Por Michel Aires de Souza
A
indústria cultural é um termo crítico que procurou desmitificar a idéia
de que os meios de comunicação de massa produzem uma cultura genuinamente
popular. A cultura deixou de ser algo espontâneo e popular e passou a ser
produzida por empresas e instituições que criam produtos e entretenimentos
padronizados para o grande público. “Tal denominação evoca a idéia,
intencionalmente polêmica, de que a cultura deixou de ser uma decorrência
espontânea da condição humana, na qual se expressaram tradicionalmente, em
termos estéticos, seus anseios e projeções mais recônditos, para se tornar mais
um campo de exploração econômica, administrado de cima para baixo e voltado
apenas para os objetos supra mencionados de produzir lucros e de garantir
adesão ao sistema capitalista por parte do público.” (DUARTE, 2003, p.9).
A
indústria cultural poderia ter sido um instrumento de formação cultural,
assumindo fins pedagógicos, mas ela se tornou em sua história um
instrumento de deformação da cultura e da consciência. Ela
significou para a sociedade capitalista não somente uma indústria que
cria produtos e entretenimentos padronizados, mas também um poderoso
instrumento de coesão social, que incute valores, preceitos, crenças, modos de
ser, pensar, agir e valorizar, servindo de referencial para todos viverem
de forma pacifica. Foi ela que ajudou a construir e universalizar os valores da
sociedade do consumo.
Em
sua história, a função da indústria cultural foi o de introjetar os
valores, preceitos, a visão de mundo e os padrões de
conduta capitalista na interioridade do indivíduo massificado. Para este
fim, ela produziu e reproduz a semiformação através da disseminação de
seus produtos e entretenimentos padronizados. Com o ulterior
desenvolvimento da indústria cultural, a cultura formativa, típica
das sociedades pré-capitalistas, extinguiu-se e a semiformação tornou-se
a condição existencial do homem contemporâneo. Foi através da semiformação que
surgiu a subjetividade reificada e alienada no interior das práticas
sociais.
Octávio
Ianni, em seu livro 'A
sociedade Global', detectou o desenvolvimento de uma nova
cultura globalizada no mundo contemporâneo. Segundo ele, antigamente
invadiam-se os mercados estrangeiros com mercadorias, mas hoje se invade
culturas inteiras com informações, entretenimentos e idéias. Formam-se
linguagens globais. “A cultura eletrônica da idéia global coloca-nos ante uma
situação na qual sociedades inteiras comunicam-se mediante uma espécie de
gesticulação macroscópica, que não é em absoluto linguagem no sentido usual”
(Mcluhan apud Ianni, 1992, p.42). O que é local, regional, nacional, entra no
jogo das relações internacionais ou propriamente globais. A cultura
internacional popular nasce, circula e é consumida como mercadoria lançada
simultaneamente em diferentes mercados nacionais. O padrão técnico e cultural
dos países dominantes é até mesmo aperfeiçoado nos países dependentes. Como
exemplo, temos os programas da tv americana, européia e japonesa que são
adotados pelos programas brasileiros, como “BigBrother”; “O aprendiz”;
“Domingão do Faustão”; “Silvio Santos”, onde são aperfeiçoados e até mudados.
Há ainda anúncios de transnacionais como Coca-cola, Nike, Phillips, McDonalts e
muitos outros que circulam como as mesmas propagandas em todos os continentes.
Por sobre e além da cultura nacional popular, toma lugar e generaliza-se a
cultura internacional popular que povoa o imaginário da audiência, público e
massa. Diverte, distrai, irrita, ilude, carrega padrões e idéias. Nesse
sentido, nos diz Ianni, é que a cultura internacional popular entra na
construção e reconstrução da hegemonia dos grupos ou classes sociais que se
articulam em escala global.
No
mundo contemporâneo com o advento da indústria
cultural houve um holocausto cultural. Não conhecemos mais a cultura
popular como ela se manifestava nos períodos pré-capitalistas. Segundo
Alfredo Bosi, o patrimônio sócio-cultural perdeu-se ou encontra-se depositado
em bibliotecas e museus como relíquias; o que acontece é a destruição de formas
sociais de vida e de trabalho, modos de ser das coletividades, povos e
culturas. Bosi critica ainda uma certa vertente culta, ocidentalizante, de
fundo colonizador, que procura estigmatizar a cultura popular como fóssil
correspondente aos estados de primitivismo, atraso e subdesenvolvimento. Para
Bosi, a cultura são os modos de existir de uma nação, é o cotidiano “físico e
simbólico e imaginário dos homens” (BOSI, 1992, p.324).
A
cultura é a expressão de autenticidade de um povo, de seus valores e modos de
ser, ver e compreender o mundo. Por esta razão, um povo que não preserva sua
cultura é um povo sem história e sem identidade. Um indivíduo sem cultura é
permeável a manipulação. Segundo Milton Santos, “o conceito de cultura
está intimamente ligado às expressões da autenticidade, da integridade e da
liberdade. Ela é uma manifestação coletiva que reúne heranças do passado, modos
de ser do presente e aspirações, isto é, o delineamento do futuro desejado. Por
isso mesmo, tem de ser genuína, isto é, resultar das relações profundas dos
homens com o seu meio, sendo por isso o grande cimento que defende as
sociedade locais, regionais e nacionais contra as ameaças de deformação ou de
dissolução de que podem ser vítimas. Deformar uma cultura é uma maneira de
abrir a porta para o enraizamento de novas necessidades e a criação de
novos gostos e hábitos” (Santos, 2000, p.18)
O
filósofo alemão Herbert Marcuse, no seu célebre texto 'Sobre o Caráter Afirmativo da Cultura',
de 1937, entendeu a cultura como o entrelaçamento entre o mundo
espiritual e simbólico com o processo histórico da sociedade, ou seja, o
entrelaçamento entre o plano da reprodução ideal (cultura) e o plano da
reprodução material (civilização). Contudo, ele percebeu uma grande
mudança no mundo moderno, percebeu que a cultura
burguesa separou essas duas esferas. O mundo espiritual foi banido do plano
material. A partir disso, a arte e a cultura tornaram-se
ideológicas. “A separação da sociedade burguesa em dois mundos – o
da reprodução material da vida (civilização) e o mundo espiritual das idéias,
da arte, dos sentimentos, etc (cultura) – permitiu a essa sociedade justificar
a exploração e alienação que a grande maioria sofria nas linhas de montagem e
de produção, na administração burocratizada, e no cotidiano miserável”
(FREITAG, 1994, p. 69).
Marcuse
desvelou que os ideais do iluminismo, de liberdade, felicidade,
fruição do prazer, igualdade e verdade, ficaram apenas no plano da arte e da
cultura espiritual burguesa, não se manifestando no plano da realidade. Estes
valores tornaram-se ideológicos. Foi o que ele denominou de cultura afirmativa,
ou seja, “aquela cultura pertencente à época burguesa que no curso de seu
próprio desenvolvimento levaria a distinguir e elevar o mundo espiritual
anímico, nos termos de uma esfera de valores autônomos, em relação à
civilização. Seu traço decisivo é a afirmação de um mundo mais valioso,
eternamente melhor, que é essencialmente diferente do mundo do fato da luta
diária pela existência, mas que qualquer indivíduo pode realizar para si ‘a
partir do interior’, sem transformar aquela realidade de fato” (MARCUSE, 1997,
95-6).
Mas,
o que Marcuse não havia notado ainda, é que, a partir do século
XX, a cultura e a arte estavam sendo industrializadas. Esse
fenômeno aconteceu primeiro nos Estados Unidos e somente depois
chegou na Europa. Tal fato foi percebido somente por Benjamim em seu
texto 'A Obra de Arte na Era de sua Reprodutibilidade Técnica', de 1936. A partir deste
texto a indústria cultural passou a ser problematizado.
Enquanto
Marcuse e Benjamim publicavam seus textos, Adorno chegava aos Estados
Unidos para trabalhar com Horkheimer. A primeira coisa que o impressionou
foi a cultura americana, que era organizada em bases industriais. Ele ficou
espantado com o planejamento racional e a padronização dos meios de comunicação
de massa. Os Estados Unidos já naquela época tinham um aparato produtivo imenso
desde 1910, quando a indústria cinematográfica foi criada. Contudo, seu
interesse pelos meios de comunicação de massa começou na Alemanha, em 1934,
quando ele testemunhou a criação do ministério da propaganda nazista.
Naquela época, ele teve a percepção do poder de manipulação da propaganda,
em particular do rádio e cinema, como meios de disseminação da idéias de
Hitler.
Dez
anos depois de chegar aos Estados Unidos, Adorno juntamente com Horkheimer
escreveram o texto que os tornariam famosos: 'Indústria Cultural: o Esclarecimento
como Mistificação das Massas'. Neste texto, eles
investigaram o poder de manipulação dos meios de comunicação de massa sobre a
consciência dos indivíduos. Eles foram os primeiros a perceber uma crise nos
mecanismos de formação (Bildung), sendo este o indício de uma crise mais
ampla da cultura. Quando cunharam o termo indústria cultural no
livro 'Dialética do
Esclarecimento', de 1947, eles já haviam percebido que a cultura
estava sendo deformada. Com isso, usaram esse termo para substituir a
expressão “cultura de massas” cunhada pelos apologistas da comunicação, que
afirmavam ser porta-vozes de uma cultura que brotava espontaneamente das
próprias massas, da forma que assumiria, atualmente, a arte popular.
Para
Adorno e Horkheimer, a maior conseqüência do advento da indústria cultural foi a
degradação da formação cultura e, em conseqüência disso, a perda da
autonomia dos indivíduos. O indivíduo soberano, autônomo do iluminismo, deixou
de existir. O aparato produtivo e as mercadorias se impuseram ao sistema social
como um todo. Os consumidores dos produtos e das formas de bem
estar social tornaram-se prisioneiros do capital. A consciência foi tomada
pelos produtos e confortos narcotizantes. “A autonomia do homem enquanto
indivíduo, a sua capacidade de opor resistência ao crescente mecanismo de
manipulação da massa, o seu poder de imaginação e o seu juízo independente
sofreram aparentemente uma redução. O avanço dos recursos técnicos de
informação se acompanha de um processo de desumanização. Assim, o progresso
ameaça anular o que se supõe ser o seu próprio objetivo: a idéia do homem”
(Horkheimer, 1976, p.06).
Foi
por causa dos produtos e entretenimentos padronizados da indústria cultural que
a formação cultural converteu-se em semiformação. Adorno compreendeu a
semiformação como uma espécie de semicultura ou pseudo-cultura, cuja
característica é ser unidimensional, limitada, circunscrita,
atomizada. A semiformação é uma formação “definida a priori”, que se tornou “forma dominante da consciência” convertendo-se em “semiformação socializada”
sob a determinação da indústria cultural. Todos os seus produtos e as
suas criações estão voltados e adaptados ao consumo de massa. Os produtos são
criados com o fim da rentabilidade econômica, de integração e adaptação dos
indivíduos a sociedade do consumo. Se a formação cultural da burguesia exigiu
um certo esforço intelectual, concentração espiritual e sensorial, a
semiformação, ao contrário, simplificou os elementos complexos,
adaptando-os e tornando-os desprovidos de qualquer conteúdo espiritual. Os
conteúdos críticos, negativos e emancipadores foram neutralizados, perdendo
suas características transcendentes. A cultura converteu-se assim num
valor e tornou-se adaptação ao conformar os indivíduos à vida
real.
A
semiformação planejada e produzida pela industria cultural renegou os valores
transcendentes da literatura, da arte e da música, de um mundo melhor,
mais justo, com liberdade e igualdade. Citando as palavras de Marcuse,
“Foi somente na arte que a burguesia tolerou a realização efetiva de seus
ideais, levando-os a sério como exigência universal” (Idem., 1997, p.113). Ao
renegar esses valores, a “cultura de massa” produziu outros valores em
substituição àqueles, como a beleza, o corpo, a família, as qualidades
da alma e a felicidade individual. Esses valores foram veiculados em seus
filmes, romances, novelas, músicas e propagandas. A semiformação tornou-se
falsa universalidade, tornou-se idealista e ideológica. Seu objetivo sempre
foi legitimar a sociedade capitalista. Os ideais de liberdade e
felicidade para todos ela respondeu com ideais de felicidade individual, fama,
dinheiro, beleza e glória. A semiformação tornou-se o apanágio da cultura
afirmativa.
Uma
das consequências da semiformação é a completa reificação do homem e do mundo.
As relações humanas tornaram-se relações mediadas por mercadorias. Essas
relações reificadas produzem inevitavelmente o egoísmo, a competição
insaciável, o individualismo exacerbado, a ausência de sentido e de
objetivos. Neste processo, o homem se aliena de sua própria vida. A busca
desenfreada pelo dinheiro, a competição, o consumo compulsivo, a busca de
reconhecimento simbólico, a labuta do dia-a-dia não permitem ao homem
determinar sua própria vida como projeto, como determinação consciente. Ele
deixa de ser livre, impedindo de realizar suas potencialidades, sua
autonomia e sua autodeterminação. Sua vida deixa de lhe pertencer, assim como
seu tempo, sua interioridade e seus projetos. Nas palavras esclarecedoras de Teixeira
Coelho, “para essa sociedade, o padrão maior de avaliação tende a
ser a coisa, o bem, o produto; tudo é julgado como coisa, portanto tudo se
transforma em coisa – inclusive o homem. E esse homem reificado só pode ser um
homem alienado: alienado de seu trabalho, que é trocado por um
valor em moeda inferior às forças por eles gastas; alienada do produto de seu
trabalho, que ele mesmo não pode comprar, pois seu trabalho não é renumerado à
altura do que ele mesmo produz; alienado, enfim, em relação a tudo, alienado de
seus projetos, da vida do país, de sua própria vida, uma vez que não dispõe de
tempo livre, nem de instrumentos teóricos capazes de permitir-lhe a crítica de
si mesmo e da sociedade” (COELHO, 1980, p.11).
A
indústria cultural através de seus produtos e entretenimentos
padronizados, produz no indivíduo semiformado uma espécie de pseudo-realidade,
cujo objetivo é criar um estado de delírio, de catarse. Quando
Adorno pensou a idéia de esquematismo kantiano no seu ensaio 'Indústria
Cultural', ele seguramente estava entendendo que os meios de comunicação de
massa produzem uma falsa consciência da realidade. A indústria
cultural é uma espécie de engenharia do real. Ela constrói a realidade como
representação com o amparo da técnica e do capital, impedindo os indivíduos de
atingirem a verdadeira consciência da realidade. “A
função que o esquematismo kantiano ainda atribuía ao sujeito, a saber, referir
de antemão a multiplicidade sensível aos conceitos fundamentais, é tomada ao
sujeito pela indústria cultural. O esquematismo é o primeiro serviço prestado
por ela ao cliente. (…) Muito embora o planejamento do mecanismo pelos
organizadores dos dados, isto é, pela indústria cultura, seja imposto a essa
pelo peso da sociedade que permanece irracional apesar de toda racionalização,
essa tendência fatal é transformada em sua passagem pelas agências do capital
do modo a aparecer como o sábio desígnio dessas agências. Para o consumidor,
não há nada mais a classificar que não tenha sido antecipado no esquematismo da
produção. (…) O mundo inteiro é forçado a passar pelo filtro da indústria
cultural. A velha experiência do espectador de cinema, que percebe a rua como
um prolongamento do filme que acabou de ver, porque este pretende ele próprio
reproduzir rigorosamente o mundo da percepção quotidiana, tornou-se a
norma da produção. Quanto maior a perfeição com que suas técnicas
duplicam os objetos empíricos, mais fácil se torna hoje obter a ilusão de
que o mundo exterior é o prolongamento sem ruptura do mundo que se
descobre no filme” (ADORNO, 1985, p.103-4).
O
mundo irracional da sociedade do consumo é racionalizado pela indústria
cultural e se apresenta como representação realista para os indivíduos. O mundo
surge como realidade simulada. A realidade dos filmes, novelas e
entretenimentos aparece como extensão do mundo real, mas como deformação
desta. A realidade deixa de ser fragmentada, as diferenças sociais são
apagadas, os problemas parecem ser solúveis, surge o modelo ideal de
família, de beleza, de corpo, de felicidade, tudo é representado como se
fosse a verdadeira realidade. O mundo pela perspectiva da indústria
cultural torna-se coeso, ganhando sentido e significado. “O mundo,
que permanece irracional, seria reconstruído como racionalização, num
esquematismo planejado que substitui o que seria a experiência do consumidor,
antecipando-a sob os desígnios do capital, resultando na ilusão de que o mundo
exterior seria o prolongamento da produção nos termos da indústria cultural. No
mundo reconstruído, o sujeito semiformado toma-se como sujeito do mundo que
meramente reproduz. Para ele, a construção parece “natural”, mas é uma “segunda”
natureza” (MAAR, 2003, p. 463).
Esta
característica da Indústria Cultural é mais visível na televisão, pois ela
produz imagens da existência como condição social da semiformação. Desde suas
origens, a televisão tem modelado a vida. Ela sempre produziu a ilusão no lugar
da realidade. Em toda sua história, ela definiu máximas de comportamento, desenvolveu
valores e padrões de conduta. Adorno, em um debate com seu amigo
Helmut Becker, sobre a educação, em 1963, afirmou que a televisão dá “aos
homens uma imagem falsa do que seja a vida de verdade. (…) Justamente porque o
mundo desta televisão é uma espécie de pseudorealismo…” (ADORNO, 1995, p.
85). A televisão mediada por imagens cria uma pseudo-realidade. O mundo
torna-se um mundo-cópia. O indivíduo não consegue distinguir mais o que vem da
realidade e o que é representação simulada. Nesse processo, ele perde a
compreensão do real e passa a se relacionar com este mundo pseudo-real. A
pseudo-realidade torna-se o governo invisível dos homens
A
televisão é o principal veículo da semiformação, isso porque, ela é, em
sua própria essência, “deformativa da
consciência”, contribuindo “para divulgar ideologias e dirigir
de maneira equivocada a consciência dos espectadores” (Ibidem., p.77).
Ela usurpou dos indivíduos suas capacidades críticas Nas novelas, filmes,
programas e telejornais, ela sempre buscou ludibriar o telespectador
criando falsos problemas. Estes foram tratados e discutidos como se
fossem “atuais” e “substantivos”. Mas muitos desses problemas têm o objetivo de
ocultar a verdade sobre a realidade. A impressão do telespectador é que todos
os problemas e contradições sociais podem ser resolvidos no âmbito das relações humanas. Tudo depende da boa vontade, da iniciativa e perseverança dos
indivíduos. “Exatamente em que, por toda a parte onde a televisão aparentemente
se aproxima das condições da vida moderna, porém ocultando os problemas
mediante rearranjos e mudanças de acento, gera-se efetivamente uma
falsa consciência” (Ibidem., p.83).
Adorno, em seu ensaio 'Teoria da Semicultura', ao analisar a cultura americana, percebeu
nela uma “carência de imagens”. No mundo pré-capitalista, as imagens
religiosas, os cultos, o folclore que revestiam a existência de cores,
assim como as imagens irracionais da Idade Média, se extinguiram deixando o
homem carente delas. A partir disso, a vida perdeu encantamento e
sentido. Com o desenvolvimento da sociedade capitalista, a vida foi
modelada pela equivalência e pelas relações de troca. A vida se viu
“desconsolada”. O homem teve necessidade de uma nova mitologia, ele precisou
substituir as imagens e formas através da semiformação: “(…) os meios de massa adotaram uma mitologia substitutiva que em nada se compara aos
fatos de um passado bem próximo ainda. As estrelas de cinema, as canções de
sucesso com suas letras e seus títulos irradiam um brilho igualmente calculado.
(…) Por vezes, semblantes femininos – muito cuidados e quase sempre de uma
beleza estonteante – se explicam por si mesmos como pictografia da
semiformação. (…) A semiformação não se confina meramente ao espírito, adultera
também a vida sensorial” (ADORNO, 1996, p.467).
Foi
através das imagens criadas pela indústria cultural que o mundo foi
ideologizado. A ideologização da vida tem sua origem nos movimentos
totalitários. O regime nazista, a fim de reforçar seu ideário político na
mentalidade da população, fez uso da propaganda através do cinema e do radio. A
partir daí a “indústria cultural” encontrou nas imagens sua
expressão mais influente. Através destes meios, houve a propagação de ideias
como o "embelezamento da vida", "rituais de limpeza", "culto ao corpo" e a apologia da eugenia. Foi através dessa ideologização
da vida que seis milhões de vida foram ceifadas pelo sistema totalitário na
Alemanha.
Um
bom exemplo da ideologização da vida são as novelas brasileiras, onde não há
fealdade, tudo é limpo, belo, decente. O rico se apaixona pela moça pobre, a
empregada torna-se parte da família, o pobre [rapidamente] enriquece. Todos os conflitos são resolvidos, todos os sonhos são realizados,
todo sofrimento é apaziguado. As imagens do galã bonito, do
adolescente rebelde, das mulheres esbeltas, dos conflitos fúteis,
do carro conversível, dos apartamentos aconchegantes, dos edifícios
espelhados, das ruas de cidadezinhas com pessoas alegres, da feira de domingo,
constituem a ideologia desta sociedade.
Neste
processo de ideologização da vida, os próprios produtos tornaram-se
ideológicos. O aparato produtivo e as mercadorias se impõem ao sistema social
como um todo. O carro, o eletrodoméstico, a casa, os brinquedos, o alimento já
trazem consigo atitudes, hábitos, emoções e formas de ser e pensar. A boneca
Bárbie já traz a idéia de que a mulher deve ser magra, alta, bonita,
esbelta e superficial. Uma Ferrari [ou outro "carrão"] já demonstra o poder, o dinheiro, o status
quo de quem a possui. Fumar um cigarro é sinal de ser livre e despojado. Os
produtos carregam representações, normas e preceitos dizendo as pessoas como
devem pensar, como devem agir, como devem sentir e como devem valorizar.
Para
Adorno e Horkeimer, a mentalidade da indústria cultural é imutável.
Ela sempre duplica, reforça e consolida essa mentalidade. Tudo o que poderia
transformá-la é por ela excluído. Ela dá aos homens um critério de
orientação num mundo fragmentado e caótico, inculcando conceitos de dever e
ordem. Ela apaga as diferenças de classe e cria a falsa impressão que
existe uma coesão social e uma harmonia entre os homens. A indústria
cultural, como domínio técnico da natureza, torna-se a engenharia
do real produzindo o engano das massas. Dessa forma, ela impede a formação de
indivíduos autônomos, independestes, capazes de julgar e decidir
conscientemente.
Através
da indústria cultural, a semiformação tornou-se o modo de consciência dos
indivíduos. As pessoas ouvem, lêem, sentem e até deixam se orientar por
anúncios e discursos dos meios de comunicação. A partir disso, a plausibilidade
dos ideais, dos valores éticos universais, das normas de nossas ações e
crenças perdeu seu significado. Adorno e Horkheimer detectaram uma realidade
repressiva de luta e contradição, desintegração, mudança, e um sujeito genérico
que se dissolveu como mero consumidor.
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Folha . de São Paulo – Caderno Mais, São Paulo, p. 18, mar. 2000.
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Fonte: https://filosofonet.wordpress.com
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