Dos textos críticos às reações questionadoras ao ENEM deste ano, este aí abaixo é um dos melhores. É uma resposta do Prof. Christian Duken (USP) ao colunista da Folha de São Paulo Hélio Schwartsman, que procurou adornar com tintas filosóficas as contestações ao ENEM. Há apenas um reparo, de natureza histórica, a ser feito no texto, mas que não tem a ver com o conteúdo da argumentação de Duken. O reparo diz respeito ao fato de que não procede a afirmação segundo a qual Marx dedicou O Capital a Darwin - o que ele fez foi oferecer-lhe um livro com uma dedicatória, como se faz em lançamentos de livros com autógrafos. O Capital foi dedicado, sim, a Wilhem Wolf, nas palavras de Marx, "um amigo inesquecível [como é próprio da franqueza das amizades], corajoso, fiel e pioneiro do proletariado." De resto, o artigo aporta consistentes subsídios na contraposição às 'miragens vermelhas' em que andam perdidos os críticos do ENEM.
Por Christian Duken
(Instituto de Psicologia da USP)
Nos anos 1990 a Folha de São Paulo era considerada um jornal de
esquerda. Diferente do Estadão, ela
ocupava um lugar ativo na redemocratização do país, incluindo-se no movimento
das Diretas Já e, posteriormente, dos Caras-pintadas que redundou na derrubada de
Collor. Nesta época tornou-se um ícone a propaganda que começava com
uma imagem ambígua, qual pontos ou pixels negros dispostas na tela.
Enquanto a câmera se afasta ouvimos que: “este homem pegou uma nação destruída,
recuperou a economia e devolveu orgulho a seu povo”, reduziu a inflação, dobrou
o produto interno bruto, aumentou o lucro das empresas, tudo isso subsidiado em
números e dados. Subitamente forma-se a imagem e descobrimos que a figura em
questão é Adolf Hitler. Mensagem final: “É possível contar um monte de mentiras
dizendo só a verdade. Por isso é muito importante tomar muito cuidado com a
informação no jornal que você recebe.”
Vinte
e sete anos depois leio a coluna de Hélio Schwartsman comentando o Enem de 2015,
e percebo como o anúncio que ganhou o Leão de Ouro em Cannes permanece atual.
Porta voz do movimento que quer a política fora da Educação e sóbrio
representante da tendência avaliativa como instrumento para modificação da
educação no país, Hélio aponta neste Enem um “generoso espaço para tópicos
e autores caros à esquerda”, uma vez que 31% dos autores da prova de humanas
jogam no time da esquerda (7.8% da prova total). Foi precisamente aqui que me
lembrei da peça de propaganda, mas agora em versão mais estatística. Ou seja,
se 31% são de esquerda, 69% são de direita? É possível contar mentiras dizendo a verdade, ainda que os
números eles mesmos não mintam jamais. Por este raciocínio a neutralidade
matemática impunha que faltavam ainda 19% para que a esquerda tivesse 50% do
Enem.
Nosso
bacharel em Filosofia pela USP, argumenta que o Inep devia buscar “ativamente
uma certa neutralidade ideológica no conjunto das questões”. Aqui o problema
não é a matemática, mas o conceito. Desde muito tempo não se considera mais que
podemos distinguir conteúdos ideológicos, politicamente tendenciosos, de sua
contrapartida científica, neutra e factual. A ideologia está nas articulações,
nas relações, no recorte dos fatos, na escolha dos temas, nunca apenas nos
autores brutos e suas escolas de pensamento. Eu diria que há pelo menos 27 anos
a própria Folha de São Paulo sabe muito bem disso. O beabá no
assunto reza que toda definição de ideologia é ela mesma ideológica. As
ciências humanas caracterizam-se por assumir isso como traço imanente de seu
objeto. Não estudamos apenas fenômenos, mas interpretações que os homens criam
para os fenômenos. Nesta época de crescente disponibilização e barateamento de
informação torna-se cada vez mais crucial desenvolver, em nossos alunos, a
capacidade para operar criticamente com interpretações. Aqui o truque básico,
contra o qual eles devem estar advertidos, quando se trata de ciências humanas,
é a crença na existência de discursos neutros, imparciais e científicos, no
sentido de se destacarem angelicalmente de todos os interesses humanos. Ora,
sabemos que este é o sonho de toda ideologia: infiltrar interesses políticos
como se estes fossem fatos. Portanto, desenvolver
ativamente uma neutralidade ideológicano Enem, requer um conceito
melhor de ideologia.
Há
uma diferença crucial entre esquerda e direita. A esquerda tende a politizar os
fatos, enquanto a direita tende a despolitizá-los. Por isso a esquerda dirá que
a direita faz política por baixo dos panos (é o conceito clássico de
ideologia), enquanto a direita dirá que a esquerda torna políticos assuntos que
são técnicos (é o conceito ofensivo de ideologia como algo que corrompe, seduz
e manipula a alma). Quando nosso colunista afirma que “vale a pena procurar um
‘pedigree’ dos autores citados” seria preciso perguntar qual o conceito de raça
aqui empregado? Quantas classes devemos contar neste conjunto?
Surge
então uma dificuldade. A esquerda joga com seu time a céu aberto, nomes
impressos nas camisas, patrocinadores e números claros às costas, como no filme do Monty Python: Marx com a 10, Žižek na ponta
esquerda, Judith Butler com a sete, Paulo Freire no meio; na zaga Sartre e
Simone de Beauvoir (claro, foram filiados ao Partido Comunista Francês), nas
laterais Karl Manheim e a Escola de Frankfurt. Agamben está no banco de
reservas, sendo observado pelo técnico Lenin, junto com todo surrealismo
francês. Darwin também, mas contundido – afinal, Marx dedicou O capital, ao autor de A origem das espécies. Foucault foi reprovado no teste
de vestiário quando descobriu-se um inchaço neoliberal em seu tendão de
Aquiles.
O
problema subsequente será discernir o pedigree das outras raças: Jesus Cristo,
por exemplo, joga na direita da Renovação Carismática ou na esquerda da
Teologia da Libertação? E os que trajam a camisa da religião por cima, mas por
baixo vestem o colete apertado do dinheiro, das armas e da exploração econômica
da fé. Outro vira lata: Keynes, que advogava a participação do Estado na
Economia, é um vermelhinho enrustido ou um liberal confesso? Consideremos que
um time assim escalado poderia equilibrar o campeonato da verdade: Heidegger
(que foi nomeado reitor de uma universidade nazista) no gol, Ezra Pound (que
falou na rádio italiana em favor do fascismo) na lateral direita, Joyce (que
batia na mulher) na zaga, Adam Smith e Saint Simon no meio campo (ambos
considerados revolucionários em suas épocas, mas depois viraram casaca). No
ataque está a geração inteira de 1968, libertários na juventude, que se
tornaram conservadores quando entraram para o time titular. Desafio qualquer um
a escalar um time que não possa ser qualificado como tendencioso pelo time
adversário. Contudo é esta ingenuidade abissal que move os que querem a
política fora dos conteúdos educativos.
E
quanto ao time da Folha seria o caso de perguntar se ele fez
a lição de casa que quer aplicar aos outros. Está com mais ou menos do que 31%
de esquerdistas entre seus articulistas?
Exagero
nos exemplos apenas para mostrar que nunca deveríamos pensar a ideologia como
inclusão das ideias aos seus autores, da pessoa ao grupo ao qual ela pertence,
mas a partir da articulação precisa de suas ideias em contexto. Neste caso
todas as questões do Enem exigiam interpretação de textos, ou domínio de
conceitos, critérios de rigor em ciências humanas. Bizarro que a direita pregue
a retórica da suspensão da oposição entre direita e esquerda, para, na primeira
ocasião, recorrer a ela quando está perdendo. Pior ainda: desconhecer a
diferença entre militância, conversão e manipulação com a crítica de conceitos
e o estudo de textos é inaceitável para quem quer especular sobre educação.
Aliás, não há nada de essencialmente novo em sua pequena nota sobre o assunto.
Escolhi este texto justamente porque ele representa bem certo pensamento médio
sobre a matéria.
O
tema da redação do Enem foi a violência contra a mulher no Brasil. Aqui o
encaminhamento dado por nosso articulista é menos condenatório. Se oequívoco anterior era considerar que autores de
esquerda, antes de serem pensadores, cientistas, literatos ou educadores são pessoas de esquerda o erro
subsequente é deslocar este raciocínio para temas. Passamos agora ao registro
dos temas sociais, que seriam propriedade privada da esquerda, enquanto a
direita defende, vamos dizer assim, a economia e o desenvolvimento.
Neste
ponto, nosso egresso uspiano deixou passar um “frango” clamoroso para todos
aqueles que se interessam por educação. Situações de avaliação não são apenas
competição entre os melhores para hierarquizar vencedores e perdedores. Seu
propósito não é aumentar o ressentimento social ou gerar métricas de
desempenho. A avaliação é um momento de aprendizagem e a prova tem um sentido
pedagógico. Ela instrui o aluno e o convida a pensar, dirigidamente, sobre um
problema. Por isso a escolha do tema não é a determinação anódina de um tópico
a discorrer, como se a cultura fosse um menu de trivialidades inconsequentes.
A
violência contra a mulher é justamente um destes problemas urgentes que carecem
de visibilidade pública, que vivem e sobrevivem de segredos internos, mentiras
privadas e amores mal geridos. É justamente um tema que incomoda porque não
sabemos bem como falar sobre ele, ou seja, uma escolha exata e acertada para
provocar alunos aderidos à servidão curricular e desacomodar colunistas que
tirariam nota vermelha no Enem deste ano.
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Fonte: http://blogdaboitempo.com.br/. Título original 'A ideologia vermelha do ENEM'
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