segunda-feira, 14 de setembro de 2015

Entre a História e a Farsa

Com o rebaixamento da nota do Brasil pela agência Stand & Poor's, parece que iniciamos uma "nova fase" da dramática crise brasileira, e talvez o Governo da Presidente Dilma tenha chegado naquela situação em que a tropa em combate já não sabe se a batalha do dia apenas antecede a seguinte ou se é a última, imposta pela derrota. O ultimato dado por entidades empresariais, e vocalizado na imprensa pela Folha de São Paulo com um editorial intitulado 'A Última Chance', diz muito. Entender as causas da crise brasileira é algo que requer um significativo esforço, dadas as variáveis políticas, econômicas e sociais envolvidas. Contudo, trata-se de algo necessário, sobretudo em função das consequências que dela podem advir. Para o amanhã que nos aguarda, brasileiros e brasileiras de todas as idades. Escrevi o artigo aí baixo para uma revista portuguesa, buscando atender o propósito de tentar explicar ao leitor de um outro país o que está acontecendo no Brasil. 


POLÍTICA, PODER E GOVERNO NO BRASIL: DA  HISTÓRIA À FARSA

Por Ivonaldo Leite

A se fazer uma analogia com o livro 1968, o ano que não terminou, do jornalista Zuenir Ventura, é de se dizer que 2015 é um ano que, no Brasil, “não vai terminar”.
Após uma dura disputa eleitoral entre os dois partidos que têm polarizado a vida política brasileira ao longo dos últimos vinte anos (PT e PSDB), 2015 iniciou-se com a posse de Dilma Rousseff, reeleita para o seu segundo mandato de quatro anos. A investidura da Presidente no cargo, contudo, não veio acompanhada de um ambiente de estabilidade assegurando-lhe as condições da governabilidade. Isto em decorrência de um conjunto de razões, coforme, a seguir, poremos em relace algumas delas, sem necessariamente obedecer a uma cronologia em termos de ordem hierárquica.

PT, lulismo e Governo Dilma: contradições, equívocos e esgotamento
Uma primeira razão a considerar diz respeito ao fato de o pacto político firmado pelos governos petistas, aglutinando uma aliança de classes e grupos sociais sob a chancela do que se convencionou chamar de lulismo[1], começou a ser estiolado já no primeiro mandato de Dilma Rousseff. Este pacto teve como correspondência no plano político-econômico a tentativa de junção entre teses com afiliação neoliberal e formulações desenvolvimentistas, supostamente com raízes na Escola Desenvolvimentista que tem entre os seus expoentes Raúl Prebish e Celso Furtado. Dessa tentativa de “casamento” surgiu então o chamado neodesenvolvimentismo. Nas palavras de Plínio de Arruda Sampaio Jr., pode-se dizer que o neodesenvolvimentismo buscou conciliar pregações neoliberais - como  austeridade fiscal e ausência de restrição ao capital internacional - com aspectos do antigo desenvolvimentismo, como “o comprometimento com o crescimento econômico, papel regulador do Estado, sensibilidade social”[2].
Como elaboração teórico-conceptual, no entanto, o neodesenvolvimentismo deixa muito a desejar. As suas vagas premissas deambulam em torno dos instrumentos que devem ser mobilizados pela política econômica para superar os obstáculos ao crescimento e conciliar as exigências do equilíbrio macroeconômico com os objetivos da política industrial e as necessidades orçamentárias da política social. Não são colocados em causa factores danosos à nação, como a conexão entre dependência externa e segregação social.
A propósito, é de se assinalar a conivência do neodesenvolvimentismo com a “sangria” da taxa básica de juros praticada no Brasil, que beneficia o capital voltado à especulação financeira. Essa taxa, que já é alta, conforme os padrões internacionais, em julho último, atingiu os 14,25% ao ano, conforme pode ser obervado no gráfico a seguir.

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O aumento da referida taxa tem como consequência imediata a elevação das despesas do governo, com o pagamento de juros aos detentores de títulos da dívida pública. Cada ponto na elevação da mesma resulta num acréscimo de despesa anual de 15 bilhões de reais.
No curso do que estamos a assinalar, a partir de 2012, os sinais de cisão do pacto petista-lulista tornaram-se evidentes. Como decorrência, para as eleições de 2014, a frente de forças políticas em torno da qual esse pacto foi celebrado fracionou-se, resultando daí até mesmo uma nova candidatura presidencial, do então governador do estado de Pernambuco Eduardo Campos. Este só não foi a votos em decorrência do acidente aéreo que lhe tirou a vida, sendo então substituído pela ex-Ministra do Meio Ambiente (e ex-petista) Marina Silva, com quem havia feito uma aliança.
A mencionada cisão resulta, significativamente, das próprias contradições oriundas da base de sustentação do pacto e dos limites do neodesenvolvimentismo. Chegou um momento em que a indução ao consumo (através do crédito, do endividamento das famílias), os agrados à iniciativa privada (benefícios fiscais, subsídios, abreviamento de procedimentos – como no caso cãs licenças ambientais – para pavimentar caminhos a empresas), os imperativos monetaristas, etc., tornaram-se uma mistura de difícil gestão. Frente a isso, não tendo considerado devidamente a dependência externa e com uma pauta de exportações unisetorial, o governo viu-se com as consequências da queda dos preços das commodities, no quadro da crise mundial, com a China, por exemplo, reduzindo as compras de produtos brasileiros.
Uma segunda razão da falta de condições de governabilidade da Presidente Dilma remonta ao ano 2013, naquilo que ficou conhecido como as Jornadas de Junho de 2013. Tratou-se de um amplo conjunto de manifestações, com considerável grau de espontaneidade e com uma pauta bastante diversificada de reivindicações, embora o protesto contra as condições de serviços públicos tenha sido um fator central da eclosão da insatisfação popular, sendo de referir, nesse sentido, a rejeição ao aumento dos preços dos transportes.
Essas manifestações materializaram aquilo que, em análise, já se ressaltava: o divórcio entre o PT/seus aliados (partidários e nos movimentos sociais) e as manifestações de massa no país, que durante anos estiveram sob a hegemonia do bloco petista. Lideranças desse bloco a tudo assistiram de forma um tanto pasma. Multidões, quase diariamente, percorriam ruas portando cartazes e pronunciando palavras de ordem, sem abrir espaço em suas fileiras para os segmentos que tradicionalmente davam direção a essas manifestações. Contudo, a dado momento, a ação direta dos black blocs – investindo contra bancos, por exemplo – passou a ser evidenciada e criminalizada, a repressão policial foi acionada e as manifestações, perdendo apoio na classe média e a simpatia dos meios de comunicação, se foram  esvaziando.
Seja como for, as manifestações de Junho de 2013 parecem ter representado um divisor de águas na relação do governo com a população. O bloco petista que se havia recomposto após a eclosão do escândalo do chamado mensalão (compra de apoio político), entre 2005 /2006, sendo prova dessa recomposição a reeleição do Presidente Lula e a vitória da Presidente Dilma em 2010, via-se agora (2013) diante de uma ampla insatisfação da população e, ao mesmo tempo, às portas com o julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal, do dito mensalão, processo que se arrastava há cerca de sete anos. Do julgamento decorreu a prisão de destacados líderes do PT, como José Dirceu; por outro lado, não faltou polêmica em torno da apreciação judicial, com advogados apontando o ‘não cumprimento do devido processo legal’ e prejuízos à defesa dos réus.
Foi nesse contexto que a Presidente Dilma foi a votos em 2014, buscando a sua reeleição, e que foi obtida por uma pequena diferença de cerca de 3% dos votos sobre o seu adversário Aécio Neves.  
As lideranças petistas não souberam tirar as devidas lições das chamadas Jornadas de Junho de 2013. Não perceberam (ou não quiseram perceber) que o seu bloco, após mais de dez anos acoplado aos “negócios do Estado”, havia se divorciado da base social que historicamente lhe dava suporte. Sem respaldo popular substancial, o Governo Dilma tornou-se fragilizado na relação com o parlamento.     
Uma terceira razão da instabilidade da administração petista refere-se ao estelionato político-eleitoral cometido na eleição de 2014. Isto é, a Presidente Dilma, em campanha, não só criticou duramente propostas do seu adversário - assumidas por ele em dado momento como impopulares - como reiterou diversas vezes que, uma vez reeleita, não adotaria nenhuma medida que contrariasse a agenda social. Empossada para o segundo mandado, todavia, desdisse com atos o seu discurso de campanha, ao implementar pontos do programa do candidato Aécio Neves, o que deixou os seus apoiadores, à esquerda, perplexos. Se, diante do percurso das gestões petistas, o apoio, na segunda volta, à candidata Dilma já tinha custado um esforço grande a esses setores à esquerda, a referida postura da Presidente não só os frustrou como os fez retraírem-se no seu respaldo. De resto, as parcelas da população atingidas com os efeitos da política econômica monetarista voltaram-se  contra o governo e, como consequência, a aprovação ao mesmo caiu drasticamente.
Last but not least, uma quarta razão da crise vivida pelo Governo Dilma Rousseff diz respeito às consequências da opção feita pelo próprio PT na busca de recursos para o financiamento de campanhas eleitorais. Ou seja, o partido, sob a condução do setor que há anos o controla (onde José Dirceu era possivelmente a principal referência, depois de Lula), seguiu um caminho que, em princípio, rejeitava e passou a buscar dinheiro junto a grandes empresas, como as empreiteiras. Daí foram montadas articuladas redes de captação de fundos, cujos reflexos episódios  como o mensalão e o escândalo da Petrobrás trouxeram ao conhecimento público.
A honestidade pessoal da Presidente é reconhecida até por adversários, mas o funcionamento das referidas redes, no mais das vezes, ocorre às margens da anuência da chefia do poder executivo. Além disso, os seus operadores não agem necessariamente apenas em função de “propósitos políticos”, mas também pessoais, obtendo dividendos.  Trata-se de um modus operandi que tem sido usual na história política brasileira (e quiçá, em maior ou menor medida, seja mesmo inerente ao funcionamento da “democracia de mercado”), mas o que se esperava do PT era que não capitulasse perante ele, pois nasceu combatendo-o. Desse ponto de vista, existe no país um tratamento seletivo dos casos de corrupção: os que envolvem o PT são abordados/apreciados exaustivamente e com rigor; os que envolvem os outros partidos, de direita, não. Com isso, dissemina-se no imaginário nacional o vergonhoso constrangimento da derrota político-moral petista.  
A grande imprensa, monopolizada, como avant-garde dessa disseminação, serve de suporte à nova direita que se tem formado no país, uma direita mais orgânica e ideologicamente estruturada, a qual - seja comandando manifestações de rua, seja atuando no contexto universitário – tem como propósito liquidar a própria ideia de esquerda. O combate obstinado ao marxismo, a sintonia com outras organizações de direita na América Latina (como métodos de ação semelhantes), a realização de cursos para jovens sobre pensadores (neo)liberais, etc., e mesmo a defesa de posições políticas autoritárias, propagando intolerância, configuram a face dessa nova direita brasileira, tripudiando sobre a derrota político-moral do PT.     

Espetáculo da farsa, dúvidas sobre o futuro e uma lição  
Estamos, no Brasil, numa daquelas situações em que, como é próprio de “um ano que não vai terminar”, os acontecimentos se sucedem numa velocidade que “ultrapassa a marcha do tempo”. No continente da História, sem que se assuma a postura de vidente, é possível - ligando passado e presente, conjuntura e estrutura, observando o jogo do poder entre classes e grupos sociais, etc. – tentar esboçar tendências de delimitação do futuro. Na atual conjuntura brasileira, contudo, essa não é uma tentativa fácil. Parecem imprevisíveis os rumos políticos brasileiros. A Presidente Dilma Rousseff conseguirá reunir condições/apoios para terminar o mandato? Renunciará? A chapa que disputou a eleição em 2014, o que inclui o Vice-Presidente Michel Temer, será cassada e assim ter-se-á uma nova eleição? A Presidente sofrerá impeachment? Se sim, assumirá o Vice-Presidente ou, após um eventual afastamento da Presidente, ele também será afastado e será convocada outra eleição?
 Todas essas hipóteses estão em aberto, e, por agora, às vésperas da Primavera tropical, não há como apontar maior propensão à concretização de nenhuma delas, sobretudo diante de factos como: 1) o avanço das investigações da Operação Lavo Jato na esfera política; 2) os contraditórios sinais de um pacto entre o Governo Dilma e o empresariado, com destaque para a voz da alta finança; 3) a oficialização do movimento na Câmara dos Deputados solicitando o impeachment da Presidente; 4) a divisão, até o momento, no principal partido de oposição, o PSDB, resultado da disputa interna em função da próxima candidatura presidencial; 5) a influência/posição condicionante que as agências de classificação de risco passaram a exercer sobre a economia brasileira, após a Standard & Poor’s rebaixar a nota do país.
Seja como for, entretanto, o que se afigura como fáctico é o macambúzio ponto ao qual aportou o Governo do PT, bem como o próprio partido. De concessão em concessão, chegou numa situação em que não tem mais aneis para entregar, e então oferta os próprios dedos. Mete o seu programa na gaveta e adota o da oposição derrotada nas urnas. Mas, mesmo assim, nem isso lhe garante a continuidade. Em verdade, não equacionou a relação entre atuação institucional e não institucional, e, por priorizar absolutamente a primeira, desprezou a sua histórica base social. Agora, com a derrota na institucionalidade, tem os canais de interlocução obstruídos no tocante a quem poder-lhe-ia apoiar. A dada altura, em decorrência dos rumos do PT, houve quem fizesse um paralelo com o peronismo na Argentina[3], para dizer que esse seria o destino do partido – ser uma espécie de ‘federação peronista’. Mas, ao que parece, nem isso. Posições de determinados segmentos do peronismo, mesmo atualmente, estão bem à frente do petismo lulista. De resto, não vale a pena tentar fazer a história se repetir. Cai-se na oscilação entre tragédia e farsa[4]. Aliás, farsa por farsa, no Brasil, já há uma “original”: a de as relações políticas e de poder terem gestado um jogo em que o governo renega a história do seu partido e a oposição deseja derrubá-lo mesmo ele adotando o programa oposicionista. A farsa em espetáculo.    
Ao fim e ao cabo, existe algo que não pode deixar de ser retido, como lição, do percurso dos governos comandados pelo PT e da trajetória do próprio partido: por um lado, a subestimação do jogo do poder que perpassa as relações entre classes e grupos sociais, com reflexo no Estado como instância de ‘condensação material’ dos interesses dessas forças; por outro lado, o desprezo pela teoria, em nome da realpolitik e do “praticismo cego”, pondo de parte o debate teórico como meio de formação para a necessária inteligibilidade da realidade e enfretamento dos desafios inerentes à ação política.



[1] Sobre a definição do lulismo, ver SINGER, André. Os sentidos do lulismo: reforma gradual e pacto conservador. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

[2] Cf. SAMPAIO JR., Plínio de A. Desenvolvimento e neodesenvolvimento: tragédia e farsa, in Serviço Social & Sociedade, São Paulo, nº 112, out./dez. 2012, p. 679. 

[3] A propósito das comparações entre o PT e o peronismo, ver LUCA, Juan Bautista. Origem e transformação do enraizamento sindical do Partido Justicialista (Argentina) e do Partido dos Trabalhadores (Brasil), in Revista Brasileira de Ciência Política, Brasília, nº 05, jan./jul. 2011.

[4] A propósito, tendo em conta o contexto francês, em O 18 Brumário de Luís Bonaparte, Marx afirma: “Hegel observa, em uma de suas obras, que todos os factos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa. Caussidière por Danton, Luís Blanc por Robespierre, a Montanha de 1845-1851 pela Montanha de 1793-1795, o sobrinho pelo tio. E a mesma caricatura ocorre nas circunstâncias que acompanham a segunda edição do Dezoito Brumário! Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado. A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos. E justamente quando parecem empenhados em revolucionar-se a si e às coisas, em criar algo que jamais existiu, precisamente nesses períodos de crise revolucionária, os homens conjuram ansiosamente em seu auxilio os espíritos do passado, tomando-lhes emprestado os nomes, os gritos de guerra e as roupagens, a fim de apresentar a nova cena da história do mundo nesse disfarce tradicional e nessa linguagem emprestada. Assim, Lutero adotou a máscara do apóstolo Paulo, a Revolução de 1789-1814 vestiu-se alternadamente como a república romana e como o império romano, e a Revolução de 1848 não soube fazer nada melhor do que parodiar ora 1789, ora a tradição revolucionária de 1793-1795. De maneira idêntica, o principiante que aprende um novo idioma, traduz sempre as palavras deste idioma para sua língua natal; mas só quando puder manejá-lo sem apelar para o passado e esquecer sua própria língua no emprego da nova, terá assimilado o espírito desta última e poderá produzir livremente nela. O exame dessas conjurações de mortos da história do mundo revela de pronto uma diferença marcante”. Ver MARX, Karl e ENGELS, Friedrich, O 18 Brumário de Luís Bonaparte, in Obras Escolhidas de Karl Marx e Friedrich Engels, vol. 01, São Paulo, Editora Alfa-Omega, s/d, p. 203.

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