grupos sociais, etc. – tentar esboçar
tendências de delimitação do futuro. Na atual conjuntura brasileira, contudo,
essa não é uma tentativa fácil. Parecem imprevisíveis os rumos políticos
brasileiros. A Presidente Dilma Rousseff conseguirá reunir condições/apoios
para terminar o mandato? Renunciará? A chapa que disputou a eleição em 2014, o
que inclui o Vice-Presidente Michel Temer, será cassada e assim ter-se-á uma
nova eleição? A Presidente sofrerá impeachment? Se sim, assumirá o
Vice-Presidente ou, após um eventual afastamento da Presidente, ele também será
afastado e será convocada outra eleição?
Todas essas hipóteses estão em aberto, e, por
agora, às vésperas da Primavera tropical, não há como apontar maior propensão à
concretização de nenhuma delas, sobretudo diante de factos como: 1) o avanço das
investigações da Operação Lavo Jato na esfera política; 2) os contraditórios
sinais de um pacto entre o Governo Dilma e o empresariado, com destaque para a
voz da alta finança; 3) a oficialização do movimento na Câmara dos Deputados
solicitando o impeachment da Presidente; 4) a divisão, até o momento, no
principal partido de oposição, o PSDB, resultado da disputa interna em função
da próxima candidatura presidencial; 5) a influência/posição condicionante que
as agências de classificação de risco passaram a exercer sobre a economia
brasileira, após a Standard & Poor’s
rebaixar a nota do país.
Seja
como for, entretanto, o que se afigura como fáctico é o macambúzio ponto ao
qual aportou o Governo do PT, bem como o próprio partido. De concessão em concessão,
chegou numa situação em que não tem mais aneis para entregar, e então oferta os
próprios dedos. Mete o seu programa na gaveta e adota o da oposição derrotada
nas urnas. Mas, mesmo assim, nem isso lhe garante a continuidade. Em verdade, não
equacionou a relação entre atuação institucional e não institucional, e, por
priorizar absolutamente a primeira, desprezou a sua histórica base social.
Agora, com a derrota na institucionalidade, tem os canais de interlocução
obstruídos no tocante a quem poder-lhe-ia apoiar. A dada altura, em decorrência
dos rumos do PT, houve quem fizesse um paralelo com o peronismo na Argentina[3], para dizer que esse seria
o destino do partido – ser uma espécie de ‘federação peronista’. Mas, ao que
parece, nem isso. Posições de determinados segmentos do peronismo, mesmo
atualmente, estão bem à frente do petismo lulista. De resto, não vale a pena
tentar fazer a história se repetir. Cai-se na oscilação entre tragédia e farsa[4]. Aliás, farsa por farsa,
no Brasil, já há uma “original”: a de as relações políticas e de poder terem
gestado um jogo em que o governo renega a história do seu partido e a oposição
deseja derrubá-lo mesmo ele adotando o programa oposicionista. A farsa em
espetáculo.
Ao
fim e ao cabo, existe algo que não pode deixar de ser retido, como lição, do
percurso dos governos comandados pelo PT e da trajetória do próprio partido:
por um lado, a subestimação do jogo do poder que perpassa as relações entre
classes e grupos sociais, com reflexo no Estado como instância de ‘condensação
material’ dos interesses dessas forças; por outro lado, o desprezo pela teoria,
em nome da realpolitik e do “praticismo
cego”, pondo de parte o debate teórico como meio de formação para a necessária
inteligibilidade da realidade e enfretamento dos desafios inerentes à ação
política.
[1] Sobre a definição do lulismo, ver
SINGER, André. Os sentidos do lulismo:
reforma gradual e pacto conservador. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
[2] Cf. SAMPAIO JR.,
Plínio de A. Desenvolvimento e neodesenvolvimento: tragédia e farsa, in Serviço Social & Sociedade, São
Paulo, nº 112, out./dez. 2012, p. 679.
[3] A propósito das comparações entre o
PT e o peronismo, ver LUCA, Juan Bautista. Origem e transformação do
enraizamento sindical do Partido Justicialista (Argentina) e do Partido dos
Trabalhadores (Brasil), in Revista
Brasileira de Ciência Política, Brasília, nº 05, jan./jul. 2011.
[4] A propósito, tendo
em conta o contexto francês, em O 18
Brumário de Luís Bonaparte, Marx afirma: “Hegel observa, em uma de suas obras, que todos os factos
e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim
dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia,
a segunda como farsa. Caussidière por Danton, Luís Blanc por Robespierre, a
Montanha de 1845-1851 pela Montanha de 1793-1795, o sobrinho pelo tio. E a
mesma caricatura ocorre nas circunstâncias que acompanham a segunda edição do
Dezoito Brumário! Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como
querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que
se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado. A tradição de
todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos. E
justamente quando parecem empenhados em revolucionar-se a si e às coisas, em criar
algo que jamais existiu, precisamente nesses períodos de crise revolucionária,
os homens conjuram ansiosamente em seu auxilio os espíritos do passado,
tomando-lhes emprestado os nomes, os gritos de guerra e as roupagens, a fim de
apresentar a nova cena da história do mundo nesse disfarce tradicional e nessa
linguagem emprestada. Assim, Lutero adotou a máscara do apóstolo Paulo, a
Revolução de 1789-1814 vestiu-se alternadamente como a república romana e como
o império romano, e a Revolução de 1848 não soube fazer nada melhor do que
parodiar ora 1789, ora a tradição revolucionária de 1793-1795. De maneira
idêntica, o principiante que aprende um novo idioma, traduz sempre as palavras
deste idioma para sua língua natal; mas só quando puder manejá-lo sem apelar
para o passado e esquecer sua própria língua no emprego da nova, terá
assimilado o espírito desta última e poderá produzir livremente nela. O exame
dessas conjurações de mortos da história do mundo revela de pronto uma
diferença marcante”. Ver MARX, Karl e ENGELS, Friedrich, O 18 Brumário de Luís
Bonaparte, in Obras Escolhidas de Karl
Marx e Friedrich Engels, vol. 01, São Paulo, Editora Alfa-Omega, s/d, p.
203.
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