Por
João do Rio
Para
não falhar a um velho hábito, fui, ontem pela manhã, visitar o meu ilustre
amigo, o célebre alienista que assombra a cidade pelos seus processos de
tratamento da loucura e sua variada intuição das literaturas doentias e das
psicologias mórbidas. Era de manhã, fazia um lindo dia de sol, escandalosamente
azul, e o alienista, moço, bem-disposto, elegante, acabava de fazer a sua
visita à enfermaria sob sua guarda no Hospício Nacional.
– Há quanto tempo!
– É verdade, há tempos que não venho aprender
com o mestre...
– Tens andado ocupado?
– Ocupadíssimo. O mestre, que compreende as
moléstias da sociedade, deve imaginar quão grave ocupação é a gente livrar-se
da filofobia nacional...
Complacentemente o alienista sorriu, mandou
vir café, biscoitos de araruta –porque é louco por biscoitos como o senador
Lopes Gonçalves o é por charutos de 100 réis e a rainha da Holanda por doce de
ameixas– e indagou:
– Que desejas tu?
– Uma consulta sobre a semana. Deve ter lido
os jornais. A cidade atravessa a crise do ciúme. Por toda a parte Otelos, por
toda a parte um novo desespero de novas Desdêmonas...
– É verdade; a semana é a semana do ciúme.
– Veja o mestre a paixão triunfante, o amor
mostrando o seu hórrido reverso; os grandes sentimentos abrindo fogueiras...
– Os grandes sentimentos? Mas, meu amigo, o
ciúme é uma moléstia.
– Moléstia! É impossível! Tudo menos
catalogar os grandes sentimentos que dignificam o homem, em um compêndio de
psicopatia. O mestre teria contra si os românticos, a cidade inteira, se o
afirmasse em público!
– Oh! sim, como acontece sempre que anexamos
uma doença até então sentimento normal ou desregramento humano. Quando da
bebedeira fizemos a dipsomania, grande barulho; quando dos sem-vergonha criamos
os erotômanos, escândalo; quando da paixão de Phedra se inventou a histeria,
parecia que o mundo vinha abaixo. Havemos de ter as mesmas cóleras quando
anexarmos o ciúme. O barulho acaba e a conquista continua.
– A conquista?
– Ah! sim, a nossa conquista só parará quando
tiver purgado a terra de todos os males terríveis que se adoram sob o
pseudônimo de grandes paixões, no dia em que a humanidade voltar aos
sentimentos médios, afáveis e higiênicos, sem os quais não há nem saúde, nem
duração possíveis...
– É uma novidade?
– É uma ideia de Fernando Vauderém que eu
reproduzo textualmente. Anexar o ciúme era arriscado. Há muito que a medicina
pensava no caso, sem coragem. E não imaginas como nós rimos quando os poetas e
os literatos definem a doença –o ciúme é isto, o ciúme nasce daquilo...
É da gente se torcer. O ciúme é simplesmente
uma doença mental, e só o receio de um escândalo forçava a medicina a não o
declarar. Hoje os tribunais já dão como razão para absolver os assassinos, o
ciúme, e, firmados nos dois luminares da literatura dramática, pode-se provar
as coisas. Conhece Shakespeare, conhece Molière? Pois esses dois homens têm
duas peças típicas, o "Otelo" e o "Misantropo", duas
monografias excelentes sobre o ciúme.
É claro que para Shakespeare, Otelo é um
doido, e para Molière, o Alceste também é maluco. Em Shakespeare há todos os
sintomas de demência: espuma nos lábios, congestões, ataques epileptiformes...
Em Alceste, simplesmente bizarrias, furores, perturbações verbais; mas, para
quem conhece, a doença é clara, salta aos olhos. A questão está agora em tomar
os casos da moléstia do ciúme aqui, sob a influência do meio, e fazer o
trabalho capaz de salvar para todo o sempre os homens normais de um bando de
malucos e malucos que os poetas acham extraordinários.
– Mas é admirável!
– Com efeito, é admirável porque verdadeira.
– Mais! É o restabelecimento da paz nos
casais. Não haver mais ciúmes! Que delícia. O marido está ciumento, zás! para o
hospícios; a esposa escuma de furor por ter encontrado uma carta indiscreta
–manicômio com ela. Mas, mestre, o senhor é o salvador da humanidade!
– Não sou eu, é a ciência, a ciência que
acaba com todos os males humanos.
– E com os humanos também.
– Oh! a ironia! tem um pouco de senso,
reflete. O ciúme é uma doença mental do extremo aperfeiçoamento das raças, é
como a neurastenia, a surmenagem, e tanto assim que os homens a sentiram
primeiro que as mulheres. Estuda a história dos povos antigos e dos que nós
chamamos de bárbaros de hoje: plena poligamia e plena poliandria. Não havia
ciúme. Veio a ambição, veio o egoísmo, veio o "venha a nós". Um índio
do Amazonas, um cafre do sul da África são ainda agora superiores ao mal, dão
as mulheres com indiferença. Um sujeito morador em Catumby é capaz de matar
toda a freguesia se descobrir que a esposa o engana.
– Conforme.
– Os que não matam são os normais do futuro.
Agora, eu, em nome da ciência, agarro o assassino antes do crime, meto-o na
minha enfermaria, emprego os processos de acalmação nêurica da Alemanha e fica
ele livre de uma morte, o amante livre de morrer e ela livre para o que
quiser... Uma vez a sociedade compenetrada de que realmente o ciúme é uma
doença como a histeria, a erotomania, o alcoolismo –o terror da camisola de
força contém e transforma os temperamentos. Desaparecem os maridos feras, as
esposas ferozes, a instituição anacrônica da sogra, os amigos íntimos que vêm
contar coisas, os assassinatos, as cenas de sangue, as notícias sensacionais e
talvez as casas de armas desaparecessem, se não houvesse a guerra e o
permanente perigo alemão...
– De modo que basta a anexação para extinguir
o mal?
– Em 1950, meu caro, uma semana de crimes de
amor, de suicídios e de assassinatos será tão rara, tão rara que os alienistas
ficarão pasmos.
Mas é bom não julgar que a ciência fique
restrita a essas anexações. Há outras doenças pelo mundo que precisam do
tratamento regular do hospício –a nevrose da poesia, por exemplo, o mal de
fazer versinhos; a inveja dos críticos que nunca fazem nada senão descompor os
que trabalham; os jornalistas profissionais, doença perigosa que se alastra com
aspectos de epidemia; a ânsia científica das senhoras... Ah! a ciência é o
progresso! Caminhemos, anexemos! Quando todos esses sentimentos estiverem
catalogados, tendo cada um o seu modo de cura, o mundo será o Éden.
A ciência é o progresso!
– Mas, mestre, é o regime do terror da
camisola de força!
– Muito mais eficaz que o da Detenção.
– Isso obrigará cada cidadão a ler e estudar
os códigos das moléstias nervosas.
– Não há dúvida.
– De modo que o número de alienistas será
enorme.
– Ah! Isso não, isso nunca. A psicopatia não
é para toda a gente. Nós somos ciosos da nossa profissão...
E como eu risse, do célebre doutor concluiu:
– O ciúme quando é da profissão, é respeito
pela ciência.
E friamente despediu-me.
Saí do hospício desolado. Sim, no futuro, o
progresso científico acabará com o ciúme à custa de duchas e banhos sedativos;
no futuro, Otelo será um monstro, o assassinato por amor, o próprio horror;
sim, no futuro, para a ciência, a semana de sangue, de incêndio, de paixão não
ressurgirá. Mas, em compensação, outros sentimentos regulares, outros
sentimentos denominados grandes estarão, talvez, mais trágicos, mais
desesperadores, a estraçalhar a vida; os alienistas, fartos de achar doidos nas
ruas, talvez se achem reciprocamente malucos. E assim irá o mundo, no esforço
para o medíocre, para o mediano, sempre a arrebatar e a criar na terra a dor e
os sentimentos intensos que fazem a vida, fazem o homem, são o reverso miserável
desta enorme alegria de viver que todos nós sentimos.
E será esta decerto a "revanche"
sentimental dos que se mataram durante a semana, contra os psicólogos frios tão
cheios de censuras e de cálculos postiços que já consideram a dor de amar uma perturbação
mental...
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Fonte: Folha de São Paulo, edição do dia 27/09/2015.
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