sábado, 3 de outubro de 2015

A fumaça do ciúme

João do Rio era o pseudônimo do jornalista, cronsita e contista brasileiro Paulo Barreto (1881-1921). O texto aí abaixo foi publicado no Jornal 'O Paiz', em 31 de março de 1918. O seu título original é 'A Moléstia do Ciúme'.


Por João do Rio

Para não falhar a um velho hábito, fui, ontem pela manhã, visitar o meu ilustre amigo, o célebre alienista que assombra a cidade pelos seus processos de tratamento da loucura e sua variada intuição das literaturas doentias e das psicologias mórbidas. Era de manhã, fazia um lindo dia de sol, escandalosamente azul, e o alienista, moço, bem-disposto, elegante, acabava de fazer a sua visita à enfermaria sob sua guarda no Hospício Nacional.
– Há quanto tempo!
– É verdade, há tempos que não venho aprender com o mestre...
– Tens andado ocupado?
– Ocupadíssimo. O mestre, que compreende as moléstias da sociedade, deve imaginar quão grave ocupação é a gente livrar-se da filofobia nacional...
Complacentemente o alienista sorriu, mandou vir café, biscoitos de araruta –porque é louco por biscoitos como o senador Lopes Gonçalves o é por charutos de 100 réis e a rainha da Holanda por doce de ameixas– e indagou:
– Que desejas tu?
– Uma consulta sobre a semana. Deve ter lido os jornais. A cidade atravessa a crise do ciúme. Por toda a parte Otelos, por toda a parte um novo desespero de novas Desdêmonas...
– É verdade; a semana é a semana do ciúme.
– Veja o mestre a paixão triunfante, o amor mostrando o seu hórrido reverso; os grandes sentimentos abrindo fogueiras...
– Os grandes sentimentos? Mas, meu amigo, o ciúme é uma moléstia.
– Moléstia! É impossível! Tudo menos catalogar os grandes sentimentos que dignificam o homem, em um compêndio de psicopatia. O mestre teria contra si os românticos, a cidade inteira, se o afirmasse em público!
– Oh! sim, como acontece sempre que anexamos uma doença até então sentimento normal ou desregramento humano. Quando da bebedeira fizemos a dipsomania, grande barulho; quando dos sem-vergonha criamos os erotômanos, escândalo; quando da paixão de Phedra se inventou a histeria, parecia que o mundo vinha abaixo. Havemos de ter as mesmas cóleras quando anexarmos o ciúme. O barulho acaba e a conquista continua.
– A conquista?
– Ah! sim, a nossa conquista só parará quando tiver purgado a terra de todos os males terríveis que se adoram sob o pseudônimo de grandes paixões, no dia em que a humanidade voltar aos sentimentos médios, afáveis e higiênicos, sem os quais não há nem saúde, nem duração possíveis...
– É uma novidade?
– É uma ideia de Fernando Vauderém que eu reproduzo textualmente. Anexar o ciúme era arriscado. Há muito que a medicina pensava no caso, sem coragem. E não imaginas como nós rimos quando os poetas e os literatos definem a doença –o ciúme é isto, o ciúme nasce daquilo...
É da gente se torcer. O ciúme é simplesmente uma doença mental, e só o receio de um escândalo forçava a medicina a não o declarar. Hoje os tribunais já dão como razão para absolver os assassinos, o ciúme, e, firmados nos dois luminares da literatura dramática, pode-se provar as coisas. Conhece Shakespeare, conhece Molière? Pois esses dois homens têm duas peças típicas, o "Otelo" e o "Misantropo", duas monografias excelentes sobre o ciúme.
É claro que para Shakespeare, Otelo é um doido, e para Molière, o Alceste também é maluco. Em Shakespeare há todos os sintomas de demência: espuma nos lábios, congestões, ataques epileptiformes... Em Alceste, simplesmente bizarrias, furores, perturbações verbais; mas, para quem conhece, a doença é clara, salta aos olhos. A questão está agora em tomar os casos da moléstia do ciúme aqui, sob a influência do meio, e fazer o trabalho capaz de salvar para todo o sempre os homens normais de um bando de malucos e malucos que os poetas acham extraordinários.
– Mas é admirável!
– Com efeito, é admirável porque verdadeira.
– Mais! É o restabelecimento da paz nos casais. Não haver mais ciúmes! Que delícia. O marido está ciumento, zás! para o hospícios; a esposa escuma de furor por ter encontrado uma carta indiscreta –manicômio com ela. Mas, mestre, o senhor é o salvador da humanidade!
– Não sou eu, é a ciência, a ciência que acaba com todos os males humanos.
– E com os humanos também.
– Oh! a ironia! tem um pouco de senso, reflete. O ciúme é uma doença mental do extremo aperfeiçoamento das raças, é como a neurastenia, a surmenagem, e tanto assim que os homens a sentiram primeiro que as mulheres. Estuda a história dos povos antigos e dos que nós chamamos de bárbaros de hoje: plena poligamia e plena poliandria. Não havia ciúme. Veio a ambição, veio o egoísmo, veio o "venha a nós". Um índio do Amazonas, um cafre do sul da África são ainda agora superiores ao mal, dão as mulheres com indiferença. Um sujeito morador em Catumby é capaz de matar toda a freguesia se descobrir que a esposa o engana.
– Conforme.
– Os que não matam são os normais do futuro. Agora, eu, em nome da ciência, agarro o assassino antes do crime, meto-o na minha enfermaria, emprego os processos de acalmação nêurica da Alemanha e fica ele livre de uma morte, o amante livre de morrer e ela livre para o que quiser... Uma vez a sociedade compenetrada de que realmente o ciúme é uma doença como a histeria, a erotomania, o alcoolismo –o terror da camisola de força contém e transforma os temperamentos. Desaparecem os maridos feras, as esposas ferozes, a instituição anacrônica da sogra, os amigos íntimos que vêm contar coisas, os assassinatos, as cenas de sangue, as notícias sensacionais e talvez as casas de armas desaparecessem, se não houvesse a guerra e o permanente perigo alemão...
– De modo que basta a anexação para extinguir o mal?
– Em 1950, meu caro, uma semana de crimes de amor, de suicídios e de assassinatos será tão rara, tão rara que os alienistas ficarão pasmos.
Mas é bom não julgar que a ciência fique restrita a essas anexações. Há outras doenças pelo mundo que precisam do tratamento regular do hospício –a nevrose da poesia, por exemplo, o mal de fazer versinhos; a inveja dos críticos que nunca fazem nada senão descompor os que trabalham; os jornalistas profissionais, doença perigosa que se alastra com aspectos de epidemia; a ânsia científica das senhoras... Ah! a ciência é o progresso! Caminhemos, anexemos! Quando todos esses sentimentos estiverem catalogados, tendo cada um o seu modo de cura, o mundo será o Éden.
A ciência é o progresso!
– Mas, mestre, é o regime do terror da camisola de força!
– Muito mais eficaz que o da Detenção.
– Isso obrigará cada cidadão a ler e estudar os códigos das moléstias nervosas.
– Não há dúvida.
– De modo que o número de alienistas será enorme.
– Ah! Isso não, isso nunca. A psicopatia não é para toda a gente. Nós somos ciosos da nossa profissão...
E como eu risse, do célebre doutor concluiu:
– O ciúme quando é da profissão, é respeito pela ciência.
E friamente despediu-me.
Saí do hospício desolado. Sim, no futuro, o progresso científico acabará com o ciúme à custa de duchas e banhos sedativos; no futuro, Otelo será um monstro, o assassinato por amor, o próprio horror; sim, no futuro, para a ciência, a semana de sangue, de incêndio, de paixão não ressurgirá. Mas, em compensação, outros sentimentos regulares, outros sentimentos denominados grandes estarão, talvez, mais trágicos, mais desesperadores, a estraçalhar a vida; os alienistas, fartos de achar doidos nas ruas, talvez se achem reciprocamente malucos. E assim irá o mundo, no esforço para o medíocre, para o mediano, sempre a arrebatar e a criar na terra a dor e os sentimentos intensos que fazem a vida, fazem o homem, são o reverso miserável desta enorme alegria de viver que todos nós sentimos.
E será esta decerto a "revanche" sentimental dos que se mataram durante a semana, contra os psicólogos frios tão cheios de censuras e de cálculos postiços que já consideram a dor de amar uma perturbação mental...

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Fonte: Folha de São Paulo, edição do dia 27/09/2015. 

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