Por Ana Macarini
A despeito de nossa
aparência exterior, que pode ou não concordar com a nossa essência, expelimos
por cada um de nossos poros o veneno ou o antídoto que brota do núcleo de nossa
personalidade original. Somos o que somos; não importa o que façamos para
disfarçar. É no descuido que somos honestos. É na falta de ensaio que acabamos
apresentando o nosso real e legítimo espetáculo. E, com o passar do tempo,
conforme vamos nos apropriando das situações, pessoas e cenários, vamos nos
esquecendo de vestir os figurinos, vamos ficando relaxados, acomodados na falsa
impressão de que já temos um lugar garantido nesse mundo.
Vagando eternamente num mar de calmaria e águas mornas,
podemos nos acostumar facilmente ao confortável abraço da mediocridade. Existe
uma aparente segurança nesse lugar, a salvo das agruras que circulam os
extremos. Pode nos parecer normal tornarmo-nos imperceptíveis, transparentes,
invisíveis. É uma espécie de paz que se encontra nesse ponto da curva, sem o
ardor da ambição e sem o peso de sustentar a atitude ética, sempre tão exigente
em nossas mínimas decisões.
A mediocridade é um tipo de droga socialmente aceita.
Entorpece, amolece, destempera. Sem que nos demos conta, surpreendemos nossa
imagem numa superfície polida qualquer a nos sorrir de volta. Um sorriso
estampado, esculpido, congelado. É até melhor que nem pensemos muito a
respeito, pois se por uma ousadia qualquer decidimos querer lembrar o porquê
sorrimos, corremos o risco de não achar motivo ou explicação. Corremos o risco
de não saber sorrir diferente daquela representação de nós mesmos no espelho. O
sorriso pronto e fácil é conquista de uma vida medíocre. Os medíocres não têm
pelo que chorar; não há perdas. Nunca haverá o que perder para uma vida pautada
no empate.
Nos inúmeros caminhos da vida cruzamos com faces
impecavelmente lisas e ausentes de marcas. São as faces sem rosto de pessoas
pasteurizadas. São as pessoas pasteurizadas que já vêm com rótulo de
ingredientes e sugestões de uso. Pessoas “bem-sucedidas”, cujo sucesso se relaciona
ao próximo carro que precisa ser mais caro do que o atual; cuja alegria se mede
pelas coisas que hoje podem ser compradas com o resultado do seu sucesso. E
corremos o enorme risco de acreditar que é isso o certo, que ser feliz é isso.
Corremos o perigo de vender o brilho nos olhos pra comprar a reluzente
ostentação de uma vida cheia de “conquistas”. Corremos o perigo de vender a
emoção que tira o fôlego pra comprar uma janela de frente pro mar. Tomara que a
gente nunca se esqueça de que ter a janela, não nos dá a posse do mar. E de que
para ver o mar não precisamos possuir nenhuma janela.
A nossa trajetória nessa vida tão errante e incerta
precisa estar fincada em valores que não sejam perecíveis, precisa ser
construída sobre algo que nos mova e que faça de nós pessoas reais,
necessárias. A nossa trajetória precisa ser fiel a alguma coisa que exista lá
fora, mas que tenha nascido dentro de cada um de nós. O que nos orienta precisa
ter a ambição de gerar felicidade além da nossa. O que nos move precisa nascer
de uma missão assumida para o bem de todos os que nos cercam, sejam de perto ou
de longe, nesse imenso mundo.
Sejamos, então, caprichosos em nossos mínimos gestos,
atitudes e ideais. Façamos de nosso ofício a nossa fonte de alegria. Escolhamos
para viver uma vida plena. Sejamos corajosos para escapar das armadilhas
douradas que podem nos transformar em pessoas ansiosas pelo fim; o fim do dia,
o fim do mês, o fim do ano. Acreditemos na nossa capacidade de construir coisas
valiosas pelo bem que elas encerram e não pelos bens que elas possam nos
proporcionar. Façamos cada uma de nossas escolhas de acordo com a crença de uma
existência que vale cada instante de vida. Porque viver sem riscos, sem
comprometimento e sem entrega pode até ser menos arriscado, mas é também a
maneira mais eficiente de tornar pequena uma vida que já é curta demais para o
tanto que esse mundo precisa de nós.
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Fonte: ounge.obviousmag.org
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