'Em direção ao prazer', de René Magritte |
Por
Hugo Honorato
Sabemos,
com uma certeza angustiante, que a morte nos acometerá um dia, cedo ou tarde.
Esse
fato sempre foi tema de reflexões e conjeturas para o ser humano, consciente de
sua existência e sabedor de sua finitude. Temos essa peculiaridade com relação
aos outros seres viventes, isto é, estamos certos que nosso corpo um dia
perecerá e esse dia pode chegar a qualquer momento, sem aviso, prognóstico ou
estatística lógica.
A
morte é objeto da filosofia, como também dos poetas, tornando-se, por sua
relevância metafísica, a musa inspiradora, como dizia Schopenhauer, que povoa
as mentes mergulhadas em reflexão e sedentas de uma explicação.
Mas,
é certo também, que o indivíduo, ou a maioria deles, pensa na morte quando ela
dobra a esquina e vem a seu encontro. O sentimento de finitude que toma o corpo
do indivíduo tem um efeito interessante: ele inicia uma reflexão da sua vida e
condição de vida, levando-o a fazer perguntas existenciais que deveriam ter
sido feitas há muito tempo, ao longo de sua vida.
A morte, ou sua iminência,
parece que desperta o homem de um sono. Desperta e avisa de uma coisa que ele,
intimamente, já sabia e presenciava no seu dia-a-dia com uma indiferença quase
que mortal. Ivan Ilitch, personagem do romance A morte de Ivan Ilitch de Leon
Tolstoi, vivia indiferente como qualquer outro, que tinha um emprego, uma
família, filhos, vícios e se divertia com seus amigos jogando cartas, de vez em
quando. Seus amigos ao saberem de sua morte, ficaram um pouco consternados,
como é natural, mas sua consternação era de uma naturalidade sarcástica, tendo
um efeito de alívio ao pensarem “foi ele quem morreu e não eu”.
A
morte, então, só existia em Ivan Ilitch, não nos seus amigos. Quando nos
deparamos com a morte nos outros ela tem um efeito de alívio, porque é o outro
que se foi e não eu. Ivan Ilitch não teve esse alívio quando soube que estava
perto de deixar de existir.
Tolstoi
faz questão de enfatizar que “a história da vida de Ivan Ilitch foi das mais
simples, das mais comuns e, portanto, das mais terríveis”.
Ele
agora era um promotor público de longa carreira (...) quando um indesejável e
desagradável incidente veio destruir o pacífico andamento de sua existência”. A
partir daí a existência de Ivan Ilitch, indesejadamente, tomava outro rumo. Sua
pacífica existência vai dar lugar a uma existência questionadora e arredia com
seu destino.
O
desespero de Ivan Ilitch tinha como causa essa “implacável aproximação da
sempre temida e odiada morte, sua única realidade”, que levava Ivan Ilitch á um
buraco negro desconhecido. Mas como aceitar a morte? A morte no outro é
compreensível, mas em mim é ilógico, pensava Ivan Ilitch. Ele usou um silogismo
para tentar entender a situação. “Caio é um homem, os homens são mortais, logo
Caio é mortal”, esse silogismo tinha para ele muita lógica se aplicado a Caio,
mas não aplicado a ele.
A
lógica perdera todo o seu sentido para Ivan Ilitch. Ele não sabia, ou não
queria saber, que a morte é para Caio tanto quanto para ele. “Se eu tinha que
morrer, assim como Caio, deveriam ter-me avisado antes”, analisa ele como se
isso fosse resolver a questão.
Para
ele era absurdo, ridículo e inacreditável que alguém pudesse morrer devido a um
acidente doméstico sem nenhuma gravidade aparente. Mas, absurdo não era a causa
que iria, aos poucos, matá-lo. Absurdo era não saber para onde iria depois que
morresse e qual o sentido dessa vida. Ivan Ilitch começava então a se perguntar
insistentemente: “Eu estava aqui e agora estou indo embora. Mas para onde?”;
“Não existirei mais e então o que virá? Não haverá nada. Onde estarei quando
não existir mais? Será isso morrer? Não. Eu não vou aceitar isso!”. As questões
existenciais afloram cada vez mais em Ivan Ilitch, fazendo-o crer que não há
uma explicação lógica e aceitável para sua finitude existencial.
A irracionalidade da vida
não está, fundamentalmente, na nossa finitude, mas na possibilidade iminente
dela. A vida de Ivan Ilitch transcorria naturalmente, isto é, o hábito de viver
lhe dava uma certeza de que a morte só chegaria com a velhice do corpo. Ele
conhecia a vida desta forma, ou seja, via que as pessoas morriam de velhice ou,
quando jovem, vítima de um acidente. Para ele, sua maneira de viver não lhe
colocava nas estatísticas de morte por acidente e sua saúde não dava sinais de
debilidade. O acidente na escada, quando ele bateu com a parte lateral do seu
corpo na maçaneta da porta e por isso selou seu destino, estava fora de
qualquer estatística e de qualquer lógica como causa da morte de um indivíduo.
Ivan
Ilitch não era uma pessoa dita religiosa. Ocupado demais com seu trabalho,
família e afazeres do dia a dia, quase nunca refletia sobre a possibilidade de
uma divindade criadora e benevolente. Mas como percebemos, sua vida é outra bem
diferente agora e, como nunca, questiona tudo e todos, chegando ao momento de
pedir respostas a um deus que dizem se preocupar com sua criatura. Na solidão,
chora por sua solidão; chora por estar desamparado pela crueldade de Deus e a
sua ausência: “Por que o Senhor fez isso comigo? Por que me fez chegar até esse
ponto? Por quê? Por que torturar-me tão horrivelmente?”.
A
esperança de conseguir resposta era proporcional à sua esperança de continuar
vivendo. Mas, Ivan Ilitch não se conformava e suas perguntas vinham como a água
após o rompimento de uma represa. Será que conseguiria, antes de morrer, achar
respostas para tantos questionamentos existenciais? Tolstoi acredita que
deveremos nos resignar. Não há uma explicação para um sem sentido.
Se
procurarmos um sentido que seja compatível com nossa razão, o sentimento de
finitude pulsará mais forte aplacando nosso impulso racional. O que Ivan Ilitch
esperava da vida agora? Nada, a não ser, um último empurrão, a destruição.
“Ainda se pelo menos eu pudesse entender para que serve tudo isso, mas é
impossível. Se se pudesse dizer que eu não vivi como deveria, mas não é essa a
explicação”, pensava em seu último momento: “Não há explicação! Agonia,
morte... Por quê?”.
Nesta
obra, Tolstoi nos leva por um caminho que nos faz sentar em um banco de praça,
apoiar os cotovelos nas pernas com as mãos segurando o rosto, e pensar nossa
finitude, sua significação e sua suma importância para sabermos o valor que
damos à vida, única, singular.
Será
que pensar a morte não é dar o valor devido à vida? Porque quase ninguém
sustenta uma conversa sobre nossa finitude por algum tempo, sem dizer; “acho
bom mudarmos de assunto”? Parece que quem aborda esse tema está chamando àquela
figura com uma foice na mão para perto de si, e não buscando entender a vida
como uma chance única e maravilhosa de desfrutá-la em todas as suas formas, de
poder perceber o único sentido da vida que é: viver.
----------------------------------------------------------------------------------------------
Fonte: http://obviousmag.org/. Título original do texto: 'A morte como aperceber-se da vida na obra de Tolsoi'.
Nenhum comentário:
Postar um comentário