No chão chão pernambucano, a doença. Lidar com o estado de doente. O corpo que não quer (ou não pode) obedecer aos comandos que a alma deseja. O mestre Raimundo Carrero, de tantas andanças pelos quatro cantos do Recife cantados por Alceu, comparece com apoio: 'o senhor agora vai mudar de corpo'. Vítima das 'pressões altas da vida', Carrero escreveu um livro, a partir de um personagem de si mesmo, que trata do momento e dos dias subsequentes ao AVC que anulou o seu lado esquerdo: 'O Senhor Agora vai Mudar de Corpo'. Segue a recensão aí abaixo, feita pelo jornalista e escritor Sérgio Tavares.
Por Sérgio Tavares
Há poucos meses, o mundo foi
tomado de assalto por um artigo, publicado no New York Times,
no qual o médico e escritor Oliver Sacks fala abertamente de seu ocaso.
Portador de um câncer terminal no fígado, ele lança um olhar sobre os poucos
dias que tem pela frente. A surpresa, porém, está no tom. O que apontaria para
uma carta de despedida, encharcada em tintas melancólicas, acaba por se revelar
uma ode à vida. Sacks não percebe a aproximação da morte como um processo de
anulação, mas a chance suprema de agradecer pela existência e pelo privilégio
de contar com tempo para ser produtivo e aprofundar suas amizades. “Não posso
negar que estou com medo. Mas meu sentimento predominante é de gratidão. Eu
amei e fui amado; doei muito e retribuí; li e viajei e refleti e escrevi. Eu
tive uma boa relação com o mundo, a relação especial de escritores e leitores”,
declara.
Na literatura, existe uma
longa lista de títulos que comportam relatos de vencedores e de perdedores, no
jogo de xadrez com a morte. Aos últimos, cabem os livros sobre o luto, a
exemplo dos recentes Altos voos e quedas livres, de Julian
Barnes, e O brilho do bronze, de Boris Fausto, além
do inigualável Carta a D., de André Gorz. Ao passo que os
primeiros são, na maioria das vezes, testemunhos de experiências-limites
editados para refulgir o tema superação. São os bestsellers do ciclista que
venceu o câncer, do alpinista que prendeu o braço numa rocha, do sobrevivente
do naufrágio, da menina que escapou de um atentado motivado por obscurantismo
religioso, e a prateleira é extensa.
O senhor agora vai mudar de corpo, romance
recente de Raimundo Carrero, repousa num meio-termo. Não contém a extravagância
da superação nem o drama fatal do luto. É um livro sobre a angústia. Sobre como
lidar com as incertezas e os efeitos físicos provocados por um acidente
vascular cerebral (AVC) que, em 2010, acometeu o escritor pernambucano. Com a
metade esquerda do corpo paralisada, a fala da memória dá conta do que a “voz
rachada e confusa” não é capaz de expressar. Cria-se, desse modo, uma confissão
montada por fragmentos de distâncias pretéritas, cuja varredura é comandada
pelo medo de perder o autodomínio, em especial a coordenação que ocasiona a
escrita.
Carrero, a todo tempo,
recorre aos livros, a autores que escreveram sobre o esboroamento físico (de
Dostoiévski a Clarice Lispector), como pontos cardeais para guiá-lo nessa
jornada autocentrada destituída de ordem cronológica ou de limites claros entre
realidade e ficção. A literatura, e seu salvo-conduto fantasioso, é a chave que
o autor encontrou para o embarque. Inventar um personagem de si, o Escritor,
deslocando a narração da primeira para a terceira pessoa. Algo como a livre
adulteração dos versos de Walt Whitman: “Eu sou o homem, eu sofri, eu estava
lá”, para: “Ele é o homem, ele sofreu, ele estava lá”. Um olhar extracorporal,
não avariado pela doença.
A partir desse novo ângulo,
as reminiscências compaginam-se a figuras de linguagens, símbolos e alegorias.
O autor segue o conselho que recebeu do mestre e amigo Ariano Suassuna: “A
literatura se faz com metáforas”, povoando as pequenas cenas que constituem o
livro com elementos desnaturados a fim de significar sensações e devaneios. Os
morcegos, as aranhas, o cortejo mezzo medieval mezzo circense formado pelo O
Gordo, O Magro, O Velho, O Anão e A Mulher Grávida. Da transição do organismo
saudável para o enfermo, Carrero reconfigura a vida, seu passado, seu presente,
“o Recife, agora transformado num mundo de ansiedade e espera, algo que se
aproxima muito do arco de desolação que se estende no horizonte de prédios
gigantes que ocupam a paisagem da cidade”. Faz-se homem, faz-se menino,
repintando e encadeando as palavras num pueril, e igualmente agourento,
trava-língua: “A aranha arranha a rota roupa mortal na noite rebelde”.
É sempre uma sinuca de bico
para o resenhista analisar uma obra de substância íntima (sobretudo esse que
vos escreve, cujo segundo livro é motivado por uma perda), porém, ao se
desencarregar da condução da narrativa, Carrero expõe o enredo ao juízo da
invenção e absolve a verdade. Daí se expõem a técnica e a manufatura da trama,
urdida com a precisão da mestria. O sempre arriscado recurso da metáfora se
dissolve numa prosa rica e densa, produzindo passagens belíssimas, tal qual o
trecho em que descreve, numa tensão quase onírica, como as aranhas no teto
tecem sua mortalha. Outros fragmentos, a exemplo da descoberta do acidente em
casa até a mudança para o hospital e dos danos mais grotescos, como a
incapacidade de controlar as excreções, têm força para sensibilizar o leitor,
sem que se apele para a autocomiseração ou para o pieguismo. Tudo passa por uma
revisão, exceto a literatura. A única fração orgânica e espiritual do Escritor
imutável, antes e depois da doença. “Não conseguia parar um só instante, tomado
de febre criativa, e as palavras se multiplicavam sem reflexão, sem crítica,
sem análise. Apenas o desejo de criar e criar. Sem imitar nenhum escritor, sem
copiar, sem se aproximar. Sem pensar, ele sabia: não pensava. Escrevia e
escrevia”.
Ao fim, fica a impressão de
que o romance valida a máxima de que, ao ser soprado pela morte, o que se viveu
corre sobre os olhos. Os primeiros autores, o início no jornalismo, os amores,
os excessos, as bebedeiras, os carnavais, os amigos, a fé, as atividades
políticas, o casamento e o nascimento dos filhos revolvem num fluxo que não
clareia o porquê da sobrevivência, mas estimula a recuperação. Há espanto,
vergonha, dúvida; nunca derrotismo. Carrero, a seu modo, faz uma ode à vida.
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Fonte: http://www.revistaamalgama.com.br/
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