Nem sempre a adaptação de livros ao cinema corre bem. Aliás, há mesmo quem sustente que, na maioria das vezes, a adaptação acontece com prejuízos que comprometem o conteúdo/mensagem da obra. Não me parece que esse seja o caso de The Book Thief, do australiano Markus Zusah, que, entre nós, ganhou a sugestiva tradução de ‘A Menina que Roubava Livros’. A obra é bastante singular: tem como narradora a Morte, que, numa passagem pela Alemanha nazista durante a Segunda Guerra Mundial, encontra numa estação de trem a protagonista, Lisel Meminger. Dois aspectos interligados no livro-filme me chamam a atenção. O primeiro remete aos chamados Gurre Lieder (‘Canções de Gurre’), compostas por Arnold Schönberg, tendo como base os poemas do dinamarquês Jens Peter Jacobsen. Em João Pessoa, não faz muito tempo, tivemos a oportunidade de assistir a regência do maestro Isaac Karabtchevsky, com o brilhantismo que lhe é peculiar, dar demonstrações da profunda significação dos Gurre Lieder. Obra com os atrativos de outras peças do final do “antigo romantismo”, narra o amor entre o rei dinamarquês Waldemar e Tove, num triângulo amoroso que eles formam com a rainha. No poema, o rei chora a morte da amada, dizendo que ‘Tove está tão próxima e tão distante’, e então se revolta; tem o poder de um rei, mas nada pode fazer. No fundo, o que se quer dizer é que o poder e os impérios tornam-se impotentes. Passam. Em ‘A Menina que Roubava Livros’, vemos o império da máquina de guerra nazista impor sua doutrina, transformar as escolas em canais de propaganda e queimar livros que contrariassem as suas diretrizes, no desenvolvimento do projeto do que se dizia ser um ‘império de mil anos’. Não durou sequer uma década. O segundo aspecto que chama a atenção diz respeito às faces do ódio disseminado pelo nazismo, de natureza política, religiosa, etc., jogando vizinhos contra vizinhos, colegas de escola contra colegas, lançando mão da violência e estabelecendo uma intrincada rede espionagem e de denunciantes anônimos. As faces do ódio deram corpo ao que Hannah Arendt chamou de ‘a banalidade do mal’. Num momento em que, no Brasil, a ascensão da intolerância (política, religiosa, de gênero...) atinge níveis que já deságua na agressão pública e até nem mesmo espaço de velório se respeita, ‘A Menina que Roubava Livros’ tem algo de significativo valor a nos ensinar. Antes que seja tarde, afinal, como realça a sua narrativa: ‘Os seres humanos me assombram’. Mesmo que devamos considerar - sobretudo o analista social - que, conforme assinalou Terêncio, ‘nada do que é humano é estranho’.
segunda-feira, 5 de outubro de 2015
'A Menina que Roubava Livros' e as Faces do Ódio
Nem sempre a adaptação de livros ao cinema corre bem. Aliás, há mesmo quem sustente que, na maioria das vezes, a adaptação acontece com prejuízos que comprometem o conteúdo/mensagem da obra. Não me parece que esse seja o caso de The Book Thief, do australiano Markus Zusah, que, entre nós, ganhou a sugestiva tradução de ‘A Menina que Roubava Livros’. A obra é bastante singular: tem como narradora a Morte, que, numa passagem pela Alemanha nazista durante a Segunda Guerra Mundial, encontra numa estação de trem a protagonista, Lisel Meminger. Dois aspectos interligados no livro-filme me chamam a atenção. O primeiro remete aos chamados Gurre Lieder (‘Canções de Gurre’), compostas por Arnold Schönberg, tendo como base os poemas do dinamarquês Jens Peter Jacobsen. Em João Pessoa, não faz muito tempo, tivemos a oportunidade de assistir a regência do maestro Isaac Karabtchevsky, com o brilhantismo que lhe é peculiar, dar demonstrações da profunda significação dos Gurre Lieder. Obra com os atrativos de outras peças do final do “antigo romantismo”, narra o amor entre o rei dinamarquês Waldemar e Tove, num triângulo amoroso que eles formam com a rainha. No poema, o rei chora a morte da amada, dizendo que ‘Tove está tão próxima e tão distante’, e então se revolta; tem o poder de um rei, mas nada pode fazer. No fundo, o que se quer dizer é que o poder e os impérios tornam-se impotentes. Passam. Em ‘A Menina que Roubava Livros’, vemos o império da máquina de guerra nazista impor sua doutrina, transformar as escolas em canais de propaganda e queimar livros que contrariassem as suas diretrizes, no desenvolvimento do projeto do que se dizia ser um ‘império de mil anos’. Não durou sequer uma década. O segundo aspecto que chama a atenção diz respeito às faces do ódio disseminado pelo nazismo, de natureza política, religiosa, etc., jogando vizinhos contra vizinhos, colegas de escola contra colegas, lançando mão da violência e estabelecendo uma intrincada rede espionagem e de denunciantes anônimos. As faces do ódio deram corpo ao que Hannah Arendt chamou de ‘a banalidade do mal’. Num momento em que, no Brasil, a ascensão da intolerância (política, religiosa, de gênero...) atinge níveis que já deságua na agressão pública e até nem mesmo espaço de velório se respeita, ‘A Menina que Roubava Livros’ tem algo de significativo valor a nos ensinar. Antes que seja tarde, afinal, como realça a sua narrativa: ‘Os seres humanos me assombram’. Mesmo que devamos considerar - sobretudo o analista social - que, conforme assinalou Terêncio, ‘nada do que é humano é estranho’.
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