sábado, 24 de outubro de 2015

Indústria Cultural e Semiformação: a produção da subjetividade


Por Michel Aires de Souza

A indústria cultural é um termo crítico que procurou desmitificar  a idéia de que os meios de comunicação de massa produzem uma cultura genuinamente popular.  A cultura deixou de ser algo espontâneo e popular e passou a ser produzida por empresas e instituições que criam produtos e entretenimentos padronizados para o  grande público.  “Tal denominação evoca a idéia, intencionalmente polêmica, de que a cultura deixou de ser uma decorrência espontânea da condição humana, na qual se expressaram tradicionalmente, em termos estéticos, seus anseios e projeções mais recônditos, para se tornar mais um campo de exploração econômica, administrado de cima para baixo e voltado apenas para os objetos supra mencionados de produzir lucros e de garantir adesão ao sistema capitalista por parte do público.” (DUARTE, 2003, p.9). 
A indústria cultural poderia ter sido um instrumento de formação cultural, assumindo fins pedagógicos, mas  ela se tornou em sua história um instrumento de   deformação da cultura e da consciência.  Ela significou para a sociedade capitalista não somente  uma indústria que cria produtos e entretenimentos padronizados, mas também um poderoso instrumento de coesão social, que incute valores, preceitos, crenças, modos de ser, pensar, agir e valorizar,  servindo de referencial para todos viverem de forma pacifica. Foi ela que ajudou a construir e universalizar os valores da sociedade do consumo.  
Em sua história,  a função da indústria cultural foi o de  introjetar os valores, preceitos,   a visão de mundo e os padrões de conduta capitalista na interioridade do indivíduo massificado. Para este fim,  ela produziu e reproduz a semiformação através da disseminação de seus produtos e entretenimentos padronizados.  Com o ulterior desenvolvimento da indústria cultural,  a cultura formativa, típica das sociedades pré-capitalistas,  extinguiu-se e a semiformação tornou-se a condição existencial do homem contemporâneo. Foi através da semiformação que surgiu a subjetividade reificada e alienada  no interior das práticas sociais.  
Octávio Ianni, em seu livro 'A sociedade Global', detectou o desenvolvimento de uma nova cultura globalizada no mundo contemporâneo. Segundo ele, antigamente invadiam-se os mercados estrangeiros com mercadorias, mas hoje se invade culturas inteiras com informações, entretenimentos e idéias. Formam-se linguagens globais. “A cultura eletrônica da idéia global coloca-nos ante uma situação na qual sociedades inteiras comunicam-se mediante uma espécie de gesticulação macroscópica, que não é em absoluto linguagem no sentido usual” (Mcluhan apud Ianni, 1992, p.42). O que é local, regional, nacional, entra no jogo das relações internacionais ou propriamente globais. A cultura internacional popular nasce, circula e é consumida como mercadoria lançada simultaneamente em diferentes mercados nacionais. O padrão técnico e cultural dos países dominantes é até mesmo aperfeiçoado nos países dependentes. Como exemplo,  temos os programas da tv americana, européia e japonesa que são adotados pelos programas brasileiros, como “BigBrother”; “O aprendiz”;  “Domingão do Faustão”; “Silvio Santos”, onde são aperfeiçoados e até mudados. Há ainda anúncios de transnacionais como Coca-cola, Nike, Phillips, McDonalts e muitos outros que circulam como as mesmas propagandas em todos os continentes. Por sobre e além da cultura nacional popular, toma lugar e generaliza-se a cultura internacional popular que povoa o imaginário da audiência, público e massa. Diverte, distrai, irrita, ilude, carrega padrões e idéias. Nesse sentido, nos diz Ianni, é que a cultura internacional popular entra na construção e reconstrução da hegemonia dos grupos ou classes sociais que se articulam em escala global.
No mundo contemporâneo  com o advento da indústria cultural  houve um holocausto cultural. Não conhecemos mais a cultura popular como ela se manifestava nos períodos pré-capitalistas.  Segundo Alfredo Bosi, o patrimônio sócio-cultural perdeu-se ou encontra-se depositado em bibliotecas e museus como relíquias; o que acontece é a destruição de formas sociais de vida e de trabalho, modos de ser das coletividades, povos e culturas. Bosi critica ainda uma certa vertente culta, ocidentalizante, de fundo colonizador, que procura estigmatizar a cultura popular como fóssil correspondente aos estados de primitivismo, atraso e subdesenvolvimento. Para Bosi, a cultura são os modos de existir de uma nação, é o cotidiano “físico e simbólico e imaginário dos homens” (BOSI, 1992, p.324).
A cultura é a expressão de autenticidade de um povo, de seus valores e modos de ser, ver e compreender o mundo. Por esta razão, um povo que não preserva sua cultura é um povo sem história e sem identidade. Um indivíduo sem cultura é permeável a manipulação. Segundo Milton Santos, “o conceito de cultura está intimamente ligado às expressões da autenticidade, da integridade e da liberdade. Ela é uma manifestação coletiva que reúne heranças do passado, modos de ser do presente e aspirações, isto é, o delineamento do futuro desejado. Por isso mesmo, tem de ser genuína, isto é, resultar das relações profundas dos homens com o seu meio, sendo por isso o grande cimento que defende  as sociedade locais, regionais e nacionais contra as ameaças de deformação ou de dissolução de que podem ser vítimas. Deformar uma cultura é uma maneira de abrir a porta para o enraizamento de novas necessidades  e a criação de novos gostos e hábitos” (Santos, 2000, p.18)
O filósofo alemão Herbert Marcuse, no seu célebre texto 'Sobre o Caráter Afirmativo da Cultura',  de 1937,  entendeu a cultura como o entrelaçamento entre o mundo espiritual e simbólico com o processo histórico da sociedade, ou seja, o entrelaçamento entre o plano da reprodução ideal (cultura) e o plano da reprodução material (civilização).  Contudo, ele percebeu uma grande mudança no mundo moderno,   percebeu   que a cultura burguesa separou essas duas esferas. O mundo espiritual foi banido do plano material. A partir disso,  a arte e a cultura tornaram-se ideológicas.  “A separação da sociedade burguesa em dois mundos – o da reprodução material da vida (civilização) e o mundo espiritual das idéias, da arte, dos sentimentos, etc (cultura) – permitiu a essa sociedade justificar a exploração e alienação que a grande maioria sofria nas linhas de montagem e de produção, na administração burocratizada, e no cotidiano miserável”  (FREITAG, 1994, p. 69).
Marcuse  desvelou  que os ideais do iluminismo, de liberdade, felicidade, fruição do prazer, igualdade e verdade, ficaram apenas no plano da arte e da cultura espiritual burguesa, não se manifestando no plano da realidade. Estes valores tornaram-se ideológicos. Foi o que ele denominou de cultura afirmativa, ou seja, “aquela cultura pertencente à época burguesa que no curso de seu próprio desenvolvimento levaria a distinguir e elevar o mundo espiritual anímico, nos termos de uma esfera de valores autônomos, em relação à civilização. Seu traço decisivo é a afirmação de um mundo mais valioso, eternamente melhor, que é essencialmente diferente do mundo do fato da luta diária pela existência, mas que qualquer indivíduo pode realizar para si ‘a partir do interior’, sem transformar aquela realidade de fato” (MARCUSE, 1997, 95-6).
Mas,  o que Marcuse não havia notado ainda, é que, a partir do século XX,   a cultura e a arte estavam sendo industrializadas. Esse fenômeno aconteceu  primeiro nos Estados Unidos e somente depois  chegou na Europa. Tal fato foi percebido somente por  Benjamim em seu texto 'A Obra de Arte na Era de sua Reprodutibilidade Técnica', de 1936. A partir deste texto a indústria cultural passou a ser problematizado.   
Enquanto Marcuse e Benjamim publicavam seus textos,  Adorno chegava aos Estados Unidos para trabalhar com Horkheimer. A primeira coisa que o impressionou foi a cultura americana, que era organizada em bases industriais. Ele ficou espantado com o planejamento racional e a padronização dos meios de comunicação de massa. Os Estados Unidos já naquela época tinham um aparato produtivo imenso desde 1910,  quando a indústria cinematográfica foi criada. Contudo, seu interesse pelos meios de comunicação de massa começou na Alemanha, em 1934, quando  ele testemunhou a criação do ministério da propaganda nazista. Naquela  época, ele teve a percepção do poder de manipulação da propaganda, em particular do rádio e cinema, como meios de disseminação da idéias de Hitler. 
Dez anos depois de chegar aos Estados Unidos, Adorno juntamente com Horkheimer escreveram o texto que os tornariam famosos:  'Indústria Cultural: o Esclarecimento como Mistificação das Massas'.  Neste texto, eles investigaram o poder de manipulação dos meios de comunicação de massa sobre a consciência dos indivíduos. Eles foram os primeiros a perceber uma crise nos mecanismos de formação (Bildung),  sendo este o indício de uma crise mais ampla da cultura. Quando  cunharam o termo indústria cultural no  livro 'Dialética do Esclarecimento', de 1947, eles já haviam percebido que a cultura estava sendo deformada. Com isso,  usaram esse termo para substituir a expressão “cultura de massas” cunhada pelos apologistas da comunicação, que afirmavam ser porta-vozes de uma cultura que brotava espontaneamente das próprias massas, da forma que assumiria, atualmente, a arte popular.
Para Adorno e Horkheimer, a maior conseqüência do advento da indústria cultural foi a degradação da formação cultura e, em conseqüência disso,  a perda da autonomia dos indivíduos. O indivíduo soberano, autônomo do iluminismo, deixou de existir. O aparato produtivo e as mercadorias se impuseram ao sistema social como um todo.  Os consumidores  dos produtos e das formas de bem estar social tornaram-se prisioneiros do capital. A consciência foi tomada pelos produtos e confortos narcotizantes. “A autonomia do homem enquanto indivíduo, a sua capacidade de opor resistência ao crescente mecanismo de manipulação da massa, o seu poder de imaginação e o seu juízo independente sofreram aparentemente uma redução. O avanço dos recursos técnicos de informação se acompanha de um processo de desumanização. Assim, o progresso ameaça anular o que se supõe ser o seu próprio objetivo: a idéia do homem” (Horkheimer, 1976, p.06).
Foi por causa dos produtos e entretenimentos padronizados da indústria cultural que a formação cultural converteu-se em semiformação. Adorno compreendeu a semiformação como uma espécie de semicultura ou pseudo-cultura, cuja característica é ser  unidimensional,  limitada, circunscrita, atomizada. A semiformação é uma formação “definida a priori”, que se tornou “forma dominante da consciência” convertendo-se em “semiformação socializada” sob a determinação da indústria cultural.  Todos os seus produtos e as suas criações estão voltados e adaptados ao consumo de massa. Os produtos são criados com o fim da rentabilidade econômica, de integração e adaptação dos indivíduos a sociedade do consumo. Se a formação cultural da burguesia exigiu um certo esforço intelectual, concentração espiritual e sensorial, a semiformação, ao contrário,  simplificou os elementos complexos, adaptando-os e tornando-os desprovidos de qualquer conteúdo espiritual. Os conteúdos críticos, negativos e emancipadores foram neutralizados, perdendo suas características transcendentes.  A cultura converteu-se assim num valor e tornou-se adaptação ao conformar os indivíduos à vida real.     
A semiformação planejada e produzida pela industria cultural renegou os valores transcendentes da literatura, da arte e da música,  de um mundo melhor, mais justo, com liberdade e igualdade.  Citando as palavras de Marcuse, “Foi somente na arte que a burguesia tolerou a realização efetiva de seus ideais, levando-os a sério como exigência universal” (Idem., 1997, p.113). Ao renegar esses valores, a “cultura de massa” produziu outros valores em substituição àqueles, como  a beleza, o corpo, a família,  as qualidades da alma e a felicidade individual. Esses valores foram veiculados em seus filmes, romances, novelas, músicas e propagandas. A semiformação tornou-se falsa universalidade, tornou-se idealista e ideológica. Seu objetivo sempre foi  legitimar a sociedade capitalista. Os ideais de liberdade e felicidade para todos ela respondeu com ideais de felicidade individual, fama, dinheiro, beleza e glória. A semiformação tornou-se o apanágio da cultura afirmativa.
Uma das consequências da semiformação é a completa reificação do homem e do mundo. As relações humanas tornaram-se relações mediadas por mercadorias. Essas relações reificadas produzem inevitavelmente o egoísmo, a competição insaciável, o individualismo exacerbado, a ausência de sentido e de objetivos.  Neste processo, o homem se aliena de sua própria vida. A busca desenfreada pelo dinheiro, a competição, o consumo compulsivo, a busca de reconhecimento simbólico, a labuta do dia-a-dia não permitem ao homem determinar sua própria vida como projeto, como determinação consciente. Ele deixa de ser livre,  impedindo de  realizar suas potencialidades, sua autonomia e sua autodeterminação. Sua vida deixa de lhe pertencer, assim como seu tempo, sua interioridade e seus projetos. Nas palavras esclarecedoras de Teixeira Coelho,  “para essa sociedade, o padrão maior de avaliação tende a ser a coisa, o bem, o produto; tudo é julgado como coisa, portanto tudo se transforma em coisa – inclusive o homem. E esse homem reificado só pode ser um homem alienado:   alienado de seu trabalho, que é trocado por um valor em moeda inferior às forças por eles gastas; alienada do produto de seu trabalho, que ele mesmo não pode comprar, pois seu trabalho não é renumerado à altura do que ele mesmo produz; alienado, enfim, em relação a tudo, alienado de seus projetos, da vida do país, de sua própria vida, uma vez que não dispõe de tempo livre, nem de instrumentos teóricos capazes de permitir-lhe a crítica de si mesmo e da sociedade” (COELHO, 1980, p.11).
A indústria cultural através de  seus produtos e entretenimentos padronizados, produz no indivíduo semiformado uma espécie de pseudo-realidade, cujo objetivo é criar um estado de delírio, de catarse.   Quando Adorno pensou a idéia de esquematismo kantiano no seu ensaio 'Indústria Cultural', ele seguramente estava entendendo que os meios de comunicação de massa produzem uma falsa consciência da  realidade.  A indústria cultural é uma espécie de engenharia do real. Ela constrói a realidade como representação com o amparo da técnica e do capital, impedindo os indivíduos de atingirem a verdadeira consciência da realidade.    “A função que o esquematismo kantiano ainda atribuía ao sujeito, a saber, referir de antemão a multiplicidade sensível aos conceitos fundamentais, é tomada ao sujeito pela indústria cultural. O esquematismo é o primeiro serviço prestado por ela ao cliente.  (…) Muito embora o planejamento do mecanismo pelos organizadores dos dados, isto é, pela indústria cultura, seja imposto a essa pelo peso da sociedade que permanece irracional apesar de toda racionalização, essa tendência fatal é transformada em sua passagem pelas agências do capital do modo a aparecer como o sábio desígnio dessas agências. Para o consumidor, não há nada mais a classificar que não tenha sido antecipado no esquematismo da produção. (…) O mundo inteiro é forçado a passar pelo filtro da indústria cultural. A velha experiência do espectador de cinema, que percebe a rua como um prolongamento do filme que acabou de ver, porque este pretende ele próprio reproduzir  rigorosamente o mundo da percepção quotidiana, tornou-se a norma da produção.  Quanto maior a perfeição com que suas técnicas duplicam os objetos empíricos, mais fácil se torna hoje  obter a ilusão de que o mundo exterior é o prolongamento  sem ruptura do mundo que se descobre no filme” (ADORNO, 1985, p.103-4).    
O mundo irracional da sociedade do consumo é racionalizado pela indústria cultural e se apresenta como representação realista para os indivíduos. O mundo surge como realidade simulada. A realidade dos filmes, novelas e entretenimentos aparece como extensão do mundo real, mas como deformação desta. A realidade  deixa de ser fragmentada, as diferenças sociais são apagadas, os problemas parecem ser solúveis,  surge o modelo ideal de família, de beleza, de corpo, de felicidade, tudo é representado como se fosse  a verdadeira realidade. O mundo pela perspectiva da indústria cultural torna-se coeso, ganhando sentido e significado.   “O mundo, que permanece irracional, seria reconstruído como racionalização, num esquematismo planejado que substitui o que seria a experiência do consumidor, antecipando-a sob os desígnios do capital, resultando na ilusão de que o mundo exterior seria o prolongamento da produção nos termos da indústria cultural. No mundo reconstruído, o sujeito semiformado toma-se como sujeito do mundo que meramente reproduz. Para ele, a construção parece “natural”, mas é uma “segunda” natureza”  (MAAR, 2003, p. 463).
Esta característica da Indústria Cultural é mais visível na televisão, pois ela produz imagens da existência como condição social da semiformação. Desde suas origens, a televisão tem modelado a vida. Ela sempre produziu a ilusão no lugar da realidade. Em toda sua história, ela definiu máximas de comportamento, desenvolveu valores e padrões de conduta.  Adorno, em um  debate com seu amigo Helmut Becker, sobre a educação, em 1963,  afirmou que a televisão dá “aos homens uma imagem falsa do que seja a vida de verdade. (…) Justamente porque o mundo desta televisão é uma espécie de pseudorealismo…” (ADORNO, 1995, p. 85).  A televisão mediada por imagens cria uma pseudo-realidade. O mundo torna-se um mundo-cópia. O indivíduo não consegue distinguir mais o que vem da realidade e o que é representação simulada. Nesse processo, ele perde a compreensão do real e passa a se relacionar com este mundo pseudo-real. A pseudo-realidade torna-se o governo invisível dos homens
A televisão é o principal veículo da semiformação, isso porque, ela é, em sua própria essência,  “deformativa da consciência”,  contribuindo  “para divulgar ideologias e dirigir de maneira equivocada a consciência dos espectadores” (Ibidem., p.77).  Ela usurpou dos indivíduos suas capacidades críticas  Nas novelas, filmes, programas e telejornais, ela sempre buscou ludibriar o telespectador  criando falsos problemas. Estes foram  tratados e discutidos como se fossem “atuais” e “substantivos”. Mas muitos desses problemas têm o objetivo de ocultar a verdade sobre a realidade. A impressão do telespectador é que todos os problemas e  contradições sociais podem ser resolvidos no âmbito das relações humanas. Tudo depende da boa vontade, da iniciativa e perseverança dos indivíduos. “Exatamente em que, por toda a parte onde a televisão aparentemente se aproxima das condições  da vida moderna, porém ocultando os problemas mediante rearranjos e mudanças de acento, gera-se   efetivamente uma falsa consciência” (Ibidem., p.83).
Adorno, em seu ensaio 'Teoria da Semicultura', ao analisar a cultura americana, percebeu nela uma “carência de imagens”. No mundo pré-capitalista, as imagens religiosas, os cultos, o folclore  que revestiam a existência de cores, assim como as imagens irracionais da Idade Média, se extinguiram deixando o homem carente delas. A partir disso,  a vida perdeu encantamento e sentido.  Com o desenvolvimento da sociedade capitalista, a vida foi modelada pela equivalência e pelas relações de troca. A vida se viu “desconsolada”. O homem teve necessidade de uma nova mitologia, ele precisou substituir as imagens e formas  através da semiformação: “(…) os meios de massa  adotaram uma mitologia substitutiva que em nada se compara aos fatos de um passado bem próximo ainda. As estrelas de cinema, as canções de sucesso com suas letras e seus títulos irradiam um brilho igualmente calculado. (…) Por vezes, semblantes femininos – muito cuidados e quase sempre de uma beleza estonteante – se explicam por si mesmos como pictografia da semiformação. (…) A semiformação não se confina meramente ao espírito, adultera também a vida sensorial” (ADORNO, 1996, p.467).
Foi através das imagens criadas pela indústria cultural que o mundo foi ideologizado. A ideologização da vida tem sua origem nos movimentos totalitários. O regime nazista,  a fim de reforçar seu ideário político na mentalidade da população, fez uso da propaganda através do cinema e do radio. A partir daí  a “indústria cultural”  encontrou nas imagens sua expressão mais influente. Através destes meios, houve a propagação de ideias como o "embelezamento da vida",  "rituais de limpeza", "culto ao corpo" e a apologia da eugenia. Foi através dessa ideologização da vida que seis milhões de vida foram ceifadas pelo sistema totalitário na Alemanha. 
Um bom exemplo da ideologização da vida são as novelas brasileiras, onde não há fealdade, tudo é limpo, belo, decente. O rico se apaixona pela moça pobre, a empregada torna-se  parte da família, o pobre [rapidamente] enriquece.  Todos os conflitos são resolvidos, todos os sonhos são realizados, todo sofrimento é apaziguado.   As imagens  do galã bonito, do adolescente rebelde, das mulheres esbeltas, dos conflitos fúteis,   do carro conversível, dos apartamentos aconchegantes, dos edifícios espelhados, das ruas de cidadezinhas com pessoas alegres, da feira de domingo, constituem a ideologia desta sociedade.
Neste processo de ideologização da vida,  os próprios produtos tornaram-se ideológicos. O aparato produtivo e as mercadorias se impõem ao sistema social como um todo. O carro, o eletrodoméstico, a casa, os brinquedos, o alimento já trazem consigo atitudes, hábitos, emoções e formas de ser e pensar. A boneca Bárbie já traz a idéia de que  a mulher deve ser magra, alta, bonita, esbelta e superficial. Uma Ferrari [ou outro "carrão"] já demonstra o poder, o dinheiro, o status quo de quem a possui. Fumar um cigarro é sinal de ser livre e despojado. Os produtos carregam representações, normas e preceitos dizendo as pessoas como devem pensar, como devem agir, como devem sentir e como devem valorizar.
Para Adorno e Horkeimer,  a mentalidade da indústria cultural é imutável. Ela sempre duplica, reforça e consolida essa mentalidade. Tudo o que poderia transformá-la é por ela excluído. Ela dá aos homens  um critério de orientação num mundo fragmentado e caótico, inculcando conceitos de dever e ordem.  Ela apaga as diferenças de classe e cria a falsa impressão que existe uma coesão social e uma harmonia entre os homens. A indústria cultural,   como domínio técnico da natureza, torna-se a engenharia do real produzindo o engano das massas. Dessa forma, ela impede a formação de indivíduos autônomos, independestes, capazes de julgar e decidir conscientemente.      
Através da indústria cultural, a  semiformação tornou-se o modo de consciência dos indivíduos.  As pessoas ouvem, lêem, sentem e até deixam se orientar por anúncios e discursos dos meios de comunicação. A partir disso, a plausibilidade dos ideais, dos  valores éticos universais, das normas de nossas ações e crenças perdeu seu significado. Adorno e Horkheimer detectaram uma realidade repressiva de luta e contradição, desintegração, mudança, e um sujeito genérico que se dissolveu como mero consumidor.
           
 Bibliografia
 ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento. Rio de janeiro: Jorge Zarhar, 1985
_______. Educação e emancipação.  São Paulo: Paz e Terra, 1995.
_______. Teoria da Semicultura. In: Revista “Educação e Sociedade”. Campinas: n. 56, ano XVII, dezembro de 1996, pág. 388-411.
BOSI, Alfredo. Cultura Brasileira e Culturas Brasileiras. In: Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
DUARTE, R. Teoria crítica da indústria cultural. Belo Horizonte: UFMG, 2003.
FREITAG, Bárbara. A teoria crítica: ontem e hoje, São Paulo: Brasiliense, 1994.
HORKHEIMER, Max. Eclipse da Razão. Rio de janeiro: Labor  do Brasil, 1974.
MARCUSE, Herbert. Eros e Civilização: uma interpretação filosófica do pensamento de Freud. Rio de janeiro:Guanabara, 1969.
_______. Sobre o caráter afirmativo da cultura. In: Cultura e sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997,  p.89-136.
COELHO, Teixeira. O que é indústria cultural. São Paulo: Brasiliense, 2007
IANNI, O. A sociedade global. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 1992.
MAAR, W.L. Adorno, Semiformação e Educação. In: Educação e  Sociedade., Campinas, vol. 24, n. 83, p. 459-476, agosto 2003
SANTOS, Milton. Da cultura à indústria cultural.  Folha . de São Paulo –  Caderno Mais, São Paulo,  p. 18, mar. 2000.
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Fonte: https://filosofonet.wordpress.com


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